IV - Borboleta em Chamas

Eu estava em uma floresta, o cheiro orgânico era tão pungente que era difícil inspirar. As folhas afiadas rasgavam minha roupa e minha carne, sentia-me sendo observada como se as arvores tivessem vida.

O odor de queimado foi tão abrupto que me virei imediatamente ao senti-lo, apenas para ver dezenas de borboletas em chamas ao meu redor, decaindo, sendo apagadas da existência. Uma delas pousou em mim e eu queimei com ela.

Acordei como sempre acordava, descoberta e suada. Tomei um banho e vesti-me para escola. Não tinha encontro com Bella hoje, então não me importei em me vestir como a "Chloe melhorando". Não gostava de mostrar minha pele, não pelas poucas cicatrizes, mas pela sensação que me lembrava dos meus pesadelos.

Quando passava pelo corredor a caminho da minha aula de literatura esbarrei em Chaz Torres.

― Olhe por onde anda, órfã ― cuspiu em minha direção.

― O que disse? ― questionei me virando.

Ele me deu um sorriso cruel:

― Mandei você olhar por onde anda.

Aquilo foi o suficiente para mim.

― Quem você pensa que é, projeto de gangster estúpido? ― berrei antes de me atirar nele.

Caímos no chão com as pernas emaranhadas, minhas unhas atacando seu fígado e os dedos dele tentando alcançar meus olhos.

― Ei, vocês! O que pensam que estão fazendo? ― perguntou uma voz vinda de longe, eu estava muito desperta na raiva para me importar, a nevoa vermelha cobria a minha visão.

Me arrancaram de cima dele, ainda chutando e gritando. Quando olhei ao redor percebi que um pequeno círculo de cochichos havia se formado ao nosso redor.

O ponto alto da minha vida.

Dez minutos depois, eu estava sentada na sala de Bella, ela com os olhos arregalados por trás dos óculos, pronta para começar o sermão.

Tanto para tentar manter uma imagem na frente dela e ali estava eu de moletom como uma fracassada.

― Você tem muita sorte de eu ter convencido o sr. Perpleton a permitir que fosse eu a te dar essa bronca ― ela suspirou. ― O que está pensando, Chloe? Voltamos para três anos atrás?

― Ele falou dos meus pais ― retruquei cruzando os braços.

Ela tirou os óculos e esfregou os olhos, cansada de mim.

― Achei que já tínhamos passado dessa fase. Por que agir de forma irracional se você sabe que o que ele disse não era verdade?

― Mas era ― cortei. ― Ele disse que eles estavam mortos.

Ela parou e eu percebi que ela entendia. Bella sempre entendia.

― Você não pode deixar que as palavras daquele... ― ela pausou tentando se manter profissional ― garoto te afetem. Fazia tanto tempo que você não tinha uma reação como essa.

Foi a minha vez de suspirar.

― Eu não sei o que deu em mim, eu ando estado no limite com... tudo o que está acontecendo.

― Eu sei que mudanças podem ser difíceis, principalmente uma tão grande como o fim do ensino médio e o início da faculdade, mas não deixe que o medo do futuro te domine. Tenho certeza de que você tem um futuro brilhante a sua frente, só falta que você perceba isso também.

Futuro brilhante, certo. Tão brilhante que me cegava.

O resto das aulas seguiram seu curso normal, não vi Mikhail e não me importei, foquei-me em fazer anotações e recuperar o tempo perdido.

Era uma quarta, o que significava que era dia de almoçar com a minha tia antes de ir para o trabalho. O restaurante era simples, mas a comida era boa e a música ambiente impedia muita conversa. Perfeito para nós duas.

Cheguei antes dela como era de praxe e sentei-me em uma mesa no fundo. Ajeitei meu cabelo e tirei o casaco. Não tardou para que ela chegasse, nos cumprimentamos e seu olhar percorreu-me sem que seus lábios fizessem uma careta de reprovação. A blusa simples sem mangas e a calça jeans haviam sido uma decente.

― Como foi sua manhã, Chloe? ― Perguntou se sentando. Ela tinha um jeito todo especial de perguntar algo como se importasse e fazer com que seu tom demonstrasse o total oposto.

― Ótima, ― fui salva de falar sobre o incidente quando o mesmo garçom que nos atendia toda quarta-feira veio e anotou os mesmos pedidos que fazíamos toda quarta-feira. Após a retirada dele, ela mexeu as sobrancelhas e me encarou com desdém.

― E as suas notas? Tenho certeza de que a burrice não veio da minha linhagem ― alfinetou.

― As provas não começaram ainda ― mantive o "a" tentando fazer com que a minha voz não tremesse. Ela era como um monstro pronto para atacar o mais fraco. ― Mas estou dando o meu máximo para me sair tão bem quanto o possível.

― O possível não é bom o suficiente, não para uma Yedaki ― ela respirou fundo e eu sabia que ela começaria com a mesma história que contava sempre que tentava me recriar a sua imagem. Tocando o colar escuro de meia lua em seu pescoço ela iniciou sua autocomiseração: ― Minha bisavó era uma princesa antes de ser vendida como escrava. Nas nossas veias corre o sangue real, apenas o melhor deve ser aceito.

