IX - Ceifadores do Campo
Me vesti como a "Chloe melhorando" na segunda, não veria Bella, mas mal não faria, certo?
Não vi Liam durante as três primeiras aulas. Esperava que tivéssemos alguma aula em comum para que pudéssemos ao menos conversar civilizadamente, agora ambos mais calmos, mas não foi até o intervalo que eu o encontrei.
A comoção no refeitório era intensa e não foi difícil perceber que eram as Valkyrias acumuladas em volta de uma mesa que estava à direita demais para ser a sua usual. Só foi necessária uma olhada para que eu descobrisse a fonte de toda a agitação.
Liam comia de cabeça baixa como se nem ao menos ouvisse todo aquele cacarejar ao seu redor.
Dei meia-volta e sai do refeitório, a fome completamente perdida.
Aquele era o comportamento padrão das Valkyrias e para ser sincera sempre pensei que foi por isso que elas receberam esse nome. Ceifadores do campo, hein? O fato de ser Liam quem elas perseguiam não deveria me incomodar, mas não poderia ser Mikhail seu alvo?
Aquilo era irracional. Havia expulsado Liam da minha casa no sábado, furiosa e na defensiva por suas palavras. Como agora poderia estar brava por ele estar recebendo uma atenção que claramente não queria?
Aquilo era ciúmes?
Como, se eu não sentia nada daquilo que segundo ele eu deveria?
Sem perceber, eu havia caminhado até as arquibancadas. Sentei-me debaixo da estrutura de ferro, a sombra. Puxei a grama verde apenas para ter o que fazer com as mãos e me lembrei do meu encontro com Jussie, na semana anterior.
Onde estava Mikhail, afinal? Ele era o melhor amigo de Jussie, não era? Como, se ele havia acabado de chegar da Rússia?
Talvez eu estivesse enganada e ele tivesse apenas mudado de escola e não imigrado naquele momento. Ele com certeza dominava nossa língua muito bem para alguém que havia acabado de chegar.
Minha cabeça dava voltas e eu só queria que aquilo parasse.
Era isso que o Lavoutin fazia, não era?
Além de disparar meu coração, ele também me fazia perder a noção do tempo e eu só queria desligar por alguns minutos.
Vasculhei a minha bolsa e girei o frasco entre os dedos. O líquido fluorescente se moveu e pequenos pontos se formaram no vidro.
Aquilo era estranho, como um coágulo, mas não me impediu de tomar até a última gota. Fechei os olhos por alguns segundos para aproveitar a sensação de adrenalina, mas os abri novamente com alguém chacoalhando meus ombros.
― Ei, gatinha ― chamou Jussie, seu sorriso característico sempre no lugar. ― Cabulando aula?
Suspirei sabendo que não podia mais fazer aquilo. Aonde eu estava com a cabeça?
― Só estava descansando um pouco ― menti com a voz rouca.
Ele bagunçou o cabelo escuro normalmente já espetado e se sentou ao meu lado puxando os joelhos ossudos para o peito.
― Você não pode ficar tão desprotegida assim, gatinha. E se um vampiro te pegar e sugar todo o seu sangue? ― perguntou fazendo uma pose assustadora em minha direção, dentes expostos e dedos em formato de garras.
Eu ri, mas logo fiquei séria.
― Você conseguiu o Lavoutin que eu te pedi, Jussie? ― inquiri tombando a cabeça para encará-lo.
Ele endureceu ao meu lado como se tivesse virado mármore e eu soube imediatamente que ele negaria. Imaginei se teria algo a ver com a conversa que o escutei tendo com Mikhail.
― Sinto muito te decepcionar, gatinha, mas parece que o produto está em falta ― ele sorriu sem graça e seus olhos se desviaram para o chão e ele fez um som de engasgo no fundo da garganta: ― Onde arrumou isso? ― perguntou parecendo alarmado e eu segui seu olhar. O tubo de Lavoutin que deve ter rolado dos meus dedos quando cochilei, repousava solitário aos meus pés.
― Foi na festa ― murmurei de má vontade, afinal não queria que ele descobrisse toda a verdade.
― Quantos você pegou, Chloe? ― questionou com urgência, agarrando meus ombros como se a pergunta valesse um milhão de dólares.
― Só esse ― menti. ― Eu precisava relaxar.
Ele suspirou e me soltou. Se levantou e limpou a poeira da calça preta:
― Tenho que ir ― declarou ― Tenho um encontro com Brad para o almoço.
Almoço? Eu havia perdido as três últimas aulas?
― Brad? ― disfarcei. ― Como o quarterback-Brad?
Ele mexeu a cabeça como se me avaliasse e sorriu:
― Mais como o rato-de-biblioteca-Brad.
Sorri de volta o encarando, pronta para alfinetá-lo:
― Pelo menos, se você se atrasar, sabe onde encontrá-lo.
Ele riu:
― Você é a pior, Chloe.
Então ele foi embora, ainda rindo, assim como havia feito alguns dias antes, naquele mesmo lugar.
Eu só tinha dois vidros de Lavoutin.
