Nem Que a Morte Nos Separe

Sinto o ar entrando em meus pulmões. Estou voltando a ficar consciente. Quando abro os olhos, percebo que estou em uma cama desconhecida, em um lugar desconhecido. Estou encarcerada em um cômodo que mais parece uma cela de prisão decadente. O lugar está vazio exceto pela cama e por duas portas, uma de metal com uma pequena janela com grades, e a outra de madeira. Toco minha cabeça com uma das mãos, ela parece palpitar de dor. Estou confusa. Que lugar é esse? Por que estou aqui?

Tudo o que me lembro é de estar passeando pelas ruas da cidade junto ao meu noivo e repentinamente ser atacada por loucos mascarados que golpearam-no e agarraram-me pelas costas, tampando minha boca com um tecido de cheiro forte e aspecto úmido.

Seja o que for, as respostas para minhas perguntas estão atrás daquela porta. Sento-me na cama macia e toco meus pés no chão frio. Consigo levantar-me, mas minhas pernas fracas me traem e retorno a acomodar-me na cama. Conto. Um, dois, três. Tento novamente e, dessa vez, consigo me manter de pé. Dou alguns passos leves em direção à porta e obtendo êxito, continuo. Depois de certo tempo, alcanço a porta e olho pela pequena janela. Vejo um corredor vazio com uma lâmpada no teto.

"Oi? Tem alguém aí?", grito e minha voz ecoa pelo corredor.

Então, ouço algumas vozes a uma grande distância. O som cessa, mas, alguns segundos depois, retorna. Ouço passos se aproximando e, levando em conta o barulho, concluo que é apenas uma pessoa que está vindo ao meu encontro. Um homem com a face cansada e cheia de rugas aparece diante da porta. Ele está usando um terno e um chapéu preto e uns óculos ajustáveis da empresa TecMil. Aperto as mãos com raiva lembrando de tudo o que passei naquele lugar.

"Que bom que acordou. Eu já estava ficando preocupado", o homem desconhecido comenta.

"Por que ele estaria preocupado comigo se não me conhece?", penso.

"Quem é você?", pergunto.

"Isso não é relevante", responde de imediato.

"Por que me trouxe aqui?"

"Porque preciso de sua ajuda."

A fala do homem me irrita e cerro os punhos com raiva.

"Poderia ter simplesmente pedido", respondo enfurecida.

"Você não aceitaria...", ele faz uma pausa. "Preciso que construa uma máquina para mim."

"Que tipo de máquina?", pergunto curiosa, mas ainda com raiva.

"Uma capaz de trazer os mortos de volta."

Isso me espanta. Não estou lidando com um sequestrador ou com um gênio do crime e sim com um louco ensandecido.

"Você só pode estar brincando! Isso é loucura", seguro as grades com uma das mãos. "Eu não vou fazer isso."

Ele ajusta os óculos no nariz e aproxima-se da porta, o que me faz recuar.

"Você deveria reconsiderar. Não vai querer que seu namorado se machuque", o homem advertiu.

Sinto meu sangue ferver e, levada pela raiva, golpeio a porta com um soco, o que o assusta. Ele fica em silêncio. Então, a adrenalina passa e a dor vem. Sinto os nós dos meus dedos doerem intensamente e os examino. Não estão quebrados, ao menos isso.

Chantagem, eu odeio. Eu tive que conviver com isso a vida toda. Minha mãe era perita em me manipular com suas chantagens e vitimização. Sempre explorando meus sentimentos para a sua própria felicidade. Cruel é um adjetivo que se aplica muito bem a ela.

"Você não entendeu. Eu quis dizer que não consigo fazer isso", admito ao engolir em seco todo orgulho, torcendo para que ele compreendesse.

"Claro que consegue. Eu sei de suas capacidades. Você é a criadora do transporte aéreo mais veloz que existe. Uma pena que sua ideia tenha sido roubada por um homem. Nossa sociedade é realmente muito injusta", argumenta.

Assusto-me com a quantidade de informações que ele possui sobre mim. Informações que apenas eu e meu noivo conhecíamos. Então, um pensamento passa pela minha cabeça: ele pode ter torturado John para obter informações. A possibilidade me enfurece ainda mais.

