CAPÍTULO 5: O diabo sabe dar uma festa, mas essa não é a parte que importa

Acordei um pouco mais tarde do que o de costume, por ser fim de semana. Desisti de tentar dormir e levantei para começar o meu dia. Não tinha nada planejado, mas tinha que fazer algo de útil por mim. Mesmo com os acontecimentos da noite anterior fazendo eco na minha memória.
Eu precisava focar em outra coisa que não fosse um cão enfeitiçado correndo atrás de um bando de idiotas. E que, aparentemente, a culpa deveria ser da garota que eu estava afim.

Após tomar meu banho, fui tomar café. Sarah estava dormindo. Não vi a hora que ela chegou na noite passada, então o descanso é mais que merecido. Layla continua dormindo, o que não é novidade; já que ela faz isso na maior parte do tempo livre. Adolescentes.

Peguei meu skate e saí de casa sem fazer muito barulho. Mesmo se eu fizesse, ninguém acordaria.
Minha cabeça andava uma bagunça. Era a missão que havia estagnado mais uma vez, era o provável poder mágico de Âmbar. As coisas não andavam bem. Eu não tenho nada contra bruxas. Mas os outros anjos sim. As bruxas nunca costumam estar do nosso lado quando as coisas apertam. "Bruxas são satanistas?", não. Pelo menos não todas. Mas quem que vai querer ficar do nosso lado?! Ouvi dizer que o cara lá de baixo é bem mais divertido.

Eu paro de patinar quando percebo uma garota de pele pálida com um longo cabelo liso e preto. Vestindo um vestido de renda azul marinho parada bem na minha frente. Não era humano, eu podia sentir.

Por mais que ela tivesse um rosto sereno e gentil, eu segurei meu skate na mão e me preparei para o que estava por vir.

— Você é o Orebe, certo? — Ela falou calmamente.

— Sim. Mas não faço a mínima ideia de quem você seja.

Ela fechou os olhos e sorriu.
Senti tudo ao meu redor tremer. Não fisicamente, mas como se tudo ao redor estivesse sendo filmado por alguém que tivesse tomado um galão de energético. E em seguida tudo o que senti foi um calor escaldante e tudo tinha uma cor mais quente. O cheiro era de ovo podre, e mesmo com todo o silêncio, ainda podia sentir o horror que aquele lugar representava.

— Você me trouxe pro inferno!? — perguntei a ela.

— Exatamente. Luci quer falar com você.

Senti um frio percorrer minha espinha.

— Lucifer?!

— Ele mesmo — respondeu ela sorrindo. Seus olhos eram estreitos e muito escuros. — Me acompanhe.

Respirei fundo e segui a moça. Não tinha outra opção, já que essa habilidade de teletranspote só pertencia aos anjos e demônios reais. Eu sou só um orgânico.

Estávamos próximos a um grande paredão de rochas e do lado oposto vinha uma luz, que era justamente o que trazia a iluminação para o lugar. Me aproximei calmamente e vi um homem enorme gritando no fundo de um poço escaldante. Haviam várias feridas em seu corpo ainda sangrando e vários feixes de luz o circulavam como uma esfera elétrica.

— Mas o que diabos...

— Não é o diabo — alguém comentou perto de mim.

Me afasto ao perceber a estranha presença.
O jovem de pele marrom dourada e olhar sedutor sorriu pra mim.

— Me chamo Mammon. E aquele ali embaixo — apontou ele. — É Belzebub.

— Nunca imaginei ele assim.

— Assim como não imaginou que existissem demônios tão lindos quanto eu.

Ele brincava com uma moeda dourada que passeava entre seus dedos com pequenos gestos.

— A garota que me trouxe é bonita também.

— Quem?! — ele olhou em volta. — Aliás, quem é você mesmo?

— Me chamo Orebe.

O sorriso de Mammon se alargou ainda mais e ele parou de brincar com a moeda.

— O famoso anjo orgânico. Pensei que nunca ia ver você. Já conseguiu achar Lilith?

— Não... Vocês querem que eu a ache?

— Eu só quero que o Mestre fique feliz. Ele estando feliz, eu fico feliz.

Ouço um grito feminino ao longe e algo cai bem em cima de Mammon. De início parecia ser uma cobra gigantesca, mas após uns instantes percebi que se tratava de um tentáculo, que ainda se mexia e voltava para trás, deixando o corpo desacordado de Mammon no chão. Continuei acompanhando o tentáculo com os olhos e dei de cara com a garota que havia me trazido ali. O tentáculo diminuía e voltava a ser apenas o braço da garota que havia me trazido.

— Mammon é bem irritante as vezes — ela comentou se justificando.

Eu fiquei calado. Eles são demônios, eles que se entendam.

