V - Lavoutin
Deu para notar que havia uma festa rolando com mais ou menos uma quadra de distância. A música era tão alta que o chão vibrava e não havia a menor possibilidade de conseguir estacionar dentro das leis de trânsito. Como não pretendia permanecer naquele antro por muito tempo, coloquei a moto sobre a grama verde demais para ser de verdade.
A porta da frente foi escancarada quando um casal nitidamente alterado saiu rindo e cambaleando na direção do asfalto. A porta permaneceu aberta e eu me esgueirei como uma gatuna.
O lugar estava muito escuro e apesar das luzes azuis estroboscópicas que piscavam incessantemente, eu mal era capaz de enxergar os contornos das pessoas e dos moveis. A música eletrônica fazia meus ouvidos pulsarem e a massa de corpos em movimento me dava arrepios. Era impossível andar sem trombar em algo ou alguém e chegar ao outro lado do ambiente parecia uma missão impossível.
Não gostava de festas. A única que eu tinha ido, antes do acidente, por insistência de uma amiga que há muito eu desconhecia, foi muito mais leve que esta. Certamente naquela não tinha havido ninguém bêbado o suficiente para dançar nu em cima da mesa de centro.
Saindo da enorme sala de estar, entrei em um corredor iluminado por uma luz vermelha muito convidativa. Não tive dificuldades para encontrar o demônio platinado ali.
Ele estava no canto do corredor flertando com uma morena alta que estava encostada em uma porta. Aquela imagem automaticamente me fez sorrir. O que é melhor que afrontar um demônio? Destruir seu encontro, é claro!
Caminhei decidida e cutuquei suas costas largas, esperando que ele se virasse. Ele olhou para trás com um sorriso, mas seu rosto caiu assim que me reconheceu.
― O que está fazendo aqui? ― Rosnou, seu sotaque se tornando mais carregado pela raiva. Ele deu um passo em minha direção e eu dei dois para trás como em uma dança.
― Como assim? ― Falei franzindo as sobrancelhas e fingindo inocência. ― É uma festa de boas-vindas, não é? Vim desejar boas-vindas! ― Exclamei tentando ficar seria, mas falhando miseravelmente ao deixar um flash de dentes escapar. Sua reação havia ganhado a minha noite.
Ele levantou as sobrancelhas demonstrando toda a sua incredulidade naquele único movimento.
― Ah, é claro ― falou ironicamente ― Você se desviou da sua vida tão "ocupada" apenas para me privilegiar com sua presença?
A morena atrás dele passou por nós obviamente cansada de ser deixada de lado e eu contive a vontade de sorrir ainda mais. Ah, aquilo estava ficando cada vez melhor.
― Tudo pelo prazer da sua companhia ― garanti. ― E é certo que não foi nenhum incomodo pisar em um lugar que você disse que meus pés nunca tocariam ― completei e não pude evitar saltitar como uma criança de cinco anos mal completos.
Mikhail trazia o pior de mim e sua presença me fazia agir infantilmente com meu desejo insano de irritá-lo.
Ele me empurrou de leve na direção do umbral pelo qual eu havia passado para chegar até ali.
― Você é ridícula e não deveria estar aqui ― declarou olhando ao redor. ― Isso pode ser perigoso ― completou misteriosamente.
― O que pode haver de perigoso em uma festa russa?! ― Enfrentei risonha antes que um vaso de cristal vazio se estilhaçasse na parede, próximo de nós.
Olhei para a direção de onde ele havia vindo e então para Mikhail que não parecia nem um pouco surpreso.
― Elas podem ficar selvagens ― respondeu. ― Vá para casa, Chloe Rivers ― o som do "r" forte e arrastado. ― Isso aqui não é lugar para você.
Dei meia volta aturdida, evitando pisar no vidro quebrado que me trazia péssimas recordações.
A festa parecia ligeiramente diferente, quando regressei para a sala de estar. A luz agora era roxa, tubos com conteúdo fluorescente eram passados de mão em mão e casais se mexiam obscenamente.
Mikhail tinha razão, admiti com pesar, havia sido uma péssima ideia ir lá. Precisava sair dali imediatamente, a casa estava cheia de traficantes mafiosos russos!