"Como você sabe disso? O que você fez com o meu noivo?", grito.

"Não se preocupe, eu não coletei essas informações do garoto. Consegui com outras pessoas. Você não tem ideia do que a quantidade certa de dinheiro pode revelar", falou calmamente.

Ele retira um relógio dourado do bolso do paletó, ajusta as lentes de seus óculos para poder ver melhor, observa a hora e, então, devolve o relógio a seu lugar inicial. Nesse instante, posso ver a inscrição "Isabela" em letras cursivas estampada na parte de trás do objeto.

"Você só precisa dos componentes corretos. Eu trouxe um tesouro da América do Sul, uma garota com a capacidade de se comunicar com os mortos", o homem acrescenta.

Afasto-me da porta, sigo para o único móvel do quarto e sento-me sobre ele. Coloco as mãos sobre a cabeça, pensando em tudo isso. Ele comparou uma pessoa a um ingrediente. Não estamos lidando com uma receita de bolo, mas com magia, algo totalmente instável e imprevisível, ao contrário da tecnologia. Tento modificar a opinião do homem novamente.

"Mexer com magia é extremamente perigoso", comento.

"Estou disposto a correr qualquer risco", respondeu friamente.

"Mas..."

"Sem 'mas'. Descanse, pois terá um longo dia pela frente amanhã", disse e partiu pelo corredor vazio, deixando-me sozinha e assustada com o que estava por vir.

Só tenho uma certeza: É algo muito ruim.

Duas semanas. Havia duas semanas desde que eu comecei a construir a máquina. Duas semanas lutando com chaves de fendas, parafusos, engrenagens, cristais e bastante fumaça proveniente das máquinas movidas a vapor. Trabalhei com jornadas diárias de 10 horas com pausas para suprir minhas necessidades fisiológicas. Sempre vigiada pelos capangas daquele senhor. Mas finalmente eu havia terminado esse aparelho infernal. Eu cumpri a minha parte do acordo e, agora, exigirei a meu carcereiro que cumpra a sua.

"Está pronta, mas ainda precisa ser testada", falo ao me aproximar do homem que coversava com um dos seus lacaios.

"Excelente!" respondeu, batendo palmas. "Não precisamos de testes, pois não há tempo a perder e eu acredito no seu potencial."

"Utilizá-la sem testes pode ser catastrófico", alerto.

"Besteira", exclamou e, então, se dirigiu ao lacaio. "Podem trazer"

Ele ignora as coisas que falo, todos os alertas, e isso me enfurece muito. Homem estúpido, espero que sua loucura o consuma.

"Quanto tempo faz?", pergunto curiosa para quebrar o silêncio.

"Quanto tempo faz o quê?", Ele indaga confuso.

"Desde a morte de Isabela."

"Cinco anos", ele responde depois de um tempo em silêncio causado pela dúvida de como eu sabia sobre ela.

"Cinco anos!? E ainda assim não a deixou descansar em paz? Você é insano", exclamei devido ao espanto com a quantidade elevada de tempo.

"Oh, garota, você não tem a mínima ideia. Não tem ideia de quantas pessoas eu tive que machucar e até matar para chegar até aqui", responde friamente e com raiva.

Ele é realmente um monstro. Ficar ao seu lado me dá ânsia de vômito. Fico em silêncio e afasto-me, indo em direção à máquina. Observo-a. É deslumbrante. É totalmente metálica com canos cinzas de vapor saindo de todas as partes dela, um corpo metálico redondo ligados a pequenos cones sonoros espalhados pelo cômodo, uma cápsula central feita de vidro transparente e com cristais em uma circunferência metálica no interior da esfera. Vejo cristais de todas as cores, do vermelho ao roxo. Observo a temida alavanca capaz de ativar o equipamento que serve como ponte entre o mundo físico e o espiritual. Uma ponte que nunca deveria ser cruzada.

"Sabe, você não é tão diferente de mim quanto imagina", ele fala alto fazendo o som ecoar pela construção. "Ultrapassando seus limites éticos, tudo pelo bem do seu amado."

