CAPÍTULO 10: Eu só queria que alguém me escutasse, mas tá difícil
Após passar pelo portal, estávamos parados ali na sala de Miguel. Ele e Jhudiel pareciam assustados. E a sala estava mergulhada em um silêncio incômodo.
— Orebe, do que isso se trata? — Falou Miguel intrigado.
— Miguel — corri até perto da mesa. — Sandalphon. O irmão gêmeo maligno do Metatron. Ele pretende libertar uns anjos antigos que estão presos na terra. Libertar a porra toda.
— Orebe, do que você tá falando? — Disse Miguel ignorando meu desespero.
— Você não ta entendendo! Metatron me disse tudo. Sandalphon está tentando matar todo mundo!
— Você se encontrou com Metatron?
— Sim — falei olhando para Lilith. — Agora a pouco. Eu tava com ele e com Raphael.
— Guardas — gritou Miguel. Alguns guardas entraram logo em seguida. — Prendam Orebe. Por traição contra o Céu e contra Deus.
— O que?! Tá doido? — Gritei quando um anjo agarrou meu braço. — Eu traí quem?!
— A Deus. Junto com Metatron — disse ele se levantando. — Metatron libertou o prisioneiro Gabriel, com a ajuda de Raphael. Se você estava com eles, você é um traidor também.
— O que?! Mas por que o Gabriel tava preso?
— Ele estava preso a milênios. Ele tem o dom de prever o futuro. Ter dons assim é contra as leis de Deus. Somente Deus pode ter esse dom.
— Isso é ridículo! — Gritei. — Você tá agindo feito um idiota!
Olhei para Jhudiel esperando que ela dissesse algo, mas ela só virou o rosto.
— Basta! — Gritou Miguel. — Leve já ele e essas outras bruxas junto com ele. O cheiro de bruxa infestou a sala.
— Já chega — disse Lilith. — Isso é perca de tempo.
Lilith derrubou dois guardas e me puxou para perto dela.
Ainda pude ver uma certa tristeza no olhar de Jhudiel antes de eu entrar no portal.
Caímos num quarto de hotel que parecia ser caro demais. Eva saiu vagando pelo quarto e Lilith foi atrás dela. Eu estava cansado demais. Me deitei numa poltrona e olhei pensativo para o caos que se desenrolava na minha cabeça. Em todo esse tempo eu nunca tinha ficado numa situação tão desconfortável com Miguel. Dizer que é desconfortável é até eufemismo.
Um copo foi colocada na mesinha de centro a minha frente.
— Você precisa beber — disse Lilith.
— Eu aceito um refrigerante.
Ela começou a encher o copo com um líquido de cor amadeirada.
— Ou então você pode encher meu copo com algum líquido desconhecido.
— É whisky — ela falou enchendo um copo pra ela e se sentando.
— Você só toma isso ou é impressão?!
— É minha fraqueza. Alguns não sabem nadar e outros são alcoólatras.
— Desnecessário — falei fingindo me chatear.
Ela virou o copo de uma só vez e encheu novamente.
— Mas fala a verdade pra mim: porque você nunca aprendeu a nadar?
— Eu acho que tenho medo de água. Não é como se eu visse um copo com água e saísse correndo ou algo assim. Mas só a ideia de ficar submerso já me causa um pânico descomunal.
— Mas de onde vem tanto medo? Você é imortal, não é?! Isso não te mataria de verdade.
— É. Bem, pra ser sincero tem uma explicação pra isso. Eu fui aprisionado durante uma das cruzadas. As pessoas da cidade achavam que eu tinha feito algum pacto com o diabo ou algo assim, porque eu não podia ser morto. Os Inquisitores sempre foram muito bons com torturas. Duraram semanas até eles quase desistirem. Aí um dia um deles deu uma ideia. Me acorrentaram, me colocaram numa jaula e me jogaram no mar.
— E aí?! Não deu certo obviamente.
— Não, não deu. Mas foi difícil. Eu lutava pra não engolir aquela água. Até que eu desistia. E vinha um rápido alívio quando eu deixava a água entrar. Sentia muita dor e em poucos minutos eu morria. E depois voltava a vida. E morria de novo. E fiquei nessa por meses. Até finalmente Miguel perceber meu sumiço. Jhudiel me achou e me tirou de lá. Levou alguns anos até eu conseguir superar isso. Por sorte minha memória é péssima.
— Agora faz sentido. Precisa fazer terapia — ela disse. Ela pareceu sincera, mas eu ri da afirmação.