Naquela noite, eu sonhei que estava em um tanque de peixes. Diferente do outro dia, eu não tinha dificuldades para respirar. Nadei em meio ao turbilhão dourado e vermelho, verdadeiramente me divertindo. Talvez, pela primeira vez em muito tempo, aquilo fosse realmente um sonho e não pesadelo.
De repente, as luzes se apagaram e pairei no escuro sentindo os peixinhos se afastarem de mim, um feixe verde fluorescente se aproximou e outro e mais outro e em poucos segundos eu estava cercada. As luzes se acenderam novamente e eu pude ver o que eram aqueles pontos brilhantes.
Piranhas.
Centenas ao meu redor, os dentes expostos, horrendas.
Olhei para cima buscando escapatória, mas aquilo não era um tanque como eu havia pensado anteriormente, era um aquário e ele estava fechado.
As piranhas vieram em minha direção e eu berrei conforme elas arrancavam a minha carne até só restar ossos.
***
No caminho para o meu encontro semanal com Bella, percebi que não havia feito o que ela me pediu. Sentei-me no chão do corredor e resgatei a folha, ainda mais amassada que antes, da bolsa. Destampei a caneta com a boca e tentei alisar o papel contra o joelho para que parecesse ao menos decente. E então, travei.
O que diabos eu queria para o futuro?
A única coisa que eu podia pensar no momento era me acertar com Liam, mas não podia explicar para Bella o porquê havíamos nos desentendido em primeiro lugar. Rabisquei uma palavra qualquer e corri até a sala da morena, ainda mais atrasada. Bati na porta e ao ouvir o seu singelo "entre", obedeci.
Ela tirou seus óculos e sorriu como se não soubesse que iria me ver. Bella parecia tão jovem as vezes que chegava a ser assustador.
Me sentei na velha poltrona de sempre e olhei em volta vendo aquela paisagem tão familiar. Bella não tinha porta-retratos em seu escritório e eu sempre achei aquilo estranho. Ela era tão jovem, não tinha família?
― Bom dia, Chloe! Como foi a sua semana? ― Ela era sempre tão sorridente que parecia brilhar.
― Foi boa ― menti encarando a janela atrás de sua cabeça.
― Como anda nosso combinado? ― seu olhar queimava e tive que fazer uma força descomunal para não devolver.
― Estou me esforçando ― garanti.
― Teve dificuldades com o novo item da lista? ― indagou batendo o lápis na ponta da mesa.
― Não tanto ― menti meneando com a cabeça e lhe entreguei o papel.
Ela leu em silencio e sorriu antes de devolvê-lo:
― Você tem alguém em mente?
Minha mente automaticamente derivou para Liam e seus olhos tristes.
Olhei para o papel em sua mão, a caligrafia apressada e de lado dificultava o entendimento da palavra, mas não impedia sua leitura.
Namorar.
Após o almoço com tia Carol, me dirigi até o Popsicle Dreams. O lugar estava as moscas e eu distraidamente limpava o balcão quando ouvi o sino da porta e vi, com o canto do olho, alguém se sentando em uma das banquetas.
― Em que eu posso ajudar? ― perguntei me virando.
Liam estava com os olhos abaixados, puxando os nós dos dedos. Ele usava uma camisa vermelha e quando olhou para mim notei que ele possuía olheiras roxas:
― Você pode pegar o mesmo daquele dia? ― questionou com a voz fraca.
Peguei o cupcake na vitrine e o coloquei na sua frente. Ele o encarou por alguns segundos ao invés de atacá-lo como imaginei que faria.
― Eu queria me desculpar ― dissemos em uníssono.
Ele levantou o olhar, surpreso e nós rimos da situação.
― Eu exagerei ― me adiantei.
― E eu fui com muita sede ao pote ― esfregou as mãos nos olhos ― te assustei.
Eu acenei, pois ele estava certo. Fiquei assustada, de fato, e entrei em modo de defesa.
― Eu gostaria de ir com calma, se possível ― limpei a garganta. ― Ser sua amiga, primeiro, sem pressa.
Ele concordou e deu um sorriso triste:
― Eu esperava menos que isso.
Um pensamento passou por minha cabeça e eu suspirei:
― Isso não vai te fazer mal, não é? Te matar ou algo assim?
Ele riu parecendo se divertir com a minha preocupação:
― Eu vou ficar bem ― garantiu dando seu sorriso de criança travessa. Sorri de volta e ele começou a devorar seu cupcake rosa.
― Você tem um celular? Estou ficando com medo de que não tenhamos nenhuma aula em comum ― ofereci dando de ombros.
Ele tirou um pequeno objeto preto do bolso. Era um celular antigo e aquilo era tão a cara dele que eu sorri.
― É difícil ter algo que sobreviva, você sabe, as transformações, mas pelo menos dá para mandar mensagens ― explicou, percebendo minha diversão.
Peguei o celular de sua mão e digitei meu número. Ele salvou e sorriu para mim. Aquele sorriso foi a coisa mais brilhante que eu vi desde o acidente.
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