Ranjo os dentes como raiva. Ele não pode estar me comparando a si mesmo. Eu estou tentando ajudar e salvar meu noivo e não machucando pessoas para ressuscitar uma mulher morta a meia década. Eu sou formalmente médica, faria de tudo pra ajudar alguém que precisa, alguém ainda vivo.

Antes que eu possa responder algo, os seus assistentes entram no salão. O primeiro grupo deles carrega um caixão de cor branca e bordas douradas com um grande "I" estampado na tampa. Os quatro transportadores utilizam ternos e seguram o ataúde por suporte metálicos de forma semelhante a um ritual fúnebre. Evento esse nunca presenciado pelo cadáver.

O segundo grupo, composto por dois homens, trás consigo alguém que conheço como a palma das minhas mãos, meu John. Ver que ele está bem faz meu coração pular de alegria, ao menos esses monstros não o machucaram. Entretanto, ver suas mãos algemadas me enfurece um pouco. Meu noivo está sendo tratado como um criminoso pelos verdadeiros criminosos. Ele olha em meus olhos como se dissesse: "Não precisa fazer isso, eu consigo me virar". Eu amo o jeito como ele odeia ser a "princesa em apuros".

O terceiro grupo, também formado por uma dupla, segue atrás de uma garota de cabelos cacheados e pele parda que assemelha ter por volta de 14 anos. Seus olhos possuem um aspecto esbranquiçado indicando que ele não consegue enxergar. O viúvo de Isabela me contou sobre as habilidades da garota e como parece que ela não só se comunica com os espíritos como mantém uma relação de amizades com eles.

Os empregados, então, posicionam cada um em um lugar diferente. O caixão sobre a mesa de madeira que ocupa o centro do salão, bem em frente à máquina. John em uma pequena jaula suspensa sobre um alçapão, logo após removerem as algemas. A jaula é mantida acima do solo por uma corrente negra que segue do topo da prisão de meu amado, passa por uma polia presa ao teto e segue em direção a um encaixe ligado ao chão de cimento bruto. Cerro os punhos e desvio o olhar. A garota é posicionada em frente ao aparelho que eu construí.

A máquina irá alimentar-se de seus poderes, irá força-la a seu máximo e ainda há a possibilidade de a máquina não funcionar e acabar em um desastre. E eu serei a responsável por isso. Eu sou médica, não deveria machucar pessoas, deveria curá-las, mas não me resta escolha. Eu tenho que fazer isso.

"Não se preocupe. Eu sei que não está fazendo isso por mal", a garota exclama para eu ouvir.

Sua fala me surpreende. Teriam os espíritos contado isso a ela ou ela também possuía a capacidade de escutar pensamentos. Meu noivo observa tudo sem entender, segurando-se nas grades de sua estreita jaula.

"É chegada a hora. Posicionem a médium", o homem ordena a seus lacaios.

Um deles traz uma escada e apoia na máquina. O outro segura a mão da garota de cabelos cacheados e auxilia na subida. Chegando ao topo, ele, com certa dificuldade, abre a escotilha e ajuda a garota a entrar na esfera de vidro transparente. Ela fica parada observando o nada enquanto o empregado fecha a escotilha novamente, aprisionando-a.

"Perfeito!", o líder daqueles homens exclama, batendo palmas. "Ligue a máquina, grande inventora."

O jeito que ele se refere a mim me deixa enojada.

"Por que eu? Qualquer um pode operá-la", argumento.

"Por que eu quero te proporcionar essa honra. Por favor, não questione", responde rapidamente.

Por que ele está fazendo isso? Parece que quer ver até que ponto eu vou pelo meu amor. Eu não tenho certeza quanto a isso, mas sei que eu nunca me aproximaria do nível dele.

Com nojo e mãos tremendo, toco a alavanca de formato cilíndrico e metálico. Mesmo com o frio dela, minhas mãos suam. Olho para a garota, que não pode me ver, fechando os olhos como se pedisse perdão pela atrocidade que eu iria cometer. Olho para o homem que está fazendo tudo isso, um monstro doente e cego por essa forma distorcida de amor. E, então, olho para meu amado que me olha com uma cara triste. Ele é a razão de eu estar fazendo tudo isso. O amor que tenho por ele está me assemelhando ao monstro.