— Desculpa ter deixado você sozinho. Eu não costumo olhar pra trás quando ando — disse ela, ficando ao meu lado.

— Tudo bem. É... sabe o que Lucifer quer falar comigo?

— Acho que é sobre Lilith. Não sei.

Alguns poucos minutos depois, chegamos a frente de uma grande porta de ferro. Ela bateu três vezes e a porta abriu, revelando um lugar bem frio e aconchegante.

Se tratava de uma sala de paredes brancas e com alguns quadros de olhos e bocas. O tipo de coisa aleatória e artística que com o tempo eu só aceitei.
E próximo a uma mesa, estava sentado numa poltrona, um homem de olhos cinzentos, pele pálida e cabelos escuros bem penteados. Ele exibiu um meio sorriso ao me ver entrar na sala.

— Olha quem finalmente apareceu.

Olhei para a garota que havia me trazido, esperando alguma explicação.

— É com você mesmo, Orebe — ele se levantou após falar e deu a volta na mesa até se sentar sobre ela. Ele vestia um terno preto com uma camiseta branca por baixo. Apontou uma cadeira a minha frente e pediu para eu me sentar.

Me sentei e fiquei esperando ele falar. Aquele lugar era bem diferente do que eu imaginava. Aquele sala principalmente. E, claro, Lucifer em si. Sabia que ele havia sido um anjo - o mundo inteiro sabe disso graças a cultura popular -, mas não imaginava que ele fosse tão bonito assim.

— Então, como vai? — Perguntou ele.

— Eu... To bem. E você?

— Sabe como é, fico aqui, espero os humanos estragarem suas vidas, comando esse lugar. Nada de mais.

— Sempre tive uma dúvida: o que um humano precisa fazer pra vir parar aqui?

— Primeiro erro foi ele nascer humano. Segundo: qualquer coisa pode trazer os humanos para cá. Ironicamente, a maioria das pessoas que vem pra cá, acreditavam que eram boas pessoas só por ir a igreja, acredita!?

— Então tá bom... O que você queria comigo mesmo?

Ele olhou para a garota que me trouxe e logo falou.

— Pedi a Leviatã que fosse lhe buscar, por que gostaria de te oferecer minha ajuda.

— Ajuda em quê? Vai me dizer onde Lilith está?

— Acredite, se eu soubesse, eu diria. Ela sumiu. Ela é Lilith, a feiticeira mais poderosa do mundo, se ela não quer ser achada, não é o simples Rei do Inferno que vai achá-la.

— Achei que vocês fossem mais próximos.

— Achou errado. Nos falamos pouco. E só ouvi ela me agradecer quando eu a deixei sair do Jardim.

— Como assim?

— Eu deixei ela sair do Jardim. Ela não queria mais ficar com Adão, achei que era um direito dela escolher.

— Ah, bacana. Muito evoluída sua atitude, mas me conta aí: foi por culpa sua que eu to perseguindo ela?

Ele riu um pouco.

— Não, não. Ela aprontou outra coisa. Não faz tanto tempo assim. Uns dois mil anos...? — Perguntou para Leviatã ainda próxima da porta. — Isso, isso. Dois mil anos. Na época em que ouvimos falar sobre o anjo orgânico. O primeiro, olhe só. Raphael deve encher seu saco.

— Como você sabe...?

— Eu não espiono você, relaxa. Só conheço meu irmão. Falando nisso, você também é meu irmão... Meu irmão veio me visitar! Leviatã, chame todos. Faremos uma festa.

Não pude opinar com nada em relação a ter uma festa, mas é legal ver que alguém tá feliz em me ver. Apagaram as luzes, colocaram algumas luzes no teto, uma música pra tocar e logo o lugar estava cheio de demônios. Incrível. E mais incrível ainda era ter uma outra sala com aquele clima aconchegante.

— Não sei como fizeram isso, mas foi genial — comentei.

— Do que você tá falando? — Perguntou Lucifer aos gritos, já que o som estava meio alto. De alguma forma que eu não entendo, ele já estava apenas de cueca e roupão.

— Do ar frio aqui. É impressionante.

— O calor lá fora é insuportável. Pedi pra Leviatã fazer um feitiço pra tirar o calor daqui e mandar lá pra fora. Ela é o nosso ar condicionado — gritou ele.

— Os humanos imaginam Leviatã como um monstro marinho, mas ela é até fofa — falei olhando ela dançando na pista, com outras garotas/demônios.

— Mas ela é um monstro marinho.

— E como um monstro tão grande caberia naquele corpo miúdo?

— Magia. Da mesma forma que todas as ciências que os humanos conhecem e ainda vão conhecer cabem aqui — apontou pra própria cabeça. — Pura magia.

— Isso explica tudo.

