o1| "Você não pode simplesmente dizer não?"
A sirene do carrinho de sorvete que passava na avenida sempre soava um minuto antes do sinal da universidade tocar. Bruno mal via a hora de chegar em casa, e, ao escutar a sirene do carrinho, foi como música para seus ouvidos. Dois minutos depois os alunos foram liberados.
Ele avançou pelos corredores, subiu três lances de escadas e finalmente alcançou o banheiro mais reservado do prédio. Ninguém gostava de usar o terceiro andar, pois estava desativado devido algumas obras e os valentões gostavam de matar aula por lá. Porém, a dor de barriga dele não poderia esperar. Para seu alívio, o andar estava vazio, assim como o banheiro. Ele abaixou as calças e mandou ver.
O rapaz se lavou na última cabine e saiu se sentindo leve como uma pena, e enquanto descia o lance de escadas, refletiu sobre a sua péssima decisão na noite passada. A mãe estava empolgada com o novo curso de culinária ministrado pelos frades, que tinha o intuito de arrecadar fundos para a igreja, então ele, o pai e a irmã eram cobaias. A sra. Alvarez preparou um de chili mexicano, mas além de estar muito ruim, a pimenta predominou.
A universidade já estava praticamente vazia quando o rapaz chegou ao pátio. Para sua tristeza, o ônibus já tinha passado e ele teria que andar longos quarteirões até chegar em casa e ser vítima de mais uma das receitas duvidosas de sua mãe. Ele pensou um pouco e decidiu matar o tempo nas arquibancadas sombreadas do campo, assim chegaria mais tarde e pularia o almoço.
Sua barriga roncava, mas decidiu não arriscar ter mais uma disenteria. Os treinos estavam suspensos, pois era fim de semestre, e isso abria brecha para os jogadores se sentirem mais preguiçosos do que o normal, e não era por causa do frio. Aquele era o penúltimo ano para muita gente, e todos estavam fazendo planos para suas carreiras.
Ele ajeitou a jaqueta preta no corpo para afastar a frigidez, e antes de alcançar as arquibancadas, escutou alguém chorar. Ninguém estava à vista, e o choro vinha de cima. Bruno não gostava de ser invasivo, mas não conseguiu ignorar as lamúrias femininas que o vento gelado trazia aos seus ouvidos.
Sentada no ponto mais alto, no último degrau, estava Erin Knox. A garota chorava com o rosto afundado entre os joelhos e não escutou o rapaz se aproximar. Ele achou estranho vê-la sem a companhia de suas fiéis escudeiras, que a guardavam como uma joia rara. Encontrar a garota mais popular de todo o campus sozinha era uma raridade, mas lá estava a ruiva, chorando como se o mundo fosse acabar. Ela ergueu o rosto de modo repentino ao perceber a presença de alguém. Seus olhos verdes estavam avermelhados, assim como o narizinho nervoso.
— Tudo bem? — ele perguntou.
Erin não respondeu de imediato, na verdade, não sabia se responderia. Ela franziu o cenho e de repente esqueceu de chorar. Olhando-o de cima, o rapaz parecia ainda mais esquisito com aqueles olhos de panda. Bruno sabia que não teria uma resposta imediata, então se sentou descontraidamente ao lado dela.
Erin não reclamou, muito menos o atacou com palavras, apenas permaneceu quieta, fitando o campo em seu horizonte. Quando a fome apertou, ele vasculhou a mochila e retirou um pote de batatas, abriu e ofereceu para a ruiva. Erin o encarou como se fosse uma aberração, mas para sua surpresa, ela aceitou as batatas.
— Então, por que estava chorando?
Erin piscou os olhos com força e percebeu que não chorava mais. Bastou uma simples distração para esquecer que o mundo parecia estar desabando sobre a sua cabeça. Ela queria que o surto fosse apenas mais um dos caprichos da adolescência, como esquecer de levar absorventes, mas quem dera Erin estivesse desesperada por isso. Ela olhou para dentro do pacote e escutou sua dieta gritar ao desejar aquelas batatas gordurosas.
— Não é da sua conta. — Rebateu, enquanto levava um bocado de batatas à boca.
— Eu ofereço a minha única fonte de alimentação, um pote da edição limitada da Pringles que custou quinze reais... e você me responde assim?
Bruno falou e gesticulou de modo muito teatral, arrancando uma risada de Erin. Todo mundo sabia que ele era do clube de teatro, mas ela nunca tinha visto sua performance de perto. A fome a deixava uma fera, e nem mesmo seus palitinhos de cenoura iriam acalmá-la. Ela resolveu ceder diante da gentileza do rapaz, que não parecia ter más intenções.