"Não precisa fazer isso", John gritou, rompendo o silêncio e meus devaneios.

Eu mostrei um sorriso a ele. Saber que, mesmo que isso custasse sua vida, ele não quer me ver triste e forçada a algo me emociona muito.

"Silêncio!", grita um dos lacaios, golpeando a porta da jaula com um bastão.

"É claro que preciso", respondo meu noivo, fecho os olhos e sinto eles encharcarem.

Respiro fundo, aperto a alavanca com força e, com o auxílio da outra mão, ativo-a. A máquina começa a ranger. A sua caldeira interna se ativa, e vapor é produzido e expelido pelos canos metálicos. A força fornecida pelo calor permite que as engrenagens se movimentem, e todo o aparelho funcione. O aro metálico que circunda a garota mágica começa a se movimentar rapidamente, fazendo os cristais se ativarem.

A garota não pode ver nada, mas consegue ouvir o som da máquina a todo vapor, e isso parece assustá-la. Os cristais começam a emitir um brilho intenso e parecem conectar-se à garota, criando uma cena que mais se assemelha a uma possessão, seus olhos brilham intensamente, seu cabelo flutua ao seu redor e seus pés param de tocar o solo. Ela estava suspensa pela magia dos cristais. Ruídos podem ser ouvidos como vozes vindas do além. Aquilo tudo me assusta e deixa-me enojada com minha própria criação. Ponho a mão sobre a boca pra impedir que um soluço se solte, posso sentir as lágrimas húmidas correndo pela minha pele. Observo a sala e vejo que todos olham para cena admirados, inclusive John que assiste a tudo boquiaberto.

"Está funcionando! Aumente a potência", ordenou o homem.

Com uma das mãos junto ao peito, movimento a alavanca para um nível superior, aumentando, assim, a potência da máquina. Mais calor gera mais vapor d'água, mais vapor gera mais força, e com mais força, a máquina passa a trabalhar de maneira mais produtiva. A circunferência metálica gira mais rápido, e o brilho dos cristais aumenta, ampliando mais ainda as habilidades da garota e aumentando a ponte entre o plano terreno e o espiritual.

"Parem! Soltem a garota!", vozes fortes que não vinham de lugar algum ordenaram.

Todos se assustam, inclusive eu. A máquina realmente funciona. Por que eu tinha que ser tão habilidosa nisso?

Os lacaios se afastam um pouco, temendo os emissores da fala.

Os cristais exigem bastante da garota. Posso ver o suor em seu rosto e suas mãos fechadas com força. O monstro responsável por isso também percebe, mas não liga se isso machucar alguém.

"Mais potência", ordena a mim.

"Não posso, pois isso vai forçá-la ao máximo e ela é só uma criança", tento amolecer seu coração frio.

"Eu disse para aumentar a potência!", gritou depois de retirar uma pistola de sua calça formal e apontar para John.

"Tudo bem...", fecho os olhos e ranjo os dentes.

Toco a alavanca novamente, mas não consigo segurá-la devido aos tremores do meu corpo. Uso a mão esquerda para apoiar a direita, enrosco-a no mecanismo e o faço subir um nível. Está em potência máxima. Minhas pernas tremem e são incapazes de me sustentar de modo que caio de joelhos no chão duro em frente ao painel de controle. Ouço o som de John chacoalhando a jaula, provavelmente esperando que um milagre ocorra e ele possa me tirar desta situação. Assim como ele, eu espero um milagre: a garota aguentar.

"Não!", as vozes misteriosas retornam.

Sinto um arrepio percorrer meu corpo e então vejo uma das piores cenas possíveis. A garota continua a flutuar, mas, agora, com um aspecto diferente. Sua pele está mais esbranquiçada, suas veias são nítidas e pulsam na cor azul, seus olhos estão vazios e distantes, e seu cabelo se movimenta como as labaredas de uma fogueira. Os cristais parecem exercer sobre ela uma conexão invisível. Ela grita intensamente, e seu grito estrondoso me faz vomitar no lugar onde estou com as mãos apoiadas no chão. Sinto que John está falando algo, embora não consiga focar-me nisso, pois a situação infernal rouba minha atenção.

