CAPÍTULO 1: Não é mais uma história sobre anjos


O sol fazia subir do asfalfo um calor infernal, enquanto os carros passavam, espalhando sua tão comum poluição. Por sorte, havia uma árvore me oferecendo uma sombra generosa.
Eu estava na frente da escola da minha irmã esperando ela sair, pensando que certamente ela ficaria bem chateada de me ver ali, afinal ela me odiava.

Segurava meu skate na mão, e falava com duas ou três crianças que passavam e me perguntavam se eu sabia andar naquilo.
Foi então que vi, escorada no muro da escola, uma garota segurando uma caixa de presentes e uma carta na mão. Ela tinha no rosto um semblante sorridente, quase que sonhador. Olhava o relógio a cada dez segundos. A pele oliva como a minha e o cabelo amarrado num coque alto. Resolvi me aproximar dela para conversar.

— E aí?

— Ah... Oi —  responde olhando
novamente para o portão.

— Esperando alguém? — Pergunto.

— Sim.

O sinal toca e vários alunos saem.
Minha irmã vem no meio deles e me olha com uma cara quase de nojo por eu estar ali. Usava os cachos amarrados num coque e outros lhe caindo sobre a testa. Ela então decide ficar conversando com uma amiga próxima ao portão.

Foi então que a garota segurando a caixa foi em direção a uma outra garota que estava de saída, conversando com umas amigas. A garota que saíra, ao ver a outra segurando as flores, voltou para dentro da escola. Ela logo baixou a cabeça, deixou a caixa cair e pôs as mãos no rosto a chorar.
Algumas pessoas riram, enquanto outras ficavam reclamando pela atitude da garota que rejeitara tal gesto.
Eu fui até a garota que chorava, toquei em seu ombro e a levei para longe daquilo.

— Calma, tá bom?! — falei.

A garota chorava ainda. A levei para se sentar um pouco distante dali, numa lanchonete.
Uma garçonete se aproximou e eu pedi uma água. Ela voltou com a água alguns minutos depois e eu ofereci pra ela.

— Obrigado — disse ela soluçando. Tomou um pouco e falou. —  Por que ela fez aquilo?! Ela dizia gostar de mim.

Eu respirei fundo e falei.

— Mano, nem todo mundo é chegado a esses gestos românticos, principalmente nos dias atuais. Fora que, essas coisas acabam acontecendo. Ainda mais na tua idade. Você ainda vai achar alguém que vai valorizar isso. Agora, calma, tá bom?!

— Eu nunca mais vou amar ninguém — disse ao amarrar os cabelos cacheados e curtos.

— Opa, opa. Não diga isso. Você é uma garota romântica, é bonita, educada. Eu não posso falar outras qualidades por que acabei de te conhecer. Mas não pode desistir do amor só por que alguém vacilou contigo.

Ela sorriu. Só então notei que ela usava aparelho.

— ...Tem um sorriso bonito também. Cara, não sofra por alguém que não merece você. Aliás, se a pessoa merecer você mesmo, não vai haver esse sofrimento.

Ela balançou a cabeça positivamente.

— Obrigado. Obrigado por tá fazendo isso por mim. E eu nem sei qual o seu nome.

Eu sorri.

— Orebe. Orebe Osborne, a vossa disposição. E o teu?

— Wikolia. Mas pode me chamar de Wiki.

— Nome diferente. Prazer em te conhecer, Wiki.

Lembrei da minha irmã e olhei em direção a escola.

— Olha, eu preciso ir agora, mas se precisar de mim, estou todos os dias aqui no fim da tarde — e então me levanto para ir embora. — Só... se cuida, tá bom?!

— Eu não moro por aqui, mas tá bom. Obrigado.

— Tudo bem. Não há de quê.

Chamei a garçonete, paguei a água e fui buscar minha irmã.
Vi ela ainda de costas, conversando com uma amiga e cutuquei seu ombro.

— Ah, é você?! — perguntou ela como se eu fosse a última pessoa do mundo que ela gostaria de ver.

Eu olhei para os lados fingindo que ela não falava comigo.

