Natal fora de época


Era minha segunda semana como cupido substituta quando aquele caso caiu em nossas mãos.

— É um casal — Paco me informou com um sorriso enorme, me encontrando na frente da escola logo após o fim da minha última aula do dia. — Bem do jeitinho que você gosta, Lili.

Ele estava certo. Casais eram meus alvos preferidos.

Amor não correspondido me fazia estremecer, e eu frequentemente me via querendo desobedecer às ordens superiores do conselho dos cupidos. Infelizmente, já que cupidos são sádicos, casais felizes eram uma raridade na nossa lista de alvos.

Olhei ao redor para me certificar de que não tinha ninguém por perto para testemunhar minha conversa com um cupido invisível, então voltei a encará-lo. Estreitei os olhos.

— E qual é a pegadinha?

Sempre tinha uma pegadinha.

Paco ergueu as mãos em um gesto de inocência.

— Não tem pegadinha. — O sorriso dele aumentou. — Eu juro.

Não que eu tenha acreditado, mas resolvi não discutir e, em vez disso, o segui até sua casa, onde ele finalmente tirou o cinto da invisibilidade e pudemos ficar mais confortáveis para traçar nossos planos.

— Mayara Gouveia — Paco leu em voz alta o nome do primeiro alvo de nosso novo casal.

Do lado oposto do sofá, com as pernas esticadas como se a casa fosse minha, inspecionei o rosto do cupido. Algo não parecia certo. O brilho em seus olhos estava mais intenso que o normal.

— O que é? Você jurou que não tinha pegadinha — lembrei, apontando para ele de forma acusatória.

Paco sacudiu a cabeça.

— E não tem.

— Então que cara é essa?

— A única que eu tenho.

— Paco... — Suspirei, cansada.

Ele suspirou também, mas sem deixar de sorrir. Então,abaixou o tablet sobre a mesinha de centro e ergueu as sobrancelhas de forma traiçoeira.

— Digamos que, como você, ela tem certa fama no meu mundo.

Meu corpo inteiro arrepiou e, para disfarçar, me endireitei no sofá.

— Ah, não...

Paco soltou uma risada e segurou a minha mão de forma muito casual.

— Calma. No caso dela, não é uma fama ruim.

Suspirei, aliviada, e só então a ficha caiu.

— Peraí. No caso dela? E no meu? É tão ruim assim, é?

Ele encolheu os ombros com uma cara culpada e mudou o assunto.

— A Mayara é uma lenda no mundo dos cupidos. Ela ama o amor!

Levantei as sobrancelhas.

— Ok — falei calmamente, tentando não me estressar com o linguajar meloso dos cupidos, nem me sentir mal por a garota ter uma reputação melhor que a minha entre eles. — E o que isso significa, exatamente?

Paco sorriu.

— Você vai ver — disse simplesmente, todo enigmático.

E então se levantou e foi até a cozinha americana para fazer um chá.

Eu revirei os olhos e peguei o tablet para conferir por mim mesma. De início, o perfil da tal Mayara parecia bem normal. 

Vinte e quatro anos. Filha única. Formada em pedagogia. Professora. Homossexual. Aromática.

— Como assim aromática? — perguntei em voz alta. — Ela usa perfume?

Colocando a chaleira no fogão, Paco deu uma risada.

— Arromântica — ele corrigiu.

Reli a palavra e, realmente, era o que estava escrito.

— Que é isso?

O cupido veio andando de volta na minha direção, mas seus olhos estavam no chão, em uma expressão pensativa.

— Bom... — ele começou devagar. — Normalmente, para resumir, eu diria o oposto de "romântica", mas nesse caso não funciona. Mayara é uma arromântica muito romântica.

Fiz uma careta.

— Eu não tô entendendo é mais nada.

— Não é tão complicado. — Paco se jogou de volta no sofá ao meu lado. — Ela só não sente atração romântica como a maioria das pessoas.

— E como a maioria das pessoas sente atração romântica?