— Somos seres imortais. Nossos problemas também são imortais. Se fizéssemos terapia a única conclusão sensata seria de que a gente não deveria nem existir.
— Você tá sendo bem niilista pra quem sempre fala pros outros aproveitarem a vida.
— Mas é diferente. Os humanos só tem uma vida. Eles tem que aproveitar ela. E calma aí, como que você sabe tanto sobre mim?!
— Quando soube que criaram um anjo só pra me caçar, eu me senti até lisonjeada. Mas obviamente eu precisava estar preparada. Então eu tentei aprender o máximo que pude sobre você.
— Stalker.
— Olha quem fala. Tá me perseguindo a milênios.
Rimos um pouco.
— Você nunca pensou em desistir? Por que eu nunca facilitei pra você.
— É. Eu notei. Mas sim. Já pensei em desistir. Muitas vezes.
— E porque nunca desistiu?
Apontei pras minhas costas.
— As asas. Eles disseram que elas iriam aparecer quando eu te encontrasse.
Ela se inclinou tentando ver alguma coisa.
— E elas apareceram?
— Não. Quem dera.
— Lilli! Lilli! — Gritou Eva vindo correndo da cozinha. — Onde que a gente ta?
— Num hotel. Descansando Lilith respondeu com a voz suave.
— Ah, bom — ela olhou pra mim. — E quem é esse?
— A gente já...
— É o Orebe. Um amigo nosso — Lilith disse me cortando.
— Ah, prazer — ela falou sorridente.
— Prazer — respondi intrigado.
— Porque não vai olhar o que tem pra comer?! — Lilith perguntou.
— Vou indo. Até já, Orebe.
— Até.
Quando ela se afastou Lilith falou.
— O cérebro dela já era.
— O que?
— Eu consegui manter ela viva até hoje. O corpo pelo menos. Mas as memórias foram definhando. E hoje em dia ela parece uma criança. Preciso ter muita paciência com ela. O corpo é imortal, mas a mente não.
— Vocês tem sorte de ter uma a outra — comentei.
— É. Com certeza. Ah, bem, como você tá com relação ao que aconteceu entre você e o grandalhão lá?
— O Miguel?! Eu fiquei bem chateado. Não imaginei que ele fosse me tratar como um criminoso.
— Ele tá magoado — disse uma voz atrás de mim.
Olhei rapidamente e era Jhudiel. Abatida, com o olhar meio perdido mexendo nas abotoaduras douradas de seu paletó como sempre.
Lilith se levantou rapidamente sacando uma adaga. Mas eu levantei a mão para dizer que estava tudo bem e para ela não atacar.
— Metatron era como um pai pra ele e você um irmão. Ele não tem muitas pessoas com quem contar. Apesar do tamanho, ele ainda é imaturo.
— E tem a você também — falei.
— Não é isso que ele pensa — ela disse forçando um sorriso. — Mas eu sei que você e os outros não fariam mal algum a ele. Confio em vocês.
O Fantasma surgiu bem ali entre a gente e olhou pra mim. Logo entendi o recado.
— Ah, não.
— Desculpa, Orebe.
Jhudiel sacou uma espada e desceu com ela sobre a minha cabeça. Eu virei pro lado e Lilith saltou para cima dela, dando tempo de eu correr para o corredor. Uma explosão foi ouvida e as paredes arrebentadas por duas lâminas gigantes e luminosas que saíam das costas de Jhudiel. Eu nunca tinha visto as asas de um anjo daquela distância, mas ver elas naquela circunstância não me animava.
— Não torne as coisas mais difíceis, Orebe. Tenho muito apreço por você — ela gritou.
— Não é assim que a gente demonstra isso — gritei de volta ofegante.
Continuei correndo desviando de algumas pessoas e esbarrando em outras.
Abri a porta de um quarto e saltei uma janela. Não olhei antes de saltar e tive que aceitar a pancada gigantesca que veio em seguida. Eu havia quebrado alguns ossos e não conseguia me mover mesmo que me esforçasse muito.
O Fantasma me olhava sorridente.
— Por sorte você é imortal — disse Jhudiel pousando do meu lado. — Não se preocupe, eu deixei suas amigas vivas. Só a mais alta que deu trabalho, mas agora ela tá dormindo.
Tentei emitir algum som, mas meu pescoço parecia ter sido quebrado na queda e ainda tava voltando ao lugar.
— Sinto muito por isso, Orebe. Você é um anjo legal.
Eu apaguei logo em seguida.
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