— Sim. Eu. Seu querido irmão — percebi que ela estava acompanhada de uma amiga. — E quem é essa sua amiga?

Ela parou por alguns segundos me encarando e então falou.

— Essa é a Vick.

— Oi? —  falei com a estranha garota.

— Oi. Você é o irmão da Layla?

— Infelizmente sim, mas vamos falar de coisas boas. Já sofro me lembrando disso todos os dias. Do que você gosta?

Fomos conversando até metade do caminho. Minha irmã completamente alheia a nossa conversa. Após atravessarmos a avenida, Vick continuou seu caminho e nós o nosso. Eu ainda carregava o meu skate na mão.
O caminho estava silencioso como sempre, até que minha irmã resolveu quebrar o silêncio.

— Porque você faz isso? —  perguntou ela parecendo claramente irritada.

— O que? —  pergunto já sabendo a resposta.

— Fica dando em cima das minhas amigas.

Fiquei olhando pro céu durante um tempo. A tarde já ia embora e eu sabia que quando chegasse em casa teria coisas para fazer.

— Responde!

— Foi mal.

— Grrrr! —  Esbravejou e então acelerou o passo.

A deixei ir na frente. Eu tinha muitas coisas para eu admirar naquele momento. Como a brisa do inverno anunciando sua chegada. Eu adorava aquilo. Coloquei meu skate no chão e fui patinando até chegar perto dela, eu sabia que eu tinha que falar alguma coisa, mas preferi ignorar.
Como tudo na vida.

Eu havia acabado de sair de uma decepção com uma garota, mas fazer o quê? Faz parte da missão.
Chegando já perto da Rua das Pétalas - foi esse o nome que dei para uma parte do caminho, que sempre que eu passava havia uma chuva de pétalas das cores amarelo e rosa, era um lindo espetáculo da natureza.

Avisto dois caras passando numa moto. Eles me encararam. Já sentia o que estava por vir.
Continuo patinando até me aproximar de um carro. Vejo meu reflexo nele; Short jeans folgado, regata azul de capuz e sapato. Cabelo cacheado bagunçado, pele oliva. Nem de longe um galã de novela. Sorte que eu nunca fui o tipo de cara que é apegado a aparência.

Passa a carteira, playboy!   gritou alguém atrapalhando meus pensamentos.

Me virei pra ver e eram os dois homens que eu havia visto passar na moto.

— Não tenho carteira, mano.

— Bora, porra! Não tô brincando! — disse descendo da moto. Ele segurava alguma coisa por baixo da camiseta. Realmente parecia estar armado.

Olhei pra trás, minha irmã havia corrido para uma casa ali perto. Os donos a deixaram entrar. Uma preocupação a menos.

— Tá afim de morrer?! — Ele gritou, parecendo bem irritado.

— Amigo, sério, não tenho nada.

— Dá logo um tiro nesse otário! — gritou o piloto. A voz abafada pelo capacete.

Olhei os dois. A humanidade as vezes me decepcionava. Eram apenas dois garotos que acham ser mais homens por carregarem uma arma.

Ele tirou a arma de debaixo da camisa e a apontou para minha cabeça e gritou novamente.

Vamo, porra!

A arma tremia em sua mão e eu apenas o olhava nos olhos.

— Eu não tenho o dia todo, é sério. Se for atirar, faz logo.

E ele apertou o gatilho.
Um som alto.
Um incômodo na testa.
A luz apagou.

Acordei quando a moto já se afastava. A testa doía bastante, mas nada que alguns analgésicos não ajudassem. Passei a mão na testa e senti a bala. Havia ficado alojada no crânio, ia dar trabalho de tirar.

— Droga — reclamei.

Senti alguém se aproximando. Era Ele. Com seu sobretudo preto e chapéu panamá de aba curta da mesma cor. Sempre com seu longo cabelo escuro amarrado em um rabo de cavalo.

—  Olha quem apareceu —  falei irritado.

Ele balançou a cabeça negativamente e seguiu o caminho.

— Eu to bem. Obrigado por perguntar.

