Natukashii
Eu era vento e cheiro e cor. Eu vim da terra e a ela pertenço. O sangue que corria em minhas veias era a seiva das árvores anciãs às margens do rio. O colorido de minha pele era a cor que tingia as pétalas das flores de cerejeira, espalhadas por céu e terra pela brisa e pelas pessoas que as observavam. Mãos – minhas mãos – eram pequenas, macias, enquanto eu as estendia à minha frente, examinando-as de todos os ângulos. Meus pés descalços tocaram a terra úmida debaixo das árvores, e eu inspirei o ar doce da estação – Primavera, como eu.
A rua era brilhante, cálida, artificial. Duas mãos controversas levavam veículos e pessoas a vários lugares que eu não conhecia. Todos apressados a chegarem aos seus destinos. No meio delas, um rio, ladeado por barreiras de concreto. Os arranha-céus envidraçados se estendiam, mais altos que as árvores. E as árvores, nuvens de flores que se desfaziam no solo, manchavam tudo com sua beleza. Não sabia onde estava, mas com certeza era um lugar bonito.
Comecei minha caminhada pela calçada, andando ao lado das árvores e da correnteza. Olhei para os galhos entrelaçados à cima, como um tecido delicado de renda. Renda – o mais fino dos tecidos, o mais belo e frágil. Meu vestido não era de renda. Era de um algodão cru, um rosa claro.
Sentei em um banco, os pés balançando sem tocar no chão. Inspirei a brisa doce, e senti as pétalas acariciarem-me os ombros. Havia tantas... para onde será que elas iriam? Será que para longe? Cairiam nas águas calmas e flutuariam até um lugar distante? Ou as pessoas as pegariam como recordação dessa estação? Acabariam prensadas nas páginas de livros, secas nos cantos de casas vazias... E o que seria das pessoas? O que todas elas estariam fazendo com seus dias de primavera?
Um garoto estranho sentou-se ao meu lado. Estava de uniforme escolar – camisa branca, calças pretas. Seu cabelo preto, liso estava bagunçado; a mochila, jogada no chão aos seus pés. Ele parecia não se importar. Estava focado na tela à frente. Pequena e ágil. Ele a encarava como se tivesse todas as respostas às suas perguntas. Será que ele poderia responder às minhas?
Ele pareceu sentir meu olhar sobre ele, porque me encarou de volta com um ar inquisitivo.
— Quem é você? – Perguntou, suas feições contorcidas e quase que irritadas.
— Meu nome é Somei Aiko*. Filha da primavera.
(*N/A: Em Japonês, é costume dizer o sobrenome antes do nome).
Ele parecia não acreditar em mim.
— Ohara Kenji. Estudante do segundo ano.
— O que é isso na sua mão, Ohara Kenji?
De novo aquele olhar incrédulo, descrente, julgativo.
— Você nunca viu um celular?
Neguei com a cabeça.
— Bom, é um aparelho eletrônico que te permite fazer quase tudo.
— O que é 'quase tudo'?
— Você sabe... Falar com as pessoas, comprar coisas, ir a lugares... Quase tudo.
— Ele pode me falar onde estou?
— Pode. – Ele digitou algo na tela e me mostrou uma imagem verde cheia de sinais.
— Aqui é Tóquio. Nós estamos próximos do Parque Ueno, está vendo? – Ele me passou o celular – O pontinho azul somos nós. Aqui é a estação... Aqui o zoológico... O museu nacional e o hospital universitário. – Ele foi apontando. – Você está perdida? Quer que eu te ajude a ir para algum lugar?
Assenti.
— Quero ir para onde todas as pessoas vão na primavera.
Ele guardou o celular no bolso.
— Isso não é muito exato. Mas acho que tenho uma ideia. – Ele se levantou, pegando a mochila do chão. – Espera, você está descalça?
Assenti novamente.
— Espere aqui só um minutinho. Já volto. – Ele saiu apressado, cruzando a rua para chegar às casinhas do outro lado. Entrou em uma. Quando retornou, carregava uma sacola. – São suas. – Eram sandálias, muito confortáveis, por sinal.