— Eu... não sei? — O final de sua declaração saiu mais como uma pergunta. Ele sorriu para mim. — Tecnicamente falando, é com uma frequência maior, ou em maior intensidade, ou acima de qualquer outro tipo de atração. Mas, na prática, eu não faço ideia. Nós, cupidos, não costumamos sentir isso, e a única vez que aconteceu comigo foi... um acidente.

Eu estava muito entretida com aquelas novas informações para encher o saco dele sobre o acidente.

— Então cupidos são arromânticos.

— Sim — disse ele. — Basicamente, sim.

— E... — Limpei a garganta e endireitei as costas. — Bom...

Eu não sabia muito bem como externar minha pergunta, mas ele pareceu entender exatamente aonde eu queria chegar.

— Você? — perguntou. — Quer saber se você é arromântica?

Assenti, meio ressabiada. Conseguia sentir a pressão de seu olhar me analisando e, de repente, ficou meio difícil respirar. Não sei dizer exatamente o que me deixou naquele estado. Talvez a possibilidade de finalmente colocar um nome em uma sensação que havia me acompanhado por tantos anos fosse demais para digerir. Talvez por isso a resposta me assustasse.

— O que você acha? — ele insistiu.

Engoli em seco.

— Eu já me apaixonei antes — falei baixinho.

— Sim. Eu sei. — Paco tocou meu ombro com leveza. — A Mayara também.

Me virei de súbito para ele.

— Mas...

Ele sorriu, levantando a mão para me impedir de continuar falando.

— Olha aí na ficha dela. Clica no "arromântica".

Eu fiz isso, e então li em voz alta a informação que apareceu no pop-up.

— "Não-estrito". Isso quer dizer que...

— Sim. Quer dizer que ela sente, em algum nível, atração romântica. É por isso que estamos indo até lá. Senão, seria uma missão impossível, não é mesmo?

Pensei em tudo o que eu sabia sobre cupidos, em como eles tinham me perseguido por anos, fosse eu arromântica ou não, e precisei rir.

— Ah, porque cupidos odeiam missões impossíveis, né?

Paco me lançou um olhar.

— Nem todas. Mas é preciso ser meio masoquista para continuar insistindo em algo que não tem como acontecer.


***


Enquanto tomávamos chá, discutimos sobre a outra metade do casal.

Bianca Barreto Fontanelli.

Vinte anos. Irmã mais nova de quatro, sendo a única menina. Cursando o segundo ano de Direito. Ajudante na padaria da família nas horas extras. Bissexual.

— Essa não é famosa no seu mundo? — eu perguntei, provocando.

— Ainda não — Paco brincou de volta. — Mas espera só até a gente completar a missão... Os cupidos não vão aguentar o sucesso desse amor!

— Você está bem otimista, hein?

— E você deveria estar também! O plano que pensei para essas aqui talvez seja o melhor de todos os planos que eu já tive.

Lá vem, pensei.

Por fora, apenas apoiei os cotovelos sobre a mesa para segurar a cabeça nas mãos e tentei não parecer muito ranzinza quando perguntei qual era o tal plano.

Era exatamente a pergunta que ele queria ouvir. Só faltou se levantar e dar pulinhos enquanto batia palma.

— O que Mayara e Bianca têm em comum? — instigou, se recusando a me dar a resposta de mão beijada.

Encarei o tablet.— Hm... Sei lá. Os pais da Bianca têm uma padaria, e a Mayara provavelmente come pão? — chutei.

Paco parou para refletir sobre aquilo.

— É verdade. Também tem isso. Mas eu estava me referindo a outra coisa.

Inspecionei o perfil dos nossos alvos por mais alguns segundos.

— As duas eram muito boas em História no colégio — foi o melhor que consegui encontrar.

— Não! — Paco exclamou, frustrado, puxando o tablet de mim. Ele deu zoom em uma parte específica dos perfis combinados que eu tinha deixado passar batida. — Elas adoram filmes de Natal.

Minha reação instintiva foi rir. Paco riu junto, mas parecia não ter entendido que eu estava rindo dele. Estava feliz achando que sua empolgação estava sendo levada a sério.

— E como isso vai nos ajudar? — perguntei, parando de rir.

