Flores Azuis




— Uma noite agradável. – disse Elias para si mesmo, enquanto cortava a estrada à cem quilômetros por hora.

Havia acabado de anoitecer e a estrada cortava a zona rural, com a vegetação desfilando dos dois lados da estada e ao horizonte. Uma música tranquila tocava no som do carro, volume bem baixo, reinando no interior do veículo o som do motor.

O motorista termina sua água em um último gole, derrubando algumas gotas na camisa branca. Além da camisa, o jovem homem negro de peito largo e fácil sorriso vestia calça jeans e tênis preto. Havia trocado de roupa na última parada, seguindo com a viagem para passar as férias na cidade natal.

Ele tenta descartar a garrafa na lixeira pendurada no câmbio do carro, sentindo alguma dificuldade. Com uma rápida olhadela, arruma a posição da lixeira e deposita a garrafa vazia.

Foi o suficiente.

Quando voltou os olhos para a estrada, viu um homem que parecia estar nu, totalmente albino, envolto em uma incandescente aura azul pulsante. Elias gritou sua praga e sua prece, pisando no freio com todas as suas forças, tentando manter o carro em linha reta.

Foi em vão, e o automóvel começou a rodar na pista, fritando pneus.

Enquanto girava, por uma fração de segundos, Elias ouviu o grito coletivo de dor. Em volta do carro, uma multidão de homens nus e ensanguentados, com a boca costurada e as mãos unidas em tom de súplica, gritavam e tentava falar com ele, em um espetáculo medonho.

Elias só sabia gritar, fechar os olhos e pisar nos freios. Alguns segundos depois, não tendo capotado por um milagre, o homem mantinha os olhos cerrados e a respiração ofegante, mesmo parado. Tomou coragem, abriu os olhos e olhou em volta, não vendo nada além da estrada e da mata dos dois lados da estrada.

Ele ficou parado sabe-se lá por quantos minutos, avaliando a situação. Será que essa baboseira de dias das bruxas o estava impressionando? Quando planejou a viagem, percebeu que passaria a noite das bruxas sozinho na estrada. Seus amigos fizeram piadas com a situação, falando de fantasmas, bruxas e outras tolices.

Tolices, apenas.

Sim, a solidão e o cansaço pregaram uma peça em Elias.

— Se alguém tivesse me visto... – sorriu ele, saindo do carro.

Do lado de fora, na estrada, um cheiro de borracha queimada inundou suas narinas. Alguns traços escuros no asfalto denunciavam a violência da frenagem e da forte pressão dos pneus na estrada.

As marcas eram a única coisa fora do comum na estrada.

O cheiro da borracha queimada era forte e incomodava demais, levando o motorista a caminhar até a margem da estrada deserta e inspirar profundamente, sendo agraciado com o leve toque do ar da noite campestre em seus pulmões tão machucados pela poluição da vida na cidade.

A noite estava deslumbrante e o artista divino estava inspirado, traçando na tela celeste inigualável pintura, usando cores que não costumava usar na cidade. Elias sempre achou poético o céu do interior, tão mais limpo e não ofuscado pelas luzes da cidade, com tantas estrelas que jamais foram vistas pelos milhões de olhos das metrópoles.

Elias se voltou de súbito ao ouvir algo que lhe alarmou. À princípio não conseguiu identificar do que se tratava, mas apurou os ouvidos e conseguiu distinguir um choro velado. Aquilo intrigou o homem, pois ia além de uma alucinação fruto do cansaço, da monotonia da viagem solitária e da sugestão da data festiva.

Ele foi à margem da entrada e, depois de uma rápida caminhada, conseguiu ver uma pessoa encolhida em um canto, sob uma árvore. Era uma mulher, branca, com o rosto enterrado nos joelhos encolhida como estava, sentada aos pés de uma majestosa árvore - dela podendo ser visto apenas a calça branca, a bata negra e os longos cabelos arruivados.

— Eh... Olá? – disse Elias, um tanto desconcertado, depois de alguns segundos de silêncio contemplando a jovem.