— Eu briguei com a minha mãe.
— E daí?
— Ela arranjou um casamento pra mim.
Ele a encarou, incrédulo. Parecia mentira, e ele sabia quando alguém estava atuando. Erin parecia estar de saco cheio, sem esperanças para qualquer que fosse o seu problema.
— É sério?
— Hurum. Eu não tô nem aí, cansei disso. — Ela suspirou e mordeu o lábio inferior. — Vou fugir.
— Você não pode simplesmente dizer não?
— Não se diz não para Pietra Knox.
— E por que não?
Erin pensou um pouco e deu de ombros.
— Porque ela é a porra de uma sociopata.
Bruno foi pego de surpresa e não soube o que dizer. Estar falando com Erin Knox já parecia um ponto alto naquele dia, mas jamais imaginou escutar algo do tipo vindo dela. Era fácil olhar para a ruiva e projetar a vida perfeita dela. Um silêncio constrangedor ameaçou se estender entre os dois, o que deu tempo para Bruno analisá-la um pouco.
Seu novo olhar sobre ela conseguia enxergar uma mulher fútil, mas com camadas profundas de tristeza. Erin percebeu a encarada e se sentiu constrangida, mas também o encarou. Para ela, o rapaz era ainda mais esquisito de perto. Cabelos negros desgrenhados e espalhados pela testa, os olhos contornados com lápis de olho, unhas pintadas de preto e roupas de combinações duvidosas, tal qual os emos.
— Você aguentaria um casamento forçado? — Ela indagou, quebrando o silêncio.
— Só se fosse com você.
Bruno resolveu fazer gracinha, mas Erin não riu, pelo contrário, um brilho predatório surgiu em seus olhos.
— Duvido — Ela soltou uma risada abafada.
— Qual é, você não deve ser tão ruim — ambos riram. — Mas é sério, você vai se casar?
— Não — Erin suspirou, parecia exausta. — Talvez eu fuja ou me mate antes.
Bruno se encolheu ao ouvir aquilo, foi como facas entrando em seus ouvidos. O tempo começou a fechar e um sereno começou sem aviso prévio. Erin não se moveu, não estava se importando com nada. Bruno retirou sua jaqueta do Green Day e passou pelos ombros dela. A ruiva pareceu despertar dos devaneios e aceitou a ajuda para se levantar. Ela estava no automático, mas ainda murmurou um agradecimento pela jaqueta.
— Como você vai para casa? — Ele perguntou.
— Como assim?
— O lugar que você mora, como vai voltar? Seu pai estaciona todo dia aquele carrão na entrada do campus e aguarda você.
— É uma Ferrari da última geração.
— Tanto faz.
— Ele não veio, teve uma reunião de emergência.
— Eu te levo.
— Ah... — Erin ponderou, não queria voltar para casa. — Posso ir pra a sua casa?
Bruno não estava entendendo mais nada. Primeiro que não imaginava que um dia iria falar com Erin, e segundo, não imaginava que ela pudesse sair falando aquele tipo de coisa, ainda mais com um estranho. Ele não acreditava que ela estava disposta a ser vista com um esquisitão como ele e não queria problemas, mas também não conseguiu ignorar o quanto a menina parecia apavorada.
— Vamos.
Ele segurou a mão dela e começou a descer a arquibancada. Algumas meninas aspirantes a populares os viram de mãos dadas e começaram a cochichar. Erin não sabia para onde estava indo, mas qualquer lugar era melhor do que a sua casa. A menina parecia ainda mais pálida, fazendo suas sardas amarronzadas se destacarem.
— O que foi? Alguém te viu comigo?
— Não é nada — ela desconversou.
A chuva começou, e não demorou para se tornar um aguaceiro. As rajadas de vento encharcaram a calça de ambos e começou a molhar todo o resto. Embora grande, o guarda-chuva se mostrou muito inútil diante do cenário. Um quarteirão depois e o rapaz quase chorou de alegria ao avistar sua casa. Eles entraram apressados e puderam respirar aliviados e escorados na porta.
Estudando em sua escrivaninha, Amanda estranhou o estrondo e foi averiguar. A jovem olhou surpresa para os dois jovens encharcados no hall da entrada e começou a rir, tomando a atenção deles.
— Hoje é o dia do juízo final, ou Erin Knox está mesmo na minha casa?
A ruiva encarou Amanda com desespero estampado na cara. A irmã de Bruno foi a bailarina mais famosa da universidade desde o ícone dos anos 80, Daniela Elvis. Agora com vinte e oito, ela já estava formada e achava todo aquele lance de popularidade uma baboseira. A Alvarez riu da careta de Erin, pois já havia passado por situação parecida, e apesar de não ser nada, para uma jovem de vinte e um anos, era tudo.
