Capítulo 4 | Minha alma

— Onde eu estou?

Minha voz estava grogue até para os meus ouvidos. Não precisava abrir os olhos para saber que minha cabeça ainda estava rodando e meu corpo parecia ter sido atropelado por um trator daqueles bem grandes. Minhas costas doíam, meus pés doíam. Maldito álcool.

Tentei abrir os olhos mas apenas um deles cooperou, o outro parecia grudado pelo rímel da noite anterior. Que beleza, eu deveria estar um panda e manchei mais um fronha. Estiquei meu braço, com muito esforço, e toquei o travesseiro. Epa, fofo demais para ser o meu. 

Liguei o alerta e me sentei na hora, ignorando a pontada de dor na cabeça. Puta merda, eu estou no quarto de hotel e supostamente deveria ter alguém do meu lado. Claramente Helena não estava mais aqui... é desapontada mas não surpresa que falam, não? Faz todo sentido.

Forcei minha cabeça a passar pelo torpor e buscar cenas da noite anterior. Eu e Lena conversamos na despedida de solteira dela, ela me falou algumas coisas que mexeram comigo e ela... nós. Nós alugamos um quarto de hotel para terminar o que começamos.

Bati com a palma da mão na minha testa. Burra! Quatro anos para esquecer e quatro dias para abrir a mesma ferida. Eu merecia um prêmio mesmo. Flashes da noite, na balada e no quarto de hotel, começaram a voltar pra mim:

"— Não amei ninguém com amo você."

"— Ninguém sabe me tocar como você."

"— Por favor, me beija..."

Por que ela fazia isso comigo, cara? Não bastava ter me abandonado uma vez por ele, ela tinha que reavivar tudo para me largar de novo?

"— Não me deixe casar com ele, Carol."

Quantas vezes ela me pediu para não deixá-la casar com ele durante a noite? Muitas. Por mais que quisesse virar as costas, eu precisava falar com ela antes do casamento. 

Estaria eu ficando louca? Uma probabilidade de 99,9%. Mas eu me agarrei naquele 0,1% e agi por impulso, com medo de perder as esperanças. E Helena também.

Olhei para o relógio, tudo bem, ainda tinha algumas horas antes do casamento. Ela estaria no SPA se arrumando. Olhei meu celular e só tinham mensagens do Marco e da minha mãe, respondi rapidamente e levantei da cama. Não queria lidar com o Marco agora, não estava preparada para entregar os pontos e dizer que ele tinha razão. Não antes de esgotar todas as chances. 

Recolhi o vestido que usava na noite anterior, os sapatos, casaco e bolsa. Tomei um banho e me recompus da melhor forma possível.

Antes de sair procurei pelo quarto para ver se deixei algo para trás. Nem um bilhete essa desgraçada me deixou. "Obrigada pela noite anterior", "não vá ao meu casamento"... Qualquer coisa era melhor do que virar as costas e ir embora. Enfurecida, bati a porta na saída.

Desci pelo elevador e andei pelo saguão do hotel até a recepção. 

— Por favor, preciso fechar o quarto 112.

— O quarto já está fechado, senhorita. Sua amiga, a senhorita Prado já acertou tudo conosco. 

— O quê? — perguntei, incrédula.

— Ela explicou que vocês vieram da despedida de solteira dela e que você estava passando mal. Espero que você esteja se sentindo melhor.

Trinquei os dentes e forcei meu rosto em um sorriso. A recepcionista não tinha culpa.

— Estou bem sim, obrigada. Se está fechado, então vou. Obrigada por tudo.

Filha da puta! 

Passei em casa para trocar de roupa, peguei o carro e dirigi como uma louca até o SPA. Primeiro ela pede para salvá-la desse casamento e depois foge? E aí, para completar, paga sozinha pelo quarto como se estivesse pagando por sexo. Um sentimento amargo tomou conta de mim, me fazendo ficar mal e quase desistir. Mas ainda não era hora.

Estacionei e respirei bem fundo umas quantas vezes para me acalmar. Helena tinha me contado na noite anterior que nenhuma das damas se arrumariam com ela, que tinha pedido para ficar sozinha. Contava com isso quando entrei no SPA. A recepcionista me indicou a sala onde ela estava se arrumando, assim que identifiquei como a prima da noiva.

Bati na porta e entrei, o sorriso mais calmo do mundo no meu rosto. Os olhos de Helena se arregalaram quando me viu pelo reflexo do espelho na penteadeira. Me dirigi a cabeleireira. 

— Boa tarde. Eu sou a Carmem Prado, a prima da Lena. Preciso conversar com ela sobre um barraco que aconteceu com nossas tias — disse, com a voz baixinha como se contasse um segredo. — Lena, vamos precisar alterar uns lugares e preciso da sua ajuda.

Olhei para a cabeleireira, que agora tinha os olhos brilhantes pela fofoca. Helena tinha a mesma expressão de quando entrei, meio surpresa e meio assustada. 

— Será que pode nos deixar sozinhas? Prometo que não vou demorar. 

— Claro que sim — a moça largou tudo como estava e saiu da sala, fechando a porta.

Helena ainda me olhava pelo reflexo do espelho. Sério que ela acreditava que escaparia de fininho e não conversaríamos sobre isso? Faça-me rir.

— Bom dia para você também, Helena. Você está ótima, nem parece alguém que abandonou uma pessoa nua e sozinha em uma cama de hotel.

— Carol, veja bem... — ela virou para mim e calou-se quando viu a fúria em meus olhos.

— Vejo o quanto você quiser. Apesar de ontem ter visto o bastante — disse, com a voz o mais calma que consegui. 

Caminhei até uma poltrona e sentei calmamente, cruzando as pernas e a encarando pacientemente. Foram precisos uns cinco minutos de um silêncio constrangedor para ela começasse a falar.