Ele olhou para mim por cima do ombro, do meu ângulo de vista ele parecia de cabeça pra baixo, mas ainda deu pra perceber que ele me erguia seu dedo do meio.

— Eu odeio esse cara.

Levantei com cuidado e ainda podia ver ele se afastando.
Por sorte não havia ninguém naquela rua. O sangue escorria pelo meu rosto e pingava no chão.
Tirei a blusa e amarrei na testa pra parar o sangramento e me sentei no meio fio, só então percebi que estava sem meu skate.

Eles levaram meu skate, fala sério, pensei.
Após alguns minutos minha irmã vem correndo. Encosta as mãos geladas nos meus ombros, ela tremia e seus lábios estavam azuis de tão pálidos contrastando com o marrom escuro de sua pele. Ela vinha acompanhada de um casal de idosos que também pareciam assustados.

— Eles atiraram em você? — ela perguntou.

— Não. Só bateram a coronha na minha testa. Tá tudo bem — forcei um sorriso, mas deve ter saído meio macabro por que ela se afastou.

— É melhor ir no hospital, rapaz — disse o senhor de cabelos ralos e brancos se aproximando. — Já chamamos a polícia.

— Não, não. Tá tudo bem. Preciso ir pra casa — falei me levantando.

Seria complicado explicar pros médicos por que eu continuava vivo com uma bala na testa.

— Tem certeza? Não quer se sentar? Seria bom lavar isso aí — Disse a senhora.

— Sério. Tô bem. Obrigado pela preocupação. Vamos, Layla.

— A mãe vai ficar muito preocupada se te vir assim. Melhor lavar o rosto — disse, receosa.

— Está bem. Em casa eu lavo. Agora vamos, por favor.

Quanto antes eu arrancasse a bala, mais rápido a ferida iria fechar.

— Tudo bem.

— Obrigado por abrigarem ela — falei com o casal.

— A gente têm mais é que se ajudar mesmo, meu jovem — disse a senhora.

Então eu fui andando e Layla me seguiu. Atenciosa a cada passo meu.

— Eu tô bem, tá bom?! — Falei pra ver se ela se acalmava.

— Graças a Deus.

Ah, claro. Como se Ele ligasse, pensei.

Após alguns minutos de caminhada, avisto de longe, próximo a um terreno baldio e a um monte de nada, o condomínio em que morávamos. Uma construção alta coberta de ladrilhos brancos e cinzas. A maioria das casas era igual: cor de vinho, dois quartos, sala,cozinha e banheiro. E todas as casas eram divididas por letras ao invés de números. Nossa casa era a "Casa U".

Chegamos justo na hora em que Sara estava de saída para o trabalho. Ela estava próxima ao balcão da cozinha, verificando a bolsa.

— Cheguei — falo ao entrar.

— Oi, filho — ela diz verificando a bolsa, sem olhar pra mim.

Eu já estava indo para o meu quarto quando ela me puxa pelo braço.

— O que foi isso, menino?! Diz ao pôr as mãos no meu rosto.

— Caí de skate.

Olhei minha irmã por cima do ombro de Sara, e ela semicerrou os olhos em repreensão.

— Não quero mais saber de você andando naquilo! Olha só seu rosto —  ela tenta tocar na blusa já encharcada de sangue, mas me afasto. — Me deixa olhar isso aí. Ver se precisa de pontos.

— Eu cuido disso, Sara. Relaxa.

— Pra você é "mãe"! — disse ela me reprendendo. — E que tipo de enfermeira eu seria se não pudesse
cuidar do meu próprio filho?!

Ela não era realmente minha mãe. Nem sequer idade ela tinha pra isso, sendo que sou bem mais velho do que ela. Não que ela soubesse desse fato. Mas ela insistia que eu a chamasse de "mãe", por que ela acreditava que era. Só que algumas vezes eu esquecia da ignorância dela.

Mãe. Eu cuido disso. Relaxa.

E então entrei no quarto. Ainda pude ouvir ela murmurar após eu trancar a porta "Esse menino não tem um pingo de juízo".