— Não é óbvio? — Ele abriu os braços de forma teatral. — Vamos ter que dar uma festa de Natal!

— Paco... — Eu não queria ser a estraga-prazeres, mas alguém precisava fazer esse papel. —Estamos em junho.

— E o que que tem?

— O Natal é só em dezembro. Faltam seis meses ainda.

— Mas... — A expressão de completa decepção quase fez meu coração doer. — Não tem como mudar? Que nem a Páscoa? Porque eu sei que a Páscoa muda! Algumas vezes é em março, outras em abril, não é? Então e se a gente mudar um pouquinho o Natal? Só dessa vez?

Coloquei a mão sobre o ombro dele, tentando consolá-lo.

— Você está tão apegado assim a essa ideia de festa de Natal?

— É a ideia perfeita, Liliana! — ele argumentou, emotivo. — As duas são completamente rendidas por filmes de romance de Natal. Imagina que mágico elas se apaixonarem justamente no Natal?!

— Bom... — Procurei desesperadamente um modo de ver a situação por um ângulo mais confortante. — Vai ser bem legal também se elas se apaixonarem agora e ainda estiverem juntas em dezembro, que aí passam o Natal juntinhas!

— E seeee... — Paco começou, animado de novo — ... a gente fingir que é Natal?

— Fingir?

— É! A gente faz um Natal de mentirinha! Vinte e cinco de junho. Seis meses antes. Um Natal no meio do caminho até o próximo Natal.

Não sei se era porque eu estava passando tempo demais com o cupido, mas a ideia já não me parecia tão absurda.

— Um Natal fora de época?

— Sim, um Natal junino! As pessoas que amam o Natal com certeza não se oporiam a algo assim!

— Pode funcionar — admiti.

— Pode e vai! — Paco se levantou, todo empolgado. — Nem acredito que vou viver meu primeiro Natal!

— Só não esquece que estamos fazendo isso pelas meninas — provoquei.

— Claro. — Ele limpou a garganta e tentou ficar sério, mas seu sorriso era tão largo que escapou pelo canto dos lábios. — Tudo por elas. Tudo em nome do amor!

Eu só consegui rir.


***


Quando chegamos ao pequeno apartamento onde Mayara morava, ela estava no sofá, embrulhada em um cobertor de pelinho e fazendo uma maratona de filmes de Natal.

— Só pode ser o destino — Paco exclamou, contente, se jogando no sofá ao lado dela.

Não tive como discordar. Qual era a probabilidade de nosso alvo estar assistindo a filmes de Natal em pleno junho logo depois de termos decidido fazer uma festa de Natal fora de época para ela se apaixonar?

O cupido deu uma risada e, quando olhei para ele, estava sorrindo como se tivesse lido minha mente.

— Na verdade, ela faz isso sempre que tem um dia ruim ou quando precisa recarregar as energias.

Peguei o tablet para conferir onde estava aquela informação, mas Paco só riu mais.

— Ela tem uma fama no meu mundo, lembra? Temos um feriado em homenagem a ela. Dia Internacional da Mayara Gouveia. Vestimos roupa natalina e assistimos a filmes de Natal. É bem educativo, de verdade. Aliás, por que a gente não aproveita e assiste a alguns com ela?

Revirei os olhos, mas me sentei do outro lado de Mayara.

Não foi uma completa tortura, apesar de eu detestar coisas melosas. Além do mais, se fôssemos discretos, dava até para roubar uma pipoquinha ou outra. Os filmes me pareciam bobos, mas eram leves e a previsibilidade era quase divertida. Dava para entender por que Mayara, Bianca e tantas outras pessoas adoravam assistir àquilo.Sem contar que foi hilário ver o quanto Paco se emocionava com certas cenas.

Isso porque, segundo ele, cupidos não se apaixonavam.

Imagina se se apaixonassem!

Mayara também não ficou para trás no quesito reações exageradas. Pelo que parecia, ela já tinha visto cada um daqueles filmes várias vezes. Algumas falas ela sabia até de cor. E, mesmo assim, ela se envolvia com a história como se fosse a primeira vez, rindo, chorando, enfiando a cabeça embaixo do cobertor em cenas que eram fofas demais para aguentar.