— Me desculpe.

Apenas acenei com a cabeça, incentivando-a a continuar. Precisava ouvir um pouco mais do que duas palavras.

— Fui uma idiota saindo sem avisar você. Mas precisava me arrumar porque hoje é meu casamento — as duas últimas palavras foram ditas em tom de voz mais baixo, quase uma lamentação. 

— Então o que você me falou ontem foi besteira?

— Sim! Não!

— Foi uma pergunta de sim ou não — respondi sarcástica.

Ela suspirou e cobriu os olhos com as mãos.

— Carol, você desperta em mim sentimentos que eu tento esconder a todo custo. Você conhece minha família, sabe que nunca poderia largar meu casamento para viver com uma mulher. Eles morreriam.

— Ao invés disso você prefere se machucar por esconder seus sentimentos e casar com alguém porque seus pais querem?

— Eu aceitei esse noivado. 

— Helena, olha para mim — era impossível discutir sentada, não tinha essa calma toda. Me levantei e parei na frente dela. — Seja honesta com você mesma hoje da mesma maneira que foi comigo ontem.

— Esquece o que eu falei ontem, Carol.

— Isso quer dizer que você mentiu para mim?

— Não menti para você. Mas ontem eu tinha mais coragem do que tenho hoje. E hoje preciso honrar meu compromisso e casar com Fernando. 

— Você está casando com ele por amor?

— Eu o amo... Não dá mesma forma que amo você, mas amo.

Será que ele não poderia ser sincera consigo mesma uma vez na vida?

— Você me disse que ele não te faz feliz — joguei, desesperada, segurando Helena pelos braços. — Me disse que ele não te satisfaz.

— Eu estava bêbada e não sabia o que dizia! — rebateu, a voz fraca negando a certeza que ela afirmava ter.

— Você me implorou para salvá-la desse casamento! Me implorou para não deixá-la se casar com ele, para tocar você, para amar você. — fiz uma pausa e os eventos da noite anterior se encaixaram na minha memória como peças de um quebra-cabeça. — Na verdade, você me implorou para levá-la embora comigo.

— Foi o efeito do álcool, Carol.

— A noite toda foi efeito do álcool? — perguntei baixinho, com medo da resposta.

Mas estava ali, estampado no rosto de Helena que eu tinha sido enganada.

— Puta merda, Helena! — gritei, jogando os braços para cima em um gesto de desespero. — Você reabriu todas as feridas que já estavam fechadas. Me fez reviver tudo de novo com você, apenas para terminar exatamente da mesma forma. 

Cansada, subitamente eu estava muito cansada. Esfreguei as mãos nos olhos para afastar o torpor e terminei passando as mãos pelo cabelo em uma vontade louca de puxá-los.

— Eu... eu... sinto muito.

— Você não sente. Se sentisse um pouquinho de arrependimento teria deixado as coisas como estavam — acusei.

— Ontem realmente acreditava que poderia fugir, que poderia ter um destino diferente. Ver você me fez acreditar em coisas que tinha esquecido há muito tempo. Carol — disse ela, pegando o meu braço — eu preciso que você entenda que é difícil aceitar que não posso ter tudo que imaginava na vida.

— Então por que você não me deixou em paz? — pedi, esgotada.

— Porque ver você e não tocá-la é impossível para mim. Sempre foi assim.

Helena chegou bem perto e apoiou sua testa na minha. Por um momento, o mundo parou de girar e ficamos ali, ouvindo o bater dos nossos corações. 

Precisava me afastar, então reuni todas as minhas forças e dei um passo para trás.

— Lena, é sua última chance. Vou perguntar mais uma vez apenas para limpar minha consciência: você quer se casar com ele? 

Eu tenho síndrome de herói, preciso aprender que nem todo mundo quer ser salvo, já dizia mamãe. Mas o que meu cérebro dizia e o que eu meu coração insistia eram duas coisas diferentes. Para mim, Lena me pediu para ser salva e eu precisava ajudá-la. Por isso, continuei insistindo.

— Não precisa ficar comigo se não quiser, não vou obrigá-la a nada. Se quiser sair daqui, vamos embora para qualquer lugar. Só preciso saber que está fazendo isso de mente limpa e sabendo das consequências.

— Eu vou me casar com ele. 

As palavras pareciam ser arrancadas da alma dela, a tristeza visível naqueles olhos lindos. Mas entendi e por isso joguei a toalha, ela repetiu tanto essas palavras que agora eu precisava deixar de ser burra e ir embora.

— Se é o que você quer, então assim será. Seja feliz, Helena.

Peguei minha bolsa e meu casaco, recolhi o resto da minha dignidade e andei até a porta. Ouvi a voz dela e me virei, achando que teria repensado.

— Você sempre vai ficar gravada no fundo da minha alma, Carol. Você é a mulher que eu amo, que me fez feliz. Mas não posso desapontar as pessoas que contam comigo. Eu não consigo largar tudo para viver com você... Sinto muito.

Foi ali, naquele momento, que ela arrancou meu coração do peito e o partiu. A mesma mulher partiu meu coração duas vezes, da mesma forma. Eu queria que ela fosse feliz, queria que ela seguisse seu coração e mandasse o mundo inteiro para o inferno se fosse necessário. Mas ela não conseguia e não cabia a mim forçá-la ao contrário.

Ela me olhou, os olhos marejados de lágrimas e dor, e virou de costas. Ela seguiria com ele. Entendi a minha deixa e saí. Jurei para mim mesma que aquele era o final definitivo da nossa história. E realmente foi. Aquela foi a última vez que eu a vi.

Ela ficou. Um pedaço da minha alma ficou ali também. 

Mas eu fui embora.

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