Olhei para os lados buscando a porta por onde eu havia entrado, mas as luzes piscantes me confundiam e eu não conseguia ver a saída nem tampouco me lembrar de que lado eu havia vindo. Meu coração começou a acelerar com a sensação de estar completamente perdida conforme eu entrava em pânico.
Trombei em algo duro e braços fortes me ampararam me impedindo de cair. Olhei para cima e vi cabelos e olhos escuros me encarando. Seu enorme sorriso era tão brilhante que era capaz de cegar qualquer um, mas eu parecia incapaz de desviar o olhar.
― Olá, gatinha ― declarou me soltando finalmente. ― Eu sou Jussie.
Me afastei imediatamente, incomodada pelo seu toque indesejado.
― Como é seu nome, gatinha? ― Perguntou sorrindo. Seus lábios eram muito finos e seus olhos eram um poço escuro e profundo.
― Não me chame assim, por favor ― falei limpando uma poeira imaginária dos ombros ― Sou Chloe.
Ele puxou minha mão e a beijou fazendo uma reverência ridícula.
― Você foi convidada pelo cafajeste do Mikhail? ― Seu sotaque era estranho, não carregado e russo como o do dito cujo. Era leve, calmo e cadenciado, talvez ele fosse... italiano? Ótimo, havia mafiosos peninsulares ali também.
Recuei deixando o braço cair de volta para seu lugar de direito.
― Eu não fui exatamente convidada ― explanei.
Então ele gargalhou alto. Sua cabeça jogada para trás, seu pescoço esticado, seu pomo de adão subindo e descendo. O movimento era estranho, exagerado. Ele estava drogado?
― Mikhail é meu melhor amigo, mas ele totalmente merece um diamante que o desafie ― as palavras "melhor" e "amigo" combinadas chamaram minha atenção e eu estreitei os olhos para ele.
― Vocês são amigos há muito tempo? ― Perguntei receosa. Seus olhos brilharam como se escondessem um segredo.
― Muito, muito tempo. Já nos conhecíamos antes de ele vir para cá e escolher minha gentil casa como sua morada provisória.
― Vocês moram juntos? Só os dois? ― Estranhei. Será que eles...?
Ele deu um sorriso afiado e suas sobrancelhas subiram com diversão.
― Não tenha más ideias, gatinha. Moramos na mesma casa, mas não sozinhos. Várias outras pessoas vivem aqui. Alguns por pouco tempo e outros por um longo período ― ele deu de ombros. Será que aquele era um lar adotivo? Mas se fosse, duvido que eles tivessem permissão para fazer qualquer festa, que dirá uma daquelas. ― Por que estamos falando da minha casa mesmo, hein? Já que você está aqui, linda, ainda que de penetra, acho que você merece conhecer toda a amplidão de uma verdadeira festa.
― Uma festa russa? ― Indaguei com o cenho franzido.
Ele riu novamente como se eu fosse sua maior fonte de diversão em muitos anos.
― Quase isso ― respondeu. ― Vamos ― falou se virando e começando a andar. Eu tinha uma escolha ali. Segui-lo ou ir para casa, lugar de onde eu não deveria nem ter saído para início de conversa.
O acompanhei.
Ele nos guiou até uma mesa longa, onde havia um balde com aqueles tubos fluorescentes que eu vi sendo distribuídos.
― O que é isso? ― Inquiri curiosa, os olhos fixos no recipiente.
― Lavoutin ― devolveu sem maiores explicações.
― É uma droga?
Ele deu de ombros começando a ficar entediado.
― Você pode chamar disso.
― Nunca ouvi falar ― confessei. Ele balançou a cabeça. Um flash de dentes em um sorriso mordaz. ― É algo russo?
― Nem tudo aqui é russo, gatinha, eu certamente não sou ― ele tomou um tubo nas mãos. ― Não, o Lavoutin está por toda parte. ― Ele se virou para mim: ― Quer experimentar? ― Ele chacoalhou o vidrinho na frente dos meus olhos e eu acompanhei o movimento. A vontade de tomar aquele líquido estranho era irracional e inexplicável.
Balancei a cabeça para esquecer aquela idiotice.
― Não vim aqui para usar drogas, tenho que estar em casa cedo ― justifiquei, mas mesmo que fosse verdade, eu sabia que parecia apenas uma desculpa sem-graça.