Puxei uma mala de debaixo da cama e abri. Era a mala de ferramentas do ex marido da Sara. Peguei um alicate de bico e fui até o banheiro.
Tiro a blusa do rosto com dificuldade por conta do sangue seco que havia grudado. E vejo o estrago que fez. Eu ia precisar forçar bastante. Assim que coloquei a ponta do alicate na ferida, Ele apareceu.

— Fala sério — Falei.

Ele deu de ombros.
De perto dava para notar a cicatriz branca que ele tinha na testa. Um ponto esbranquiçado na pele bronzeada.

— Cara, eu realmente preciso fazer isso. Senão vai se curar por cima e vou ficar com dor de cabeça. Odeio ficar com dor de cabeça. Você sabe.

Ele sorriu, divertido.

— Deve ser bem engraçado desse ângulo — Então lembrei que ele só aparece quando minha vida corre perigo. E lembrei que ele tinha ido atrás dos homens que me roubaram.

— Você matou aqueles homens?!

Ele apenas me encarou através do espelho. Sem demonstrar uma única emoção.

— Isso é cansativo — falei.

Agarrei o projétil com as pontas de metal do alicate. Puxei até fazer um som esquisito e retirar a bala. Tinha ficado um buraco terrível. Joguei a cápsula na lixeira e olhei novamente para a porta do banheiro. Ele havia ido embora.

Fui tomar banho. O sangue descia pelo ralo junto com a água.
Quando finalmente terminei, fui me vestir e fazer um curativo na testa. Coloquei algumas mechas de cabelo pra frente, para tentar cobrir enquanto a ferida se fechava.
Foi só então que lembrei que eu tinha um compromisso.

Antes mesmo que eu pudesse pensar sobre, eu estava numa enorme sala de paredes totalmente brancas. Era possível ver toda uma cidade dourada dali de cima. E no horizonte, um céu resplandecente e azul. Ao meu lado haviam dois homens fortes vestindo ternos escuros.
E próximo à janela, um outro homem observava a cidade, acompanhado dele estava uma mulher usando um terno cinza. Eram Miguel e Jhudiel.

— Vocês tiveram muito azar, rapazes. Se tivessem vindo mais cedo, teriam me visto sem roupa — brinquei ainda enxugando meu cabelo com uma toalha.

— Espirituoso como sempre — disse Miguel.

— Adoro as palavras que você usa pra me ofender. É até fofo.

Ele olhou por cima do ombro e sorriu. Se aproximou de uma mesa de vidro que ficava entre nós dois e logo em seguida se sentou. O semblante carregado como todas as outras vezes que o vira. A pele marrom-avermelhada, os olhos escuros e o cavanhaque, já faziam parte dele. Era impossível não lembrar dele e não ligá-lo aquela aparência que ele adotara para si.

— Você conhece suas obrigações, Orebe.

— Sim, senhor — respondi. Coloquei minha toalha sobre o ombro.

— Algum sinal dela?

Eu balancei a cabeça negativamente. Já estava muito cansado de procurar. Ainda mais depois da última vez.

— Lucifer já foi até você?

— Não... Por que ele viria?!

— Ouvimos boatos de que ele tinha ligações com ela. Ele deve saber alguma coisa sobre. Caso ele vá, nos avise. Você precisa se reportar à mim. Sempre. Sabe disso.

— Sim. Eu sei disso.

Ele respirou fundo. Desabutuou os botões do paletó e falou.

— Vocês podem se retirar — falou aos outros anjos que continuavam parados ao meu lado.
Eles assentiram, saíram da sala e fecharam a porta atrás de si.

— Graças a Deus. Não aguentava mais segurar essa pose — disse suspirando.

— Ah, qual é. Você até que fica bem desse jeito — falei me divertindo. E me sentei junto a mesa de vidro.

— Olha, eu realmente não entendo como vim parar nesta posição. Lembra de quando, milênios atrás, nossa única preocupação era em proteger a humanidade?! Ou no meu caso me preparar para uma guerra inevitável que eu iria liderar contra meu irmão.