Paco se emocionava com as emoções dela também.

— Você entendeu a preciosidade que temos em mãos? — ele exclamou em certo ponto. — Deu pra ter uma noção?

No intervalo entre O príncipe do Natal e Um passado de presente, enquanto Mayara estava na cozinha fazendo mais pipoca, Paco enxugou as lágrimas emocionadas e me informou que o sucesso da garota no mundo dos cupidos ia além do fato de ela amar o amor.

— Ela já ajudou a juntar vários casais, sabia? — ele me contou, sorridente. — Dá ótimos conselhos amorosos. Ela é praticamente um cupido honorário, levando amor e felicidadepara várias pessoas.

— Hum... várias pessoas. E quanto a ela mesma?

— Aí é que tá. Para fazermos Mayara se apaixonar, para dar certo, precisamos do clima perfeito. É por isso que temos que caprichar!


***


Bianca era um pouco menos viciada em filmes de Natal. Parece que ela preferia assisti-los apenas na época certa, o que tornava a experiência ainda mais especial.

Quando fomos conferir, ela estava estudando para alguma prova de final de semestre. Superdedicada.

— Era de se esperar que Mayara fosse dar mais trabalho, por estar no espectro arromântico e tudo mais, mas essa daqui é quem pode acabar sendo o nosso problema — Paco falou enquanto observava a garota.

Fiz uma careta.

— Ué, por quê? Ela me parece supernormal.

— Você acha isso porque é igualzinha! — o cupido me acusou. Então, apontou para Bianca e para as pilhas de livros de Direito ao redor do quarto. — Olha só isso. Ela está completamente focada nos estudos, no futuro. Não deixa nem uma brechinha para o amor entrar.

Coloquei as mãos na cintura, irritada.

— Ah, então agora tudo tem que girar ao redor do amor? Qual é o problema de ela ser dedicada, ambiciosa e ter planos para o futuro?

— Nenhum — Paco falou, encolhendo os ombros. — A não ser que você seja o cupido dela. O que, no caso, eu sou. E você também, aliás.

Cruzei os braços, não querendo dar razão a ele, embora, em certo nível, eu soubesse que ele estava certo.

— Eu tô notando que tá rolando um favoritismo aqui — salientei.

— F-favoritismo? — Paco gaguejou, ficando vermelho. — Claro que não.

— É. Porque, do jeito que você fala, a Mayara é a deusa perfeita, queridinha dos cupidos, e a Bianca é a problemática, fria e sem coração.

— Eu não falei nada disso! — ele exclamou. — Só falei que talvez seja mais difícil com a Bianca... digo, como é que vamos convencê-la a ir à festa?

— Por que a gente não faz assim? Você se preocupa em chamar a Mayara, e eu dou um jeito de levar a Bianca. E que vença o melhor.

— Não é uma competição — o cupido falou, confuso, meio rindo. — O nosso objetivo é o mesmo: que elas se apaixonem.

— Bom, então você vai ver que a Bianca vai se apaixonar mais. O nível de amor dela nem vai se comparar à paixãozinha que você vai fazer a Mayara sentir.

— Não dá pra controlar esse tipo de coisa...

— Falou o perdedor! — provoquei, mostrando a língua, antes de me virar de costas e sair do quarto de Bianca.

— Não sou perdedor! — ele exclamou, correndo para me alcançar.

Do lado de fora da casa, Paco e eu nos encaramos e ele estendeu a mão para que eu apertasse.

— Que vença o melhor, então — ele falou.

Eu apertei a mão dele, lutando contra um sorriso para manter a aparência de seriedade.

— Que vença o melhor.


***


Finalmente chegou o grande dia.

Enquanto preparávamos a casa dele para a festa, Paco parecia uma criancinha em uma loja de brinquedos de tão empolgado. Nunca antes eu tinha visto alguém montar uma árvore de Natal com tamanha dedicação. Só faltou ele pegar uma régua para medir a distância exata entre duas bolinhas da mesma cor.