A mulher levantou de um salto, colocando-se em posição defensiva, trazendo na mão um punhal. Seus olhos estavam atentos, dentes trincados, a tensão pesada em seus ombros.

— Quem é você? O que está fazendo aqui? O que quer comigo? – perguntou ela em tom imperativo.

— Acalme-se, me desculpe! - disse o homem, levantando as mãos – Não era minha intenção lhe incomodar, nem invadir sua privacidade. – E sem se voltar apontou sobre o ombro esquerdo, para a estrada, completando – Meu carro derrapou aqui na estada, parei para verificar e escutei um barulho, então vim verificar.

— Meu carro capotou quilômetros atrás, em uma estrada vicinal, e eu cheguei aqui andando. – e, estreitando os olhos e sem baixar a guarda ou faca, perguntou – Por que você derrapou?

— Eu... – tentou dizer ele, desconcertado – Eu me distrai e...

— Distraiu. – disse ela, o interrompendo e estreitando os olhos – Você os viu também?

Elias corou. Já havia admitido que fora vítima de uma visão e estava satisfeito com isso. Chegou a rir de sua própria tolice. E agora uma mulher que se diz vítima de um acidente como ele alega que viu a mesma coisa. Aquela situação era desconcertante.

— Eu não vi nada. – disse Elias, encerrando a questão – Vou continuar viagem até a próxima cidade. Você pode vir comigo, mas entendo se você não quiser. Vou avisar a polícia sobre seu acidente, de qualquer jeito. – E aproveitou para mexer nos bolsos e localizar seu celular, espantando-se – Que ótimo, estou com sinal. Você pode ligar para alguém, se quiser. – disse ele, estendendo a mão e oferecendo o celular à ela.

A mulher não se moveu para aceitar o aparelho.

Deixou de lado a postura defensiva, baixando a faca. Mostrava um certo esgotamento.

— Se você diz que não viu nada, eu digo que sei bem o que vi. – e, depois de suspirar, disse – Eu aceito sua carona, não vou ficar aqui sozinha com aquelas coisas, esperando ajuda. – E apontou para uma parede azul à uns trinta metros de onde estavam. Ela tremia um pouco – Só preciso pegar as flores que prometi. Seu caminho passa por Gália? É a próxima cidade, dez quilômetros daqui.

— Sem problemas. – disse Elias ao alcança-la, uma vez que ela falou e começou a andar na direção da parede azul sem esperar pela resposta – O que é isso?

Havia uma parede natural de três metros ou mais de altura, totalmente coberta de flores com pétalas azuis, destacando aquele local do verde predominante das matas e do vermelho da terra. As flores eram compostas de cinco pétalas de um azul delicado e um vivo dourado ao centro. O espetáculo visual era maravilhoso, e só então Elias percebeu que a jovem parecia hipnotizada perante a parede de flores, com movimentos lentos e praticamente ritualísticos.

— O que você está fazendo? – perguntou ele, curioso e cauteloso.

— O meu nome é Beatriz. – disse ela, sem tirar os olhos das flores.

— Elias. – respondeu o homem, desconfiado.

— O nome dessa flor é Miosótis, Elias. Alguns a chamam de Veronica, outros de Não-me-esqueças. – disse ela, sacando a faca e coletando algumas flores – Eram as preferidas da minha mãe e meus irmãos. Sempre volto para casa essa época do ano e levo um buquê para elas. – coletadas as flores, ela guarda a faca e sente o perfume das mesmas – É uma promessa que eu fiz e nunca deixo de cumprir. Nunca vou esquecê-los. – E, segurando as flores com as duas mãos unidas ao ventre e com os braços estendidos, só faltava o vestido branco para se passar por uma noiva.

Elias sentiu-se tocado com aquele quadro. Não soube explicar direito o que sentia, o que é certo afirmar é que não havia percebido como Beatriz era linda e como estava linda naquele momento, ornada e rodeada pelas flores azuis. O homem balançou a cabeça para fugir do transe, talvez as flores fossem alucinógenas.