— Miguel, Miguel. Calma. Você tá nessa posição por que era o mais proximo à Deus. Ninguém melhor do que você para liderar.

Ele. Ele seria milhões de vezes melhor do que eu. Ele é Deus!

— Não se subestime, senhor — disse Jhudiel enquanto brincava com a abotoadura de seu paletó. O cabelo curto preto e ondulado combinava com ela. Ela tinha um sorriso doce e acolhedor. A pele num bege quente.

Miguel a olhou por um instante. Eu resolvi cortar o desconforto que parecia surgir.

— Tudo bem, tudo bem. Você tem razão. Me fala qual o real motivo de eu ter vindo aqui?

Ele se endireita na cadeira e respira, olhando para mim.

— Ouvi dizer que tem um sábio perto de sua casa. Deveria ir até lá. Eles são ótimos informantes.

Sábios são anjos caídos. Seres celestiais que resolveram viver como humanos por amor, inveja, piedade, enfim, por diversos motivos, o que importa é que graças a eles eu consegui algumas pistas... Escassas; melhor do que pista nenhuma. E sempre que Miguel sabia de um sábio, ele me informava sobre eles.

— Claro. Só me passar o endereço que eu vou lá. Ele é ao menos bonito?!

Ele riu, divertido.

— Você é uma figura, Orebe!

— Mas ele é ou não!?

Alguém abre a porta num rompante.

— Senhor, eu tentei avisar que estava ocupado... —  já se desculpava a secretária.

Um homem já velho, de semblante sério, usando uma túnica semelhante a de um padre, entrava apressado.

— Metatron — cumprimentou Miguel ao se levantar e já recuperando a aparência confiante.

Metatron foi cumprimentá-lo. Em seguida olhou para mim e disse.

— Então você é o Orebe.

Assenti e me levantei para falar com ele.

— É um prazer conhecer o senhor — falei estendendo a mão. —Já ouvi muito falar das coisas que fez.

— A grande maioria é exagero, de certo - respondeu sorrindo. O rosto dele era de um homem idoso, a pele num tom profundo de mogno, com algumas manchas escuras no rosto, já da idade. O cabelo branco bem curto e uma barba branca falhada.

Eu sorri, nervoso.

— O que posso fazer pelo senhor? — Perguntou Miguel.

Metatron olhou para mim novamente. Só então percebi que eu estava sobrando. Miguel, ao perceber, falou.

— Jhudiel, leve Orebe até o sábio, por favor.

— Sim, senhor — respondeu Jhudiel, então veio em minha direção.

Ela me conduziu até fora da sala e em um piscar de olhos, eu estava numa espécie de terreno abandonado. Com algumas árvores ao redor e folhas secas aos meus pés. A noite já havia caído.
Jhudiel me pediu para que eu a acompanhasse.

Ela ficava mexendo na abotoadura de seu paletó a cada segundo. Parecia pensativa.

— Como tá indo no novo emprego? — Perguntei.

Ela sorriu.

— Ah, eu adoro meu trabalho. Sempre adorei. É muito gratificante ajudar Miguel em suas decisões. Só queria que ele fosse mais seguro.

— Eu não entendo como vocês experimentam essas emoções humanas com tanta intensidade.

— Não temos bem uma opção. Quanto mais tempo ficamos nessa forma humana, mais humano ficamos. É algo que acontece com certa naturalidade, sem termos controle disso... Olha, chegamos.

Ela me apontou uma pequena cabana feita de restos de eletrodomésticos e galhos secos. Uma construção que ficava praticamente invisível a olhos curiosos. Nem mesmo eu, que sempre costumo prestar atenção em tudo, havia percebido aquele amontoado de sucata bem ali.

— Obrigado, Jhudiel.

— Disponha.

E então ela sumiu.

Caminhei em direção a pequena construção. Bati na porta de uma geladeira enferrujada, que parecia ser a porta dali, e alguns segundos depois, alguém respondeu lá de dentro.

— Quem é?

— Me chamo Orebe. Miguel me mandou aqui.