— Você colocou muitas douradas desse lado! — ele reclamou comigo, tirando uma das bolinhas que eu tinha pendurado. — Tem que equilibrar as cores. Precisa ficar perfeita!

Eu cruzei os braços.

— Já parou para pensar que perfeição é um conceito relativo e não necessariamente significa simetria visual?

Ele me olhou com uma expressão confusa.

— Como assim?

— De certo modo, a perfeição também pode ser o resultado de carinho, dedicação e boas intenções, e não apenas precisão e cálculos matemáticos. A perfeição pode ser o sentimento que você tem quando olha para uma coisa imperfeita e pensa "Ei, fui eu que fiz isso!"

Paco olhou para a bolinha dourada em sua mão e depois analisou a árvore.

— O que você está querendo dizer?

— O importante é se divertir — falei, ainda séria. — Não dizem que o Natal é a época das emoções?

De sobrancelhas erguidas, ele piscou devagar.

— Você está zombando da minha cara, né?

Finalmente liberei uma risada. Mas estendi os braços, alcançando os ombros dele, e os sacudi.

— Sim, mas só um pouco. Eu realmente acho que você deveria relaxar e aproveitar as coisas em vez de se preocupar com os mínimos detalhes.

Ele suspirou e colocou a bolinha dourada em um lugar qualquer da árvore.

— Você está certa.

— Quando é que não estou?

— Vou relaxar e deixar o espírito natalino tomar conta.

Eu sorri para ele, entregando a caixa com os pisca-piscas.

Ele desenrolou as luzinhas de dentro da caixa antes de enrolá-las ao redor da árvore, agora muito menos preocupado com o posicionamento.

— Mas então, me conta... — Paco começou de repente. — Como é que você convenceu a Bianca a vir?

— Surpresa — falei. Não era a primeira vez que ele perguntava aquilo; eu tinha decidido guardar o segredo da minha vitória.

— Não vai me contar mesmo? — ele insistiu. — Não é justo. Eu te falei como convidei a Mayara.

— Você falou porque quis. E além do mais, nem teve graça. Você só perguntou se ela queria vir, e ela disse sim.

— Com a Bianca não foi assim?

Encolhi os ombros.

— Você vai ter que esperar para ver.

Ele permaneceu emburrado comigo por um total de trinta segundos antes de esquecer que estava bravo e voltar a ficar empolgado com a decoração de Natal.


***


Depois de apenas mais algumas horas de arrumação, parecia que o Papai Noel tinha vomitado o espírito natalino por toda a casa de Paco. Luzes coloridas em todo lugar, anjinhos de cristalnas prateleiras, detalhes em verde, vermelho e dourado.

Com um gorrinho de Papai Noel na cabeça, Paco encarava satisfeito todo o nosso trabalho duro, enquanto ao fundo uma playlist natalina quase nos levava a acreditar que estávamos em dezembro.

Quando Mayara chegou, já havia alguns outros convidados na casa. Eles não tinham nada a ver com a história, mas foram escolhidos a dedo para fazer a festa parecer mais aconchegante e natalina. Eram figurantes que atraímos com a promessa de comida de graça. Eles todos tinham certo apreço pelo Natal, mas ninguém ali era interessante o suficiente para tirar o brilho do nosso futuro casal.

Bom.

Quase ninguém.

Paco achou uma ideia genial convidar uma certa pessoa para ser nosso Papai Noel.

Uma certa pessoa que, digamos, roubava a cena um pouquinho.

Olhei, alarmada, para onde Paco estava cumprimentando Mayara, então olhei de volta para Doc, nosso Papai Noel, que tinha acabado de voltar do quarto de Paco, onde tinha se vestido a caráter.

Doc estava usando a típica roupa pesada vermelha e branca, barba branca falsa, um gorro e óculos de aro redondo. Dava para entender que ele estava tentando se passar por um Papai Noel, mas não era muito convincente. Papai Noel nenhum podia ser assim tão bonito.

— Por que você está me olhando assim? — Doc perguntou. Seus olhos desviaram de mim e ele corrigiu a pergunta: — Por que todo mundo está me olhando assim?