Então, um barulho ecoa pelo lugar, barulho de vidro sendo atingido. Percebo que uma rachadura se formou na esfera transparente, assustando-me. Outro barulho de impacto, outra rachadura surge. Novamente ocorre o mesmo. Parece que alguém está socando a máquina com toda a sua força, embora não haja ninguém em suas proximidades. A surpresa vai embora quando me dou conta do que está acontecendo: os espíritos estão auxiliando-a. Cruzo as mãos, ansiando para que eles obtenham êxito.

"Parem ou eu mato o garoto e, se necessário, as duas garotas", o homem grita em algum lugar próximo a mim.

Os impactos cessam, e o espaço é novamente ocupado pelos gritos da menina, o que me atormenta bastante. Outro som é ouvido: um impacto sobre algo composto de metal. Olho em volta e vejo que um dos empregados está caído no chão do outro lado da sala. Isso assusta os demais serventes que se afastam ainda mais da máquina e se aproximam de John.

"Parem!", a garota, que eu pensava estar inconsciente, exclama. "Deixem-na falar com ele."

Com o pedido, os impactos param e algo começa a acontecer. A fumaça expelida pela máquina começa a se movimentar e formar uma espécie de redemoinho sobre nós. O redemoinho cai sobre nós e se contorce em uma nuvem de fumaça. O vapor forma uma cortina pouco densa permitindo que se veja através dele. Então, a nuvem passa a se concentrar em uma esfera de fumaça em frente ao homem que nos mantem prisioneiros. Até que começa a assumir uma forma humana, mais especificamente de uma mulher alta com cabelos longos. Ela possui um olhar melancólico.

"Isabela, finalmente...", diz o homem, dando alguns passos em direção a mulher e largando a arma no chão.

"Quem é você?", a voz doce ecoa de todas as direções. "O que fez com Jean?"

As perguntas me deixam confusa. Quem é Jean? Essa é mesmo Isabela? E Porque ela não está reconhecendo seu ex-cônjuge?

"Não me reconhece?", ele pergunta com lágrimas nos olhos. "Sou eu, o seu Jean."

"Não você não é.", o ser de fumaça afasta-se do seu companheiro. "Você não chega nem aos pés deles."

"Claro que sou. Não vê? Estou fazendo tudo o que posso por você", diz, chorando.

Nunca imaginei que veria lágrimas sendo expelidas por aquele monstro. Ela realmente o afeta.

John me encara aflito sem saber o que aquilo tudo significa. Aceno negativamente com a cabeça e desvio minha atenção para a situação da garota. A máquina continua a consumi-la, mas agora ela não faz som algum. Apenas movimenta-se bruscamente no ar, buscando forças. Eu queria poder desativar isso agora.

"O meu Jean era doce, amável, caridoso e acima de tudo, bondoso. Ele nunca torturaria pessoas dessa forma", diz o fantasma ao apontar para mim e depois para a garota.

A crueldade desse homem não só nos afeta, como a sua amada também. Tudo o que ele fez parece fazer com que o amor se torne nojo, raiva ou pena. Ela não deve odiá-lo, pois algum dia eles já se amaram de uma forma linda e não doentia como agora.

"Eu fiz o que foi necessário pelo nosso amor", explica, ajoelhando-se perante ela.

"Isso não é amor, é doentio", ela abaixa-se perto dele e toca-lhe o rosto. "Meu amor, se você ainda está aí dentro, por favor, deixe-me descansar em paz."

Ele baixa a cabeça e passa a encarar o solo, que é molhado por suas lágrimas. Ela se afasta e se desfaz lentamente. Tudo o que resta é uma nuvem de vapor espalhada por todo o ambiente. Os gritos retornam, mas, dessa vez, não me enojam, agora me enfurecem. Eu não posso continuar deixando-o machucar as pessoas por um espírito que nem ao menos deseja-o de volta. Com isso, tomo uma decisão sem volta. Levanto-me com dificuldade e agarro a alavanca metálica com as duas mãos.

"Chega! Eu não vou deixar que você continue com essa loucura", grito para todos escutarem.

