Ratazanas e Sangue
— Oi, Beatriz. Ainda pensa em fazer todos felizes?
A menina falou, e sua foz era lenta, fria, desprovida de qualquer emoção. Seus olhos eram vazios e sua expressão era triste. Ainda assim, de alguma forma, havia algo de intimidador enquanto ela falava. Algo dava medo. Algo gelava a espinha.
— Q-quem é você? – Gaguejou Elias, tentando parecer firme, mas era traído pela voz vacilante e pelas canelas trêmulas.
A menina agora se voltou para ele. Não havia expressão naquele rosto, mas ao mesmo tempo era acusador. Parecia poder ferir de tanta dor, tanto remorso.
Tanta ira.
— Fique do lado dela e será nosso inimigo. – sentenciou a menina, em uma voz serena, arrastada, desprovida de qualquer emoção. – Seja seduzido por palavras doces, ajude-a e morra.
A coragem de Elias fraquejou. Beatriz ergueu os braços e começou uma estranha ladainha, olhando para os céus e suplicando ajuda do alto.
— Isso não adianta, Beatriz. Não vai funcionar comigo de novo. – disse a menina, voltando-se para ela – Deixe as flores aqui e esqueça seu destino. Prometo que seremos piedosos com você. – e, passando o dedo indicador esquerdo pela garganta, manteve o rosto sem expressão mas desenhou nos lábios um sorriso – Vamos lhe matar rápido.
— O que-que vo-voceê quer... – tentou falar Elias.
— Quero tudo. E não quero nada. – disse a menina, olhando para Elias. - Não quero muito. Só quero triunfar. Uma única vez, basta uma vez. E essa dor, essa dor vai parar.
— Dor? – perguntou ele, enquanto Beatriz continuava a rezar – Mas você esta... Está... Está morta... – ele tremia de mais, quase não conseguia falar – Que dor você sente?
— Qual é a dor que eu sinto? – perguntou a menina, mostrando algum sentimento pela primeira vez. E era um sentimento de dor, revolta, pura fúria – É esta a dor que eu sinto!
E, falando, ela rodopiou, ficando de costas para Elias.
Pela frente era uma menina bonita. Às costas, um punhal estava encravado em seu coração e o vestido branco estava tingido de vermelho pelo sangue que continuava a jorrar, continuava a pingar.
E parecia continuar a doer, porque a menina começou a gritar. Era um grito agudo, doloroso, amedrontador – era o som do sofrimento infinito.
— Pelo Eterno! – gritou Elias, batendo a porta e arrancando de seus olhos a amedrontadora visão da menina morrendo diante de seus olhos.
"Não, não, não", pensou o desesperado homem. Ela não estava morrendo. Já estava morta.
Já estava morta.
— Beatriz! – gritou ele, procurando a mulher com os olhos. Ela havia parado de rezar e uma vez mais chorava, o pavor desenhado em seus olhos.
— Agora você sabe, Elias. Você viu. – e para por um momento, respira fundo e enxuga as lagrimas – Mas ainda há tempo para você. Vamos sair daqui, você entra no seu carro e vai para longe, sem olhar para trás. Eu vou cumprir a minha sina.
— Mas... – gagueou Elias – Como vou te deixar sozinha com isso?
— Eu não posso garantir a sua vida! – gritou ela, à flor dos pulmões, caminhando na direção dele. E então se acalma, inspira profundamente e parece suplicar – Não posso garantir nem a minha, Elias.
Reservaram alguns segundos para se acalmar. Combinaram isso em silêncio, apenas trocando olhares. E então se preparam para enfrentar o que estava do outro lado da porta.
Beatriz segurava o vaso de flores como um escudo e uma arma. Elias não entendia que tipo de magia havia naquelas flores, mas de todas as coisas que não entendia naquela noite, essa parecia ser a mais insignificante.
Após mais uma rápida troca de olhares, trocaram também um aceno positivo de cabeça. Elias abriu a porta lentamente.
O coração de Elias parecia preso na garganta, mas foi descendo lentamente e voltou ao seu lugar no peito quando viu que não havia nada do outro lado. A menina desaparecera por completo.
Os cúmplices trocaram um sorriso amarelo e Elias sentiu que um piano foi tirado de suas costas. Como era doce o sabor do alívio.
Foi então que ouviram um rangido.