Abri a boca para responder, e então uma das nossas figurantes exclamou:

— Ui, eu quero sentar no colo desse Papai Noel!

Outro figurante puxou Doc até o sofá, e eu só levantei as mãos, me inocentando. Com a expressão mal-humorada de sempre, ele deu atenção aos convidados, enquanto me encarava como quem diz "Vocês estão me devendo uma".

— É tudo em nome do amor! — eu provoquei e, quando ele fez uma careta, encolhi os ombros e ri.

— Lili — Paco disse, se aproximando sem que eu percebesse. Tive um pequeno sobressalto quando sua mão tocou minhas costas de uma forma quase íntima. — Essa aqui é a Mayara.

Coloquei meu melhor sorriso no rosto.

— Oi! — eu a cumprimentei com um abraço e um beijo no rosto. — Prazer. Bem-vinda!

— Obrigada! — Ela parecia tão empolgada quanto Paco, talvez até mais. — Achei genial essa ideia que vocês tiveram! Comemorar o Natal nunca é demais.

Quando olhei para Paco, ele já estava olhando para mim, um sorriso gigantesco no rosto. Eu quase podia escutar sua voz me dizendo "É o plano perfeito!".

Então, com o sorriso diminuindo um pouco, ele perguntou:

— Lili, não está faltando mais ninguém, não?

Ergui as sobrancelhas, não querendo entregar as cartas na frente de Mayara.

— Paciência — disse com um sorriso forçado.

— Mas a festa já... — ele começou a protestar, mas um timer apitou na cozinha, e os olhos de Paco se arregalaram, eufóricos. — O peru ficou pronto!

Ele correu para a cozinha.

— Vou lá dar uma ajuda — falei para Mayara —, mas aproveita a festa. Fica à vontade. Já já a ceia vai começar a ser servida.


***


Na cozinha, Paco já tinha vestido um avental com temática natalina e andava de um lado para o outro, se certificando de que todos os pratos estavam perfeitos. Havia um pano de prato com estampa do Rudolf, a rena do nariz vermelho, enrolado ao redor do curativo da mão que eu havia quebrado quando nos conhecemos. A outra mão segurava uma colher de pau.

— Você fez peru, chester, tender e bacalhau? — perguntei, espantada e impressionada.

— Eu não sabia qual era melhor, então quis garantir — ele retrucou como se não fosse nada. — Ah, e tem peru vegano também, se você gostar.

Mordi um sorriso enquanto me apoiava contra a geladeira.

— O cheiro está ótimo — falei. — Não sabia que você cozinhava.

Paco se virou para mim cheio de culpa, os olhos arregalados, os lábios espremidos.

— Talvez eu tenha trapaceado um pouquinho — ele admitiu. — Mas só um pouquinho.

— Usou os apetrechos mágicos de cupido para conjurar a comida perfeita?

— Se é em nome dos nossos alvos, não é ilegal, né? — Ele deu de ombros, relaxando finalmente quando me ouviu rir. — Ei, o que você acha? Boto ou não uva-passa nesse arroz? — perguntou, alcançando a travessa.

— Não! — eu disse rápido. — Nada de uva-passa! Quer estragar o clima de romance?

— Na verdade, uva-passa é bem afrodisíaca. Mas, já que você diz, não vou botar.

— Obrigada.

Começamos a pegar as tigelas e travessas para empratar a comida. Trabalhamos quase em silêncio, em uma organização sincronizada.

Até que ele perguntou:

— E a Bianca?

Consultei meu celular rapidamente.

— Ela deve estar chegando. Corre, vamos pôr a mesa!

Eu peguei a travessa de arroz e Paco pegou o bacalhau, me seguindo sem entender muito. Precisamos de mais algumas viagens de ida e volta à cozinha para que a mesa estivesse completa. Os convidados, sorridentes, todos já entrosados, vieram correndo ao sentirem o cheiro delicioso que exalava da comida.