Em seguida ouvi alguma coisa caindo no chão, ele esbravejando e logo veio abrir a porta.

— Pode entrar — disse o garoto dono da voz.

Parecia apenas um adolescente. De pele clara e olhos estreitos e angulares, o cabelo meio castanho avermelhado caindo sobre o rosto. Vestia uma regata branca folgada e uma calça cargo cinza.

Apesar de eu não ser alto tive de me abaixar para passar pela pequena abertura que estava encoberta pela porta da geladeira.

O lugar estava escuro, mas conforme ele andava, umas velas se acendiam.

— Pode se sentar aí — apontou uma TV velha no chão.

Me sentei com certo medo dela quebrar.

Ele pegou o que parecia um maço de cigarros do bolso da calça. E um cigarro se acendeu magicamente antes que ele chegasse em sua boca.

— Aqui é um tédio. E eu não gosto de humanos — disse ele finalmente soltando uma fumaça azulada.

Ofereceu um cigarro pra mim e eu fiz que não com a cabeça.

Agora pude perceber, graças à iluminação amarelada vinda das velas, que ele tinha uma tatuagem de dragão que parecia começar no peito e terminava com a cabeça da fera abaixo do seu olho esquerdo. E outra que se pareciam com labaredas vermelhas que cobriam boa parte do seu braço direito.

— Então, qual a sua pergunta para este sábio? — perguntou ele.

— Onde está Lilith?

O que eu havia aprendido sobre ela, foi que ela foi a primeira mulher de Adão. Feita, assim como ele, do pó da terra. Ela não se dava muito bem com ele. Então certo dia, Lilith abandonou o marido e foi viver entre os demônios, com quem teve vários filhos; também demônios. Adão ficou puto e pediu para que Deus fizesse alguma coisa. Deus determinou que ela voltasse para casa, mas ela não quis, então foi condenada a ser considerada um demônio comum como os outros. Então um dia, ela quis se vingar e cometeu um crime - não me falaram que crime foi, apenas que ela o cometeu e eu precisava encontrá-la e levá-la até o Tribunal Divino.

Ele pôs o cigarro na boca e me encarou um pouco.

— E eu poderia saber o que Miguel quer com Lilith?

— À quanto tempo você está afastado do Céu?

— Não gosto dos anjos. São todos uns idiotas sem graça. Saí de lá fazem mais de mil anos.

— Então você não sabe o que tem acontecido em todo esse tempo?!

— Não mesmo.

Eu respirei fundo.

— É simples: Lilith cometeu um crime contra o Céu e me colocaram para achá-la.

— E você tá indo bem?

— Não... — falei frustrado.

— Então por que continua nesse trabalho?

— Por que eu quero ser um anjo de verdade.

— Ah... As asas. Você é um orgânico.

— Sim.

— Não achei que eles realmente fossem fazer isso. Mas pelo visto eles fizeram muita coisa nesse meio tempo que fiquei longe.

— Não faz ideia. Então, pode me ajudar?

— O que você quer que eu faça? — Pergunta ele arqueando as sobrancelhas.

— Sei lá. Não tem nenhuma informação?

— Ah, tá bom. Foi mal. Eu ouvi sim dizer sobre uma mulher que tá causando uns problemas pros mortais.

— Mas isso é muito vago.

— A mulher era uma feiticeira. Disseram que ela funda seitas por onde passa. Seitas apenas de mulheres. Da última vez, estava numa cidade próxima daqui. Talvez consiga alguma coisa chegando lá.

— Onde?

— Fortaleza.

— Conheço. Tudo bem. Obrigado.

Já me levantava pra ir embora quando ele falou.

— E, rapaz, cuidado. Você pode acabar encontrando o que procura.

— Oxe, porque você disse isso?

— Sei lá, parece uma boa frase de efeito.

— Ah, achei que você tava me ameaçando.

— Não, não. Nada a ver — falou forçando um risada.

— Então tá. Tô indo embora.

— Ta bom, valeu.

Saí de lá e meu único pensamento era: Eu hein, cara estranho.

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