— Posso ficar com a sacola? – Perguntei.
— Hã... Claro. – Ele me estendeu. E tratei de colocar um punhado daquelas pétalas dentro dela. – O que você está fazendo?
— As pétalas. – Eu apontei – Cada uma conta uma história... Das árvores, das pessoas, de vários lugares e tempos diferentes. Gostaria de pegar um pouco de cada uma delas.
Ele estava olhando para mim com grandes olhos castanhos, as sobrancelhas arqueadas em incredulidade. Mas tudo o que disse foi:
— Então tá. – Depois me estendeu a mão e começamos a caminhar novamente.
* * *
Quando decidi 'tirar' a tarde livre, definitivamente não pensei que isso pudesse acontecer. Eu só queria comprar um doce na lojinha de conveniência ali atrás e ficar observando o rio, sentado no banquinho. Escoltar uma garota perdida não estava nos meus planos. Ela era tão pequena, frágil... parecia menor em pé do que sentada, se isso fosse possível. Era uns vinte centímetros mais baixa que eu, e tinha pernas bem curtinhas.
— Ohara Kenji, você está indo muito rápido! – Reclamou, e esperei que ela chegasse até o meu lado novamente.
— E você anda devagar demais. – Mas diminuí o ritmo para que ela pudesse acompanhar.
Ela não parecia uma menina normal. Andando por aí sozinha, sem sapatos, sem nada...
— De onde você é... Aiko? Posso te chamar de Aiko?
Ela assentiu. Mas não respondeu à pergunta.
— Você gosta de histórias, Kenji?
Que tipo de pergunta era essa?
— Hã... Claro. Quem não gosta?
— Você acredita nelas?
— Talvez...
Ela olhou para cima antes do começar:
— A cada 138 anos, um cometa em especial orbita a Terra. Leporem, o nome dela. Da deusa que o habita. Ela viaja céus e galáxias tentando encontrar o que há de mais belo nos mundos. Porém, claro, sendo uma pessoa só, seria impossível vasculhá-los todos sozinha. Para isso ela nos envia, suas emissárias, cada qual à imagem e semelhança da estação em que nascemos.
Aquilo era a coisa mais absurda que eu já tinha ouvido. Será que ela estava delirando? Ou, pior, será que eu estava delirando? Minha cara deveria estar demonstrando isso porque ela completou com:
— É preciso coragem para acreditar, Kenji. Tudo bem se você não o fizer.
Quem é que ela estava chamando de covarde?
— Então você é uma espécie de espírito?
Até que fazia sentido... Somei Aiko.. Somei, como a árvore de cerejeira.
Ela fechou a cara e olhou na direção oposta a mim.
— Grossamente falando... Sim. Embora nós não gostemos desse termo.
Opa.
— Anotado. Mais alguma coisa que eu deva saber?
— Eu tenho um dia para coletar as memórias deste lugar. Imagens, sons, pétalas... E depois entrega-las à minha senhora.
— E depois?
Ela não respondeu, apenas olhou para frente e citou:
— Eu venho da terra e a ela pertenço.
Não sabia o que aquilo significava, mas não perguntei. Ela também não quis elaborar. Estávamos passando por uma área residencial. As ruas estreitas separavam casas baixinhas. Árvores e branco e madeira. Algumas com as portas e janelas escancaradas, móveis e objetos se derramando pela calçada.
— O que são todas aquelas coisas ali? – Ela apontou para um prédio de apartamentos cujas sacadas estavam tomadas por cobertores esticados.
— O quê? Os cobertores? As pessoas geralmente os colocam no sol, para secar ou evitar mofar... Provavelmente estão fazendo a limpeza de primavera.
Ela olhou para mim, agitada. Aqueles olhos castanhos que insistiam em brilhar cor-de-rosa de vez em quando.
— Existe uma limpeza de primavera?
Tecnicamente...
— ...Sim. Limpar a casa toda de cima a baixo. Jogar fora aquilo que quebrou ou não precisa mais. Tudo para abrir espaço para as novas coisas que virão quando o verão chegar. É uma tradição boba, para falar a verdade. Minha mãe faz todo ano.