— Leviatã ajudou muito Lillith quando ela era apenas uma humana sem lar. Ela não tinha onde ficar e Leviatã a abrigou.

— Bacana.

Girls power, amigo! Girls power! Ele gritou e se jogou no meio da festa com os outros. E eu continuei sentado na minha mesa, fingindo que bebia alguma coisa.

Só então lembrei de Âmbar. Do que havia acontecido na outra noite. Da estranha transformação do cachorro pra um cão-demônio. Aquilo estava realmente me preocupando.

— Orebe! — Gritou Lucifer voltando a mesa. — Eu lembrei... Lembrei que eu não falei por que te chamei.

— Isso.

Ele estava claramente bêbado.

— Eu te chamei... Chamei por que eu soube, de fontes seguras. Muito seguras. Que estavam armando pra você.

— O que?! Quem?

— Não sei. Só to dizendo o que me falaram. E me falaram que você corria perigo. E eu quero mesmo te ajudar. Você é meu irmão, viu?! Amo você.

— Tá bom, tá bom. Também amo você.

— Você é o cara! Você é demais!

— Tá bom, ta bom.

Senti um calor surgir na festa por um instante e logo em seguida um grito que fez a música parar.

— Que droga tá acontecendo aqui? — gritou a voz masculina.

Todos pararam, olhando. Inclusive eu.

— Como vocês tem a audácia, a falta de respeito, de fazer uma festa... E não me chamar?

Todos comemoraram e voltaram a curtir a festa. O homem que havia gritado se aproximou da minha mesa e me olhou intrigado. Feições persas e longos cabelos cacheados com alguns fios grisalhos. Se vestia de forma despreocupado, mas ainda assim, mantinha um estilo.

— Você eu não conheço.

— Estamos empatados — respondi.

Ele olhou para Lucifer deitado sobre a mesa e sorriu.

— Isso sim é um governante!

— Com certeza — reentero.

— Asmodeus, prazer — falou estendendo a mão.

— Orebe, prazer — respondi ao gesto dele.

— Ah, carne de anjo no inferno.

— Minha carne tem um péssimo gosto, sério.

Ele riu e depois falou.

— Até breve, Orebe — ele estava de saída, quando resolveu voltar. — Mas antes.

Então se aproximou da mesa e chutou uma das pernas. Fazendo com que quebrasse e Lucifer acordasse, sobressaltado.

— NÃO, EU NÃO QUERO IR LÁ PRA BAIXO! — Gritou ele.

— Isso nunca perde a graça — comentou Asmodeus antes de se afastar.

Lucifer tentou voltar a respirar normal antes de falar.

— Ele me odeia.

— Por que ele te odiaria?

— Ele diz que estou no cargo dele. Mas eu não to aqui por que quero. Eu não tenho escolha.

Desviei o olhar para Lucifer sem entender bem.
Ele me guiou até sua sala e lá voltou a falar.

— Eu fui criado para ser o bode expiatório da humanindade, Orebe. Papai sabia que a melhor forma de sair em pune das coisas que ele fazia, era fazendo as pessoas colocarem a culpa em outra coisa que não fosse ele. Eu no caso. E foi o que elas fizeram. Eu nunca tive escolha. Não sabe como é ruim ser o garoto propaganda pra todo mal que existe esse mundo.

— Mas e o seu castigo?

— O meu castigo é nunca poder sair daqui, Orebe. Estou preso. Preso para sempre nesse lugar. Mas já estava escrito que eu seria a figura do diabo. Mesmo antes de qualquer coisa. Esse era o plano dEle.

— Isso não faz sentido — falei.

Ele balançou a cabeça e respirou fundo. Depois pôs as mãos sobre o rosto e pegou um pouco mais de ar.

— Deixa pra lá. Ah, cara, como odeio minha vida.

— Calma, mano.

— É complicado.

— Eu sei. Mas tenta se acalmar. Respira fundo. Vamos. Respira e expira.

Após alguns instantes de respiração ele se voltou pra mim.

— Isso foi bom. Caramba. Obrigado.

— Por nada.

— Por isso quero ajudar você, Orebe. Você é um cara legal. Ajudou o próprio diabo. Miguel tem sorte de ter você do lado dele.

— Tá bom, ta bom. Obrigado. Mas eu preciso saber de que tipo de ajuda você tá falando.

— Vou mandar um demônio pra cuidar de você pessoalmente .

— O que?! Não. Não quero chamar atenção.

— Não é esse o propósito. Eu quero ajudar você.

Me levantei da cadeira.

— Não precisa se incomodar, eu me viro.

— Eu sei. Você é imortal. Mas e as pessoas ao seu redor?

Eu senti aquela pergunta bem no fundo da minha alma. Não queria que Sarah e Layla se machucassem no meio disso. Nem mesmo Ariel ou Wiki. Eles eram pessoas boas.