— Mana, pega uma toalha pra a Erin?
Amanda não titubeou, tinha receio do irmão pegar qualquer gripe ou algo do tipo. Ela foi ao seu closet, agarrou duas toalhas limpas e desceu com pressa. Magoada e com raiva, ela arremessou a toalha no rosto dele sem um pingo de delicadeza, e lhe aplicou um empurrão no ombro. Erin prestava atenção na cena sem compreender nada, mas percebeu que Amanda tinha lágrimas nos olhos.
— Idiota! — Ela ralhou para ele, depois estendeu a outra toalha para a ruiva. — Toma, Erin. Só se enxuga um pouco e pode subir até o meu quarto para tomar um banho, fica no final do corredor lá em cima.
Erin assentiu e observou Amanda subir. Seus olhos caíram em Bruno, que permanecia um pouco cabisbaixo e pensativo.
— O que foi isso? — perguntou.
— Nada, a minha irmã gosta de fazer cena.
Sua expressão pensativa se dispersou ao notar o delineador borrado da ruiva.
— Estamos quites agora, você também está parecendo um panda.
— Bruno, vai tirar essa roupa molhada agora!
Ambos se assustaram ao ouvirem o grito de Amanda ecoando escada abaixo. Erin se secou como pôde, e, acanhada, subiu rumo ao quarto dos fundos. O rapaz tentou não fazer muita lama pelo carpete, mas o seu all-star não colaborou e deixou um rastro de lama até o sótão. Ele se livrou das roupas molhadas e se olhou no espelho do banheiro.
Algumas manchas roxas preenchiam o seu abdômen, resultado de pequenas hemorragias. A água morna o fez se sentir melhor, e ao constatar que estava cheiroso o suficiente, vestiu uma roupa e desceu. Bruno tratou de limpar a lama para sua mãe não ficar brava, e terminou minutos depois deles chegarem. Já estava beirando ao meio-dia, e os irmãos estavam com uma carta na manga contra a próxima gororoba da sra. Alvarez. Amanda desceu primeiro, seguida de Erin Knox.
Sentado na poltrona da sala, os olhos de Bruno caíram na ruiva, que estava usando um dos vestidos florais antigos de sua irmã. Erin ficava ainda mais bonita sem maquiagem, tão bonita que era quase impossível conceber tanta beleza em uma única pessoa. As sobrancelhas grossas e bem feitas, os cabelos que agora caíam secos e ondulados, as sardas mais evidentes. O vestido deixava seus ombros e busto desnudos, repletos de uma vastidão de pintinhas que os deixavam ainda mais delicados.
A Knox era podre de rica, mas até aquele momento, agia como uma pessoa perfeitamente normal. Amanda estava orgulhosa da produção que fez na ruiva, em especial nos cabelos, que ela não entendeu o motivo de a menina o manter alisado. Ainda sem entender nada desde que chegou, a sra. Alvarez mal podia acreditar que a filha mais nova dos Knox estava em sua casa, e aquilo era motivo para comemorar.
— Hoje temos visita, então vamos pedir um almoço especial! — ela declarou.
Erin Knox, além da beleza estonteante, era a salvadora do dia. O almoço chegou, todos se sentaram à mesa, fizeram uma prece e começaram a comer. A sra. Alvarez estava ansiosa para disparar milhões de perguntas para o filho, mas se quisesse vê-lo namorando a ruiva, teria que ir com calma, então decidiu não bancar a louca.
Ela mal via a hora de esfregar na cara das irmãs "O meu filho namora uma Knox", já se via dizendo. Todos começaram a jogar conversa fora, enquanto a chuva não dava sinais de trégua. Erin observava os trejeitos de cada um, e gostou de estar ali. Ninguém a estava tratando como uma Knox, que eram os reis da porra toda. Ali, naquela mesa farta, ela era somente a Erin.
— Obrigada — ela disse para Bruno, e depois fitou cada um deles. — Posso passar o restante do dia e a noite aqui?
Bruno parou de mastigar e a encarou.
— Quer mesmo passar a noite na casa do emo? — indagou, de boca cheia.
— Hurum.
— Fique à vontade, meu bem — Disse a sra. Alvarez, querendo gritar de alegria. — A casa é sua.
— Obrigada — Erin sorriu. — O Bruno queria que eu conhecesse a família dele.
Bruno a encarou sem entender muita coisa, mas não disse nada, preferiu pensar que Erin era apenas louca. A ruiva lançou um olhar calmo, diferente de minutos atrás. Ele sabia quando alguém estava mentindo, e naquele momento, ela estava atuando da melhor forma que podia.
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