Uso toda a força que me resta para deslocar a alavanca para o nível mais baixo. A máquina estremece e a circunferência metálica cessa o movimento. A conexão entre os cristais e a garota se encerra, e ela deixa de flutuar, caindo desacordada no interior da esfera de vidro danificada. O responsável por tudo isso, ao contrário do que esperava, nada faz. Assim como os lacaios, que não recebem ordem alguma. Meu noivo olha para mim e diz que sou uma heroína. Isso me faz rir pela primeira vez nas últimas semanas.

Mas, para a surpresa de todos, o equipamento volta à ativa e começa a liberar vapor. É possível ouvir o barulho da caldeira em funcionamento. John olha confuso para mim torcendo para tudo estar sobre controle. Eu sou a única que sabe o que está acontecendo. Essa é a minha carta na manga. Algo que fiz às escondidas do meu carcereiro: um mecanismo de autodestruição, que impediria que a máquina caísse em mãos erradas. Agradeço a minha mãe por ter me ensinado a sempre ter um plano B.

"Saiam todos. Essa coisa está entrando em colapso e vai levar esse lugar ao chão", eu explico para todos no local e, assim, crio um alvoroço.

Os mais de dez serventes correm em direção às saídas tomados pelo desespero. Devo admitir que também tenho medo, mas, pelos meus cálculos, ainda me resta algum tempo.

Minhas pernas estão fracas, de forma que caminho lentamente até John. Passo próximo ao homem e vejo seu olhar vazio e morto encarando o nada. Então, sigo o meu caminho, abaixo-me para pegar a chave que um dos lacaios abandonou próxima à jaula e utilizo-a para libertar meu amado.

Ele me abraça com força, e eu me sinto feliz por tê-lo comigo novamente. Mas não há tempo para isso. Digo a ele para tirar a garota de dentro da máquina o mais rápido possível. Ele atende o meu pedido e corre na direção indicada por mim. Meus cálculos apontam que temos por volta de três minutos.

Percebo que Jean não se movimenta desde que o espírito partiu. Eu o odeio e quero que ele pague por tudo que cometeu, mas não posso deixá-lo aqui para morrer. Vou até ele e me abaixo. Estar perto dele me dá tontura.

"Você não pode ficar aqui. Vem com a gente", convido-o.

"Não posso deixá-la", ele responde com os olhos vermelhos causados pelas lágrimas.

"Não há como levá-la, pois os planadores não suportarão o peso", eu explico.

"Então use-os. Eu ficarei aqui com ela...", ele responde e levanta-se.

Sinto um toque em meu ombro que me assusta um pouco. John, ele voltou com a garota nos braços. Encaro-o e, então, olho para Jean. Se eu pudesse, arrastá-lo-ia à força desse lugar. Agora, arrependo-me por desejar que sua loucura o consumisse.

"Eu sei que você quer salvá-lo, mas não há nada que possa fazer", meu noivo diz.

Aceno tristemente com a cabeça em sentido afirmativo. Levanto-me e corro em direção aos planadores acompanhada de John. Mas não sem antes olhar para trás e desejar ver o homem seguindo-nos e abandonando toda essa loucura.

"Tá tudo bem, amor?", a voz doce de John me tira do transe.

Eu e meu noivo estamos parados em frente aos destroços do lugar onde ficamos encarcerados por duas semanas, observando o trabalho minucioso dos bombeiros que procuram as possíveis vítimas do "acidente". Mal sabem eles que só há uma vítima, e a culpada por isso está de olho em tudo. Eu coloquei o prédio abaixo. Eu sou a assassina.

"Tá sim... Eu só estou pensando sobre tudo o que aconteceu ali. Ninguém nunca vai saber das atrocidades que ele cometeu, nem do que aconteceu ontem, as coisas que fiz...", digo melancolicamente ao apertar sua mão.

"Meu amor, você não é a culpada de nada. Ele escolheu isso", ele me abraça com força. "Sabe de uma coisa? Ele finalmente encontrou o que mais precisava: liberdade."

"É, talvez você tenha razão", digo encarando os destroços pela última vez. "Vamos deixá-lo descansar em paz."

Embaixo de todos aqueles escombros e poeira, longe dos sentidos de qualquer pessoa era possível ouvir uma voz misteriosa e cavernosa.

"Liberdade!", ela exclamou.

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