Mayara se sentou em uma cadeira quase na ponta, ao lado de Doc, que tinha removido a barba falsa e desabotoado o grande casaco vermelho. O modo como ele olhava ao redor da decoração e para a comida me dizia que estava tão animado com aquele Natal de mentirinha quanto o próprio Paco, embora não quisesse dar o braço a torcer.

As pessoas se serviram rapidamente. Paco tinha um pouquinho de cada coisa no prato e ficou tão entretido provando os novos sabores que até se esqueceu de me perguntar sobre Bianca.

Então, no meio da ceia, a campainha tocou.

Já esperando por aquilo, me levantei primeiro que todos.

— Quem será? — eu disse misteriosamente.

Paco arregalou os olhos para mim, o sorriso preso em seu queixo caído.

Antes de confirmar, eu saí de perto para atender a porta.

Bianca estava vestida de modo casual. Segurava uma travessa enorme nas duas mãos e seus olhos brilhavam, analisando a decoração.

— Oi! — me cumprimentou. Olhando minha roupa de elfa natalina, ela sorriu mais ainda. — Liliana? Aqui está a rabanada que você encomendou.

A ideia de encomendar as rabanadas na padaria da família de Bianca veio depois de Paco mencionar o quanto seria difícil convencer a garota a sair de casa. Bom, ela não precisaria de muito convencimento se ela fosse obrigada a sair, não é? Então pedi para entregarem as rabanadas justo quando eu sabia que ela estaria ajudando com as entregas. Aliás, justo quando seu turno estava prestes a acabar. Assim, ela não teria nenhuma desculpa para ir embora.

— Estamos fazendo um Natal de meio de ano — expliquei. Toquei a mão dela com gentileza quando fui pegar a travessa. — Ei, por que você não entra um pouco?

— E-eu?

— É! O dono da casa fez comida o suficiente para abastecer um exército. E temos bastante espaço lá dentro. E agora temos também rabanadas! — exclamei animadamente, erguendo um pouco a travessa.

Bianca riu, sem graça.

— Eu não... — ela começou.

— Fica só um pouquinho? — praticamente implorei. — Se não estiver gostando, pode ir embora a qualquer momento. — Tive que lembrar a mim mesma que, vendo de fora, sem saber sobre nossos planos de amor, aquela minha insistência poderia parecer um pouco suspeita. — Só estou falando porque vi seu rosto quando chegou, a forma como estava observando os pisca-piscas. Você parece uma pessoa muito estudiosa, muito dedicada, e aposto que está precisando tirar uma folga. Relaxar um pouco. Conhecer pessoas novas...

Eu estava começando a me xingar mentalmente, certa de que tinha estragado tudo, quando Bianca sorriu.

— Ok. Eu aceito entrar um pouquinho, então. Obrigada.

Voltei sorridente para a festa, Bianca, tímida, entrando atrás de mim.

— Olha só o que chegou! — anunciei. Enquanto os olhos de todos estavam na travessa em minhas mãos, Paco encarava Bianca, animado. — Rabanada!

— Rabanada! — exclamou Mayara, até se levantando de tanta empolgação. — Eu já estava me perguntando se não teríamos rabanada nesta festa. O que é Natal sem rabanada?

Paco trocou um olhar comigo. É claro que eu sabia que Mayara amava rabanada. Estava na ficha dela. Eu tinha feito meu dever de casa.

— Pois é, e olha só quem trouxe! — Coloquei as rabanadas sobre a mesa para poder segurar Bianca pelos ombros e apresentá-la à festa, como o macaco do rei Leão apresentando Simba ao mundo. — Essa aqui é a Bianca. Ela também adora o Natal e topou passar um tempo na nossa humilde festinha.

Bianca se voltou para mim, meio assustada.

— Como você sabe meu nome?

Meu coração deu um salto.

— Você me falou — menti rápido. Na realidade, não lembrava se ela tinha dito ou não, mas eu não deixaria aquele pequeno detalhe botar tudo a perder.

— Falei?

— Claro que falou! De que outra forma eu saberia?

Ou você por acaso acha que eu tenho uma ficha com todos os seus dados em um tablet mágico?

Mayara veio ao meu resgate.