Era verdade. Em algum momento de um futuro não muito distante, ela abriria a porta do meu quarto com toda a força e exigiriam que eu virasse o quarto do avesso.
— Parece divertido. – Ela sorriu.
— É mais estressante do que divertido. – Murmurei.
Mas ela parecia não se importar. Recolheu algumas pétalas caídas pela calçada, colocando-as na sacola da lojinha.
— E você, Kenji? De onde você é?
Passei a mão pela nuca, depois enfiei-a no bolso.
— Daqui mesmo. Nasci, cresci e provavelmente vou morrer em Tóquio.
Ela parecia curiosa.
— E isso é uma coisa que te agrada?
Tive que parar um momento para pensar.
— Eu gosto daqui. Das facilidades, das oportunidades, dos arranha-céus envidraçados. Mas algo no campo sempre me atraiu. Há... leveza no bucólico. Não sei como explicar. Os passos das pessoas aqui são tão pesados que eu os imagino afundando um buraco no chão.
— Você vai sempre? Ao campo? – Ela quis saber. Estava balançando a sacolinha de um lado para o outro enquanto andava.
— Eu já fui mais. Quando era pequeno, sempre passávamos as férias de verão na casa dos meus avós, em Nagano. Era minha parte favorita do ano.
— O que aconteceu?
— Meu avô faleceu e minha avó agora mora com a gente. A casa ainda está lá, pegando poeira.
Ela tocou minha mão, de leve.
— Eu sinto muito, Kenji.
— É. Eu também. Não sei se é do campo que eu gosto, ou se são só as memórias embelezando minha visão do lugar. Tenho medo de voltar e não ser mais a mesma coisa, sabe?
— Natsukashii. - Aiko interrompeu.
— Hã?
— É a palavra para isso. - Ela sorriu. - Uma lembrança feliz, uma reminiscência bem-vinda. Mas, ao mesmo tempo, uma dor latejante pelo tempo que não volta mais. Natsukashii.
Assenti, perdido em minhas próprias memórias irrecuperáveis. Isto é, até avistar uma visão conhecida do outro lado da rua.
* * *
— Vem, vamos por aqui.
Kenji me pegou pelo punho, me levando a passos rápidos pela passarela que dava para o outro lado da rua.
— O que há de errado?
— Bom... é que... – Ele tropeçou nas palavras, enquanto – Eu deveria estar na aula agora. Então tecnicamente não seria muito esperto passar em frente ao meu colégio numa hora dessas.
Eu ri.
— É aqui que você estuda? – Encarei a tinta um pouco suja das paredes. As grades do portão de ferro começando a enferrujar.
Ele assentiu.
— E por que estão todos reunidos ali? – Apontei para uma área grande, perto do prédio principal.
Ele esticou o pescoço para alcançar meu olha.
— Ah, deve ser a formatura do terceiro ano... Eu me lembro de ter ouvido algo assim ontem... – Ele murmurou a última parte, mais para si mesmo.
— E o que vem depois da formatura?
Ele pareceu perdido ao responder. Na realidade, ele parecia mais perdido do que eu.
— Uma boa pergunta. Universidade, trabalho... A vida, talvez?
— E o que vai vir a sua vida, Ohara Kenji?
Ele me deu um olhar debochado.
— Tá parecendo minha mãe. – Depois passou as mãos pelo cabelo e disse – Sei lá. Eu ainda tenho tempo para decidir... – Ficamos olhando para os alunos reunidos um momento antes de Kenji quebrar o silêncio – Natsukashii.
Eu olhei para suas sobrancelhas franzidas.
— Se formar. Crescer e buscar coisas novas. Deixar para trás a infância e o colégio. Isso tudo é Natsukashii também.
Assenti. Estávamos saindo próximo a mais árvores, agora mais densas. Peguei um punhado de pétalas, uma nova adição à trama em minha sacola.
À visão das árvores, Kenji soltou meu braço e correu à frente, até a entrada vermelha de madeira. Estava sorrindo quando disse:
* * *
— Bem-vinda ao Parque Ueno. O melhor local para apreciar as flores de cerejeira em toda Tóquio. Ou assim eu acredito.