Sem trocar palavra, ambos ficaram alertas, prontos para o que fosse aparecer. Elias viu que fora um idiota, não deveria se assustar com fantasmas – afinal o que eles poderiam fazer? Estava feliz por não ter descoberto novidades, mas parece que um ser etéreo não poderia fazer nada contra ele.
Recordou-se das batidas na porta e a tensão voltou a inundar seu ser, e resolveu tentar esquecer a história e voltar a se concentrar na questão do estranho rangido no corredor.
Parecia que apenas com isso já tinha problemas suficientes.
Olhou corredor à fora e não viu nada de um dos lados. Do outro, naturalmente, viu a fonte do barulho.
Havia um longo corredor, com portas uma defronte a outra, dos quartos. Mais ou menos no meio do corredor, uma pessoa estava sentada, à meia luz, e o rangido constante era do balançar da antiga cadeira de balanço.
Elias enrugou a testa, curioso. Não, aquela pessoa não estava ali nas duas vezes anteriores que atravessou o corredor. Ele olhou para Beatriz para confirmar sua teoria, mas os olhos esbugalhados e o lábio superior trêmulo dela responderam a pergunta que ele não fez.
A bendita coragem fraquejou novamente e Elias não saiu corredor afora para verificar. Tentava fazer as pernas pararem de tremer quando Beatriz saiu do quarto, ganhando o corredor. Ele tentou segurá-la, mas os cabelos dela escaparam entre os dedos dele.
— Beatriz! – sussurrou ele baixinho, respirando fundo e indo trás dela na ponta dos pés.
Parou quando a alcançou, cerca de três metros da pessoa que cochilava na cadeira. Viram que era uma mulher, muito idosa. Estava vestida com um longo camisolão azul bebê e um agasalho de tricô – nos pés, longas meias de algodão. Os cabelos estavam soltos, muito grisalhos, praticamente brancos. Os olhos estavam fechados e do canto da boca escorria um filete de baba.
Ela balançava suavemente e podia ser visto o movimento lento de seu peito, no ritmo da respiração.
— Ela está viva? – perguntou Elias, esperançoso – É uma pessoa normal?
Ao som da fala de Elias, tivemos duas reações.
A primeira foi um olhar desesperado de Beatriz, como se o censurasse por ter falado, coisa que ele pôde entender facilmente.
A segunda reação ele teve mais dificuldade de entender. A velha parou de balançar a cadeira, e lentamente abriu os olhos. Mas seus olhos eram negros, vazios. Era apenas a cavidade ocular, sem órbitas. Dos olhos, um líquido negro, talvez sangue apodrecido, começou a jorrar, enquanto ela começou a abrir a boca.
— Corre, Elias! – gritou Beatriz, correndo de volta pelo corredor.
Elias vacilou por um segundo.
Foi o suficiente para ver a mulher escancarar a bocarra de onde parecia jorrar um vômito negro, apodrecido. Mas não era vomito. Eram ratazanas. Dezenas, centenas, cada uma com trinta centímetros ou mais, fora a cauda. Tinham olhos vermelhos e dentes afiados. E vinham na direção dele.
Elias correu como se sua vida dependesse disso, e dependia. Logo alcançou Beatriz e entraram no quarto, fechando a porta e sentindo poderosos golpes do outro lado, como socos, à medida que as ratazanas infernais se chocavam contra a porta.
Aguardaram até que o som do choque parou, veio um período de silencio e outro som teve inicio. Era um estranho arranhar. Os ratos estavam roendo a porta.
— A janela! – quase gritou Beatriz, em tom de urgência.
Rapidamente abrem a janela. A queda, de talvez três metros, não assusta comparado ao que estava do outro lado da porta.
Mal aterrissaram, ela graciosa e ele quase rolando pelo chão, Beatriz já se preparava para correr.
— Vou para o cemitério cumprir minha missão! Vá embora Elias! Salve sua vida! – disse ela.
— Mas Beatriz... – tentou dizer ele. – Você...
Ela não deixou que ele terminasse. Em um movimento rápido, agarrou a gola de sua camisa e os lábios dos dois se tocaram, rápida e furiosamente.
— Essa é a minha sina, não sua. – ela disse. – Obrigado por tudo, Elias. Um dia vamos nos encontrar novamente.
E, sem deixar ele responder, ela saiu em disparada virando à esquerda na primeira esquina.