— Oi, Bianca — ela cumprimentou a outra com um abraço apertado como se já fossem velhas amigas. — Meu nome é Mayara.

Timidamente Bianca abraçou Mayara de volta, e bem assim o incidente do nome já tinha sido deixado de lado.


***


Imaginamos que fosse ser mais difícil, afinal uma delas tinha expectativas muito altas para o amor, enquanto a outra não estava aberta para ele. Mas Mayara e Bianca se deram bemlogo de cara. Passaram a noite toda conversando, trocando histórias de Natal, fofocando sobre os filmes a que adoravam assistir, tagarelando sobre as decorações de Natal e sobre como o anfitrião da festa tinha feito comida demais.

Paco tinha razão. O clima estava perfeito para um romance.

No fim da festa, quando quase todos tinham ido embora, as duas ainda estavam de papo, no sofá, bem ao lado da árvore de Natal.

Paco e eu colocamos nossos cintos da invisibilidade e nos preparamos para concluir o serviço.

— Parece até que elas já estão apaixonadas — comentei.

— Ainda não, mas quase — Paco me disse. — Isso é atração. Sintonia. Fascínio. É perfeito. Mas ainda precisa de um empurrãozinho.

Ele me entregou a debellatrix, a arma do amor, já carregada com suas seringas radioativas que causavam paixão.

Não muito tempo depois de eu ter atirado nas duas, o momento oportuno para um beijo chegou, e elas não nos decepcionaram.

— Ah, o amor... — Paco suspirou, apoiando o queixo nas mãos enquanto observávamos as duas de nosso posto na mesa, já sem os cintos.

Vimos as duas meninas, os olhos brilhantes, as bochechas coradas, trocarem telefones. E então, por fim, agradecendo a mim e a Paco, se despediram e deixaram a festa — cada uma para sua própria casa, mas nosso trabalho estava feito. O amor estava plantado e agora só precisava germinar.

Quando todos foram embora, Paco se sentou no sofá e suspirou, o rosto alegre em uma expressão de completude.

Ainda tinha mais da metade da comida na mesa e uma casa inteira para arrumar, mas me sentei ao lado dele, me permitindo relaxar por um instante.

— Ei... — comentei. O cupido virou a cabeça na minha direção. — Feliz Natal.

O sorriso dele aumentou.

— Feliz Natal, Lili.

— Acho que o Papai Noel deixou um presente para você embaixo da árvore.

— O quê? — O rosto dele se contorceu em confusão. — O Doc?

— Não o Doc, aquele Papai Noel bonitão fajuto. Estou falando do Papai Noel de verdade.

Paco segurou meus ombros e olhou dentro dos meus olhos, falando calmamente:

— Lili... Papai Noel não existe.

Revirei os olhos, batendo no braço dele.

— Olha logo embaixo dessa árvore!

Ele riu e obedeceu, encontrando o pacote que eu tinha escondido ali. O papel de presente tinha estampa de corações usando chapéu de Natal.

— O que é isso? — Paco perguntou, olhando para mim.

— Abre — falei simplesmente.

O sorriso de criança voltou ao rosto do cupido.

— Não acredito! Meu primeiro presente de Natal!

Ele rasgou o papel de presente como se tivesse cinco anos de idade e encontrou a camiseta que eu tinha comprado para ele. Erguendo-a esticada, leu o que estava estampado:

— "Meu primeiro Natal"!

Havia uma pequena árvore de Natal cheia de luzes e bolinhas decorativas ornando com a tipografia.

Paco abriu um sorriso largo e começou a rir.

— Eu adorei!

— Tive que encomendar uma do seu tamanho. Normalmente, só fazem para bebês.

Antes que eu pudesse me preparar, Paco largou a camiseta e me abraçou com força, me apertando por um tempão sem dizer nada. Quando finalmente me soltou, notei que seus olhos estavam cheios de água.

— Obrigado, Lili — ele murmurou. — Foi uma experiência incrível.

Eu sorri.

— Feliz Natal.

E, de fato, tinha sido um feliz Natal.

Mesmo não sendo Natal de verdade.

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