― Ora, não seja chata, Chloe ― revirou os olhos. ― Você não ouviu nada do que eu disse, gatinha? ― Questionou fingindo-se de magoado, a mão esquerda no peito como se sentisse dor. ― Não é nenhuma droga.
― Preciso dirigir minha moto, Jussie ― avisei quase suplicante, meus olhos insistindo em se desviar de volta para aquilo em suas mãos.
― Chloe ― riu. ― Não é um entorpecente, não vai afetar seus sentidos, só vai... melhorá-los por um curto período.
― Quais são os efeitos colaterais? ― Cedi.
Ele riu e eu senti como se, se ele estivesse com as mãos livres, teria batido palmas.
― Pupilas dilatadas, coração acelerado, uma leve falta de percepção do tempo... Nada grave. Isso só vai te fazer sentir mais fortemente.
Aquela frase derrubou o que havia sobrado das minhas defesas. Sentir? Há quanto tempo eu não sentia nada além de dor e raiva?
― Me dê um ― pedi. Ele me entregou o tubo e finalmente bateu palmas como se eu tivesse feito seu dia.
Destampei e o encarei, suas sobrancelhas estavam levantadas em expectativa. Tomei todo o líquido em um gole só, olhando em seus olhos escuros como prova. Eu sempre cedia a um desafio.
Foi como se desembaçassem um vidro. Eu via e ouvia tudo com mais precisão. Sentia meu coração correndo em uma velocidade louca e tudo parecia insanamente mais nítido.
Cambaleei e precisei me apoiar novamente no moreno a minha frente.
― Ei, gatinha ― chamou. ― Vai com calma.
― Você pode pegar um copo de água para mim? ― Perguntei com a voz rouca tentando me manter nos meus próprios pés.
― É claro ― garantiu ― não quero que você morra na minha festa. Não saia daí, gatinha, eu já volto.
Jussie se retirou. Meu coração acelerado fazia minhas mãos tremerem e meus pensamentos a jato me deixavam extremamente confusa.
Abaixei meu olhar e captei o brilho do balde. Inalei com força e antes que eu soubesse o que estava fazendo, eu havia enfiado a mão no pote e estava correndo para a porta.
Tropecei na grama, mas consegui chegar até a moto em segurança e parti para casa sem capacete, aproveitando o vento frio da noite primaveril, tentando esfriar não só a pele, mas a mente.
Após guardar a moto na garagem, corri para o quarto e logo eu estava sentada na minha cama encarando os quatro tubos que eu havia pego, espalhados na minha frente.
O que aquilo havia me feito sentir... o que era aquilo? O que aquilo causaria a longo prazo? Será que meus neurônios morreram com aquela única ingestão? Por que eu não tinha feito mais perguntas para o moreno?
Olhei para o relógio e me assustei com o que vi. Já eram onze horas? Eu tinha certeza de que havia saído pouco depois das nove. Havia se passado todo esse tempo?
Guardei os vidros invólucros na minha bolsa e me preparei para dormir.
Ao contrário do que eu esperava, levando em consideração minha mente e coração correndo, dormi em poucos minutos, mas não tardou eu desejar que não houvesse feito.
Eu estava na água.
Tanta, tanta água.
Eu não conseguia respirar, não conseguia nadar em direção a superfície. Em meu desespero, demorei para notar que estava em presa, mas também não conseguia me soltar.
Me debatia ensandecida, incapaz de inspirar, desesperada por oxigênio, presa por um algoz invisível.
Acordei completamente encharcada de suor e sem ter ideia do que aquele sonho maluco representava, mas eu nunca soube, não é? Nunca saberia também. Meus sonhos eram um mistério tão grande como o universo, os oceanos ou o tempo.
A noite anterior voltou a minha mente como um flash e eu corri para a bolsa para ter certeza de que toda aquela loucura fora real.
Fora, de fato. Os quatro frascos ainda estavam lá, intactos.
Se Jussie era realmente amigo de Mikhail como ele havia afirmado e ele parecia tão jovem quanto nós, isso significava que ele estudava na nossa escola, não é?
Eu precisava falar com ele, descobrir o que realmente era aquilo, conhecer seus efeitos e talvez, quem sabe, até conseguir mais alguns frascos.
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