Eu podia ver várias pessoas que partilhavam dessa mesma opinião. Nesse momento do dia, o parque estava mais lotado do que previ. Já era próximo das seis, e o sol estava baixo no horizonte. O céu, antes azul, tinha um tom coral, amarelo e laranja, que complementava o rosa das cerejeiras.
Debaixo delas, gente. Todo tipo de gente. Em pé, olhando para os galhos acima das suas cabeças. Ou sentadas em cobertores no chão, rodeadas dos amigos e compartilhando uma refeição leve. Eu podia ver alguns dos formandos do meu colégio, jogando pétalas rosas uns nos outros. Tudo ecoava em meus ouvidos. As risadas, as conversas, o canto de fundo das cigarras, até mesmo a expressão de Aiko, quando disse:
— Aaahhh... Então é isso que se faz na primavera...
Ela estava maravilhada. Olhava para as árvores e as pessoas, todos reunidos com um único propósito de apreciar as árvores, e o tempo.
— Você quer sentar? – Eu falei, dirigindo-nos ao local menos ocupado que encontrei. Sentados debaixo de uma árvore grande, de casca grossa, abri minha mochila. Tirei com cuidado o bolinho que tinha guardado lá dentro. Morango e creme, meu favorito. Tirei a tampa e ofereci-o à garota.
— Humm, foi você que fez? – Ela disse, depois de uma bocada generosa do doce. Tinha creme na pontinha do nariz.
— Infelizmente, não sou tão bom cozinheiro assim – Eu falei, limpando o creme com meu indicador – Eu comprei numa lojinha mais cedo. Muito bom, né?
Ela assentiu, sorrindo. Devolveu o pote para que eu pudesse pegar um pedaço.
— Muito.
Depois alcançou um punhado das pétalas que estavam ao nosso redor e colocou na sacolinha.
— Para que você está catando essas coisas? – Eu finalmente perguntei, minha curiosidade atingindo seu pico.
— Para isso – Ela disse, derrubando o conteúdo no chão à frente.
Começou a pegar uma por uma e, como em um passe de mágica, colar suas pontas com os dedos. Ela tecia um material mais fino que seda e mais intrincado que renda. Algo que eu com certeza não era capaz de compreender.
Quando terminou, a luz do sol tinha desaparecido quase completamente. A única fonte de claridade eram as lanternas do parque, iluminando a todos com um brilho amarelo. Ela pôs-se de pé, segurando o material à frente. Passado um braço, depois o outro.. Até que estava envolta em flores, como um quimono, amarrado na cintura. O cabelo liso, antes solto e caindo na altura dos ombros, tinha sido preso com um ramo de cerejeira. Ela estava sorrindo, dobrando o tecido em si mesmo enquanto observava-o.
— Acho que está pronto. – Ela sorriu para mim, estendendo as mãos. – Muito obrigada, Ohara Kenji, por me mostrar as belezas do seu mundo. – Ela me estendeu um pequeno pedaço do tecido, um pedaço circular e concêntrico, com padrões florais. – Isto é para lhe trazer sorte. Que você encontre todas as respostas que procura.
Levantei-me depressa.
— Espera, você... Já tem que ir? Mas... para onde?...
Ela apenas sorriu e me olhou com olhos gentis.
— Você é mais corajoso do que pensei, agora que aprendeu a ver além dos olhos – Ela estava se afastando, em direção à ponte que se estendia sobre o pequenino lago à frente. Parou. – Você devia voltar – Ela falou, virando-se – Ao campo, se é isto que você quer.
Não disse nada. Não sabia se tinha algo a dizer.
— Aquele tempo feliz pode ter passado, Kenji, mas lembre-se de sempre acreditar que coisas boas virão.
Ela parou debaixo do grande portal que levava à ponte. As pétalas do tecido começaram a se desfazer, soprando com o vento, brilhando em sua docilidade móvel, levando embora o que conhecia de Aiko, até que a garota desaparecesse de vista.
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