― O melhor ― repeti. ― Sempre o melhor ― Não mencionei que não era uma Yedaki, não por sobrenome.

Reprimi a vontade de morder a pulseira de couro no meu pulso, já que Carol repudiava esse ato. Ela era herança do meu pai, o pouco que restou da sua adolescência. Ele me deu quando fiz treze anos, o couro era gasto e o gosto não era dos melhores, mas me lembrava dele, então eu nunca tirava.

O garçom voltou com nossos pratos e ela colocou o guardanapo no colo com toda a classe possível antes de prosseguir com seu ataque.

― Já é tempo de enviar as aplicações? ― Questionou com o garfo apontado para mim.

― Ainda falta um mês e meio ― sussurrei. Ela não tinha ideia de que a formatura talvez não estivesse tão próxima.

― Não murmure como um rato ― ralhou. ― Você deveria se formar mais cedo, como eu e sua mãe fizemos. Não quero adicionar pressão, mas você deve ser aceita em uma universidade da Grande Liga.

Para não rir do seu fingido oferecimento de opção, comi um bocado e mais outro antes de finalmente responder:

― Vão ser as minhas primeiras opções, tia ― garanti.

A maior frustração de Carol, era ser uma enfermeira e não uma médica. Infelizmente para ela, as Yedaki só permaneceram mulheres de sociedade, após a morte do meu avô, por nome, pois o dinheiro havia corrido como um rio pelo tempo em que eu nasci. Minha mãe precisou deixar a faculdade e Carol não pode se tornar cardiologista. Meu pai fez um bom dinheiro como advogado, mas ele era todo no nome Rivers, não Yedaki e uma a uma, Carol perdeu todas suas amigas da alta sociedade.

Andrew Rivers era um homem inteligente o suficiente para garantir, que mesmo sendo minha tutora, ela não pudesse comprar seu caminho de volta ao topo da pirâmide Nova Yorkina com o dinheiro que era meu por direito e assim ela permanecia apostando todas as suas fichas na sobrinha traumatizada e na esperança de que eu fosse inteligente o suficiente para ser uma Hera*.

― Deveriam ser suas únicas opções ― ela pausou e eu podia ver as veias de seu pescoço esguio saltadas mesmo que uma dama não devesse demonstrar nada além de complacência e estoicidade. Fleuma, ela dizia, era tudo o que uma dama tinha quando não tinha nada. ― Eu não sei se você entende, mas eu me esforço muito para cuidar de você, abdiquei de muita coisa para te dar uma vida boa e eu gostaria de receber o mínimo de reconhecimento da sua parte. Legalmente, eu poderia ter te colocado para fora da minha casa no seu aniversário de dezoito anos, mas permiti que continuasse sob o meu teto até a partida para a faculdade.

Ambas sabíamos que o que havia feito ela ficar comigo não havia sido a bondade em seu coração, e sim, o dinheiro em minha conta, afinal, enquanto eu vivesse com ela, uma mesada era depositada todos os meses para os gastos comigo. O valor era fixo e não afetava a minha modesta herança, mas desde que comecei o trabalho no Popsicle era eu que cobria todas as minhas despesas.

― Eu sou grata por tudo que fez por mim ― comecei, mas ela me cortou.

―Então prove isso. Faça algo por si mesma ao invés de ficar choramingando pelos cantos pela sua vida desgraçada.

Eu queria gritar que ela também sentia pena de si mesma, atirar meu copo de água em seu rosto, causar uma cena, mas eu só tinha um amigo e seu nome era apatia. Eu era uma borboleta em chamas que se recusava a parar de queimar.

― Não vou te decepcionar, tia.

***

Cheguei exausta do trabalho e me joguei na cama desejando ficar naquele confortável nicho para sempre, mas a gravidade fez com que minha bolsa caísse no chão e a Lei de Murphy garantiu que ela estivesse aberta.

Me levantei para recolher os meus pertences, me recusando a choramingar pelo cansaço, a dor nas costas e nos pés, por passar a tarde inteira sobre patins. Quando terminei, havia sobrado apenas aquele panfleto laranja ridículo.

Valia a pena ignorar meu descanso apenas para afrontar aquele loiro estupido?

Inferno, é claro que sim!

Tomei banho e me vesti um pouco diferente do usual colocando uma saia brilhante e um top de alcinhas, ambos pretos. Me olhei no por alguns minutos e acabei decidindo colocar a calça que eu sempre usava quando colocava vestidos e saias, sentindo-me mais confortável com a familiaridade e a facilidade em esconder minhas cicatrizes. Cogitei colocar também uma jaqueta para esconder meus braços e ombros, mas era primavera e estava cada vez mais quente, então coloquei as botas, peguei o capacete e desci as escadas.

Carol estava de plantão e eu voltaria muito antes de ela sequer pensar em largar seu turno. Ela jamais descobriria sobre minha pequena incursão em uma parte ligeiramente melhor da cidade. Sabendo que provavelmente me arrependeria, sai.

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