Abobalhado, Elias tentava entender o que aconteceu quando ouviu o grito. O grito de Beatriz.
Ele correu desesperado e virou na primeira esquerda, sentindo o horror em cada parte do seu ser. Eis que a criatura desfigurada e remontada que viu na parede de flores azuis estava ali, havia caminhado até a cidade. E havia tentado agarrar Beatriz. Não conseguindo, tinha seu cabelo preso bem firme nas mãos.
Diz-se que a ocasião faz o ladrão, mas o mesmo pode ser dito do covarde ou herói. Sem saber o que fazer, Elias desferiu um grito de guerra e avançou na direção da aberração, reivindicando o papel de herói.
Conseguiu apenas distrair a criatura que, com um poderoso movimento de mão, acertou-lhe em cheio no rosto, quebrando seu nariz e derrubando-o, enquanto gritava de dor, e muita dor, enquanto sentia o gosto do próprio sangue que jorrava de seu nariz.
Mas Elias foi herói, porque distraiu a criatura. Assim Beatriz manteve o vaso de flores intacto na mão esquerda, sacando a faca com a mão direita. E, em um movimento enérgico, cortou fora uma generosa porção do próprio cabelo, libertando-se.
— Vamos! – gritou ela, levantando Elias pelas mangas da camisa enquanto o gigantesco retalho humano gritava de fúria, sem largar o tufo de cabelo que conquistara.
Elias e Beatriz corriam de volta para a frente da pensão.
— Você consegue correr? – perguntou Beatriz, preocupada.
— Sangue! – se limitou a dizer Elias, segurando seu nariz e apontando para a cabeça da mulher.
Ela levou a mão a cabeça e quando examinou a mão, estava ensanguentada. Havia se cortado quando usou a faca. Elias olhou para a pousada, e viu a dona da Pousada com um saco de lixo em mãos, que fora descartar, olhando aparentemente sem entender o casal correndo pela rua. Estava longe, não deve ter visto que estavam ensanguentados – foi o que pensou Elias.
Chegaram enfim ao carro, Elias abriu a porta e entrou violentamente.
— Entra! – disse ele, já ligando o carro.
— Não posso ir embora, Elias! – disse ela, com a mão na cabeça para estancar o sangramento – Vou cumprir minha sina ou morrer tentando.
— Eu sei. – disse ele, olhando para ela com olhos injetados e determinados – Eu vou levar você ao cemitério.
Ela chegou a vacilar por um momento. Mas ele já estava totalmente envolvido naquela confusão, isso não podia ser negado. Em um movimento rápido ela entrou no carro.
— Obrigado. – ela disse, fazendo uma careta enquanto fazia pressão na própria cabeça – Mas prometa que vai sair daqui voando depois de me deixar lá.
— Isso eu não posso prometer. – disse ele, acelerando e seguindo pela rua estreita muito acima do limite de velocidade. E, sorrindo para ela, disse – Acho que agora esse problema é tanto meu quanto seu.
— Cuidado, Elias! – gritou ela, desesperada.
Ele voltou a atenção para a rua à tempo de ver a criança parada, enquanto o carro seguia a cem por hora naquela rua que exibia uma placa de vinte quilômetros por hora, aos quais os habitantes estavam acostumados.
Aos quais as crianças estavam acostumadas.
Elias colocou todo o peso do corpo no pedal do freio, mas o carro deslizou por dez quinze metros, chegando à menina e deixando-a para trás. Quando o carro parou, Elias estava em choque, a boca escancarada.
Não tinha coragem de olha para trás.
— E-Elias... – disse Beatriz, agarrando o antebraço dele com a mão direita ensanguentada, mantendo o vaso de flores na mão esquerda.
Elias devia ser corajoso.
Devia olhar para trás e ver o corpo infantil estirado no chão. Tinha que se punir olhando para o erro que cometeu, e arcar com as consequências dos seus atos impensados.
Assim, ele voltou seu olhar para onde Beatriz olhava. E viu a menina.
Ela estava de pé, olhando para eles, caminhando lentamente na direção do carro. Estava de pé, inteira, os mesmos olhos sem expressão, o mesmo rosto sombrio. Enquanto andava, deixava um rastro de sangue etéreo que ia se apagando lentamente.
Era a menina fantasma.
— Vai, vai, vai! – gritou Beatriz, desesperada.
Elias não precisava de uma segunda ordem e pisou no acelerador.
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