—... Talvez uma namorada, sei lá.

Só me veio a imagem de Âmbar na mente. Claro que ela não é minha namorada, mas eu gostava dela. Não de uma forma fraternal. E se algo acontecesse a ela, eu não saberia o que fazer.

— Tudo bem, o que preciso fazer? — Perguntei.

— Por hora apenas viva normalmente. Logo mandarei meu melhor soldado para ajudar você.

— Tudo bem então.

Ele sorriu, apontou o dedo indicador pra mim e disse.

— Até mais.


O tempo não passa no inferno, isso é verdade. Eu ainda estava parado na rua e ainda era dia. Resolvo voltar pra casa e tentar fazer alguma coisa pra me distrair. Chegando em casa, vejo Sarah preparando o almoço.

— Não creio — falei ao chegar na cozinha.

— Ah, por favor, eu também posso cozinhar — falou ela mexendo uma panela e erguendo uma colher cheia de arroz para mim. Parecia que tinha cozinhado demais.

— Humm, mingau de arroz.

Ela soltou a colher e riu um pouco.

— Tudo bem. Talvez eu tenha perdido a prática. Acho que não sou uma boa mãe, né?!

— Ei, não diga isso. Você é a melhor!

— Eu mal paro em casa, filho. Você que cuida de tudo.

— Mas eu só faço isso por que você me ensinou bem.

Ela sorriu e passou as mãos nos olhos.

— Talvez — e então veio até mim e me apertou num abraço. — Sabe, eu sinto tanta falta de quando você era só o meu neném.

Era muito estranho ouvir ela falando daquilo. Eu não tinha aquelas lembranças. Elas foram colocadas nela, mas não são reais. Nada do que ela se lembra da "minha infância" realmente aconteceu. É triste, eu sei, mas faz parte da missão.

— Também sinto falta, mãe.

Ouço passos de alguém se aproximando da cozinha e me viro rapidamente para olhar.

— Que susto — falei ao perceber que era apenas Layla.

— Por que vocês estão se abraçando? — Ela perguntou.

— É o que os seres humanos costumam fazer pra demonstrar afeto. Normal você não saber disso.

— Ha-ha — ela esnobou. Depois foi até a geladeira e retirou uma garrafa e bebeu direto da boca.

Soltei do abraço de Sarah. Já estava me sentindo desconfortável.

— Depois joga essa garrafa no lixo. Não sei por onde andou sua boca — falei provocando ela.

— Vai a merda.

Sarah riu um pouco e depois parou ao levar uma encarada de Layla.

Entrei no quarto e fui tomar um banho e trocar de roupa. Depois deitei na cama e fiquei pensando nesses últimos anos. Tudo tem andando uma bagunça. Do meu lado de fora e do meu lado de dentro, tudo parecia confuso.

— Posso entrar? — Comenta, Sarah colocando a cabeça pela porta.

— Claro, entra.

Ela entrou e se sentou ao meu lado.

— Por que não me contou que estava namorando?

Demorei um pouco até entender a pergunta.

— O que?! Acho que também esqueceram de me avisar isso.

— Ah, filho, fala a verdade.

— Mas é a verdade. Não to namorando.

Um dos cantos da boca dela baixou. O sorriso torto que ela dava quando se chateava.

— Tudo bem — falou ao se levantar. — Então acho que devo mandar aquela moça lá na sala embora.

— Espera! Que moça?

Ela deu um sorrido malicioso.

— Uma linda garota. Que parece até uma boneca de tão fofa.

Pela descrição parecia Âmbar, então passei por Sarah apressado e olhei para a sala, meio escondido.
E realmente era ela. Estava sentada no sofá, olhando o celular.

— Pelo visto você conhece ela — Sarah sussurrou.

— Sim, conheço. Mas a gente não namora. Somos só amigos.

Eu estava claramente nervoso.

— Filho, eu te conheço. Não fui sempre velha, tá bom?! Mas tudo bem se não quiser falar sobre isso comigo. Só acho estranho você nunca ter me apresentado uma namorada.

Respirei fundo e tentei achar as palavras certas para falar com Sarah.

— Eu gosto dela. Só não sei como dizer e nem sei se devo dizer. Sei lá, ela é muito linda pra mim.

— Para com isso! Você é lindo!

— Todas as mães dizem isso.

— Verdade. Mas eu não sou apenas sua mãe. Sou sua amiga. E como amiga, digo que você é um cara mais legal que conheci. E se essa garota não vê isso também, não é a pessoa certa.

Eu a abracei.

— Obrigado, mãe.

— Por nada, filho.

Logo a soltei e fui até a sala. Estava nervoso e minhas mãos suavam, mas eu queria estar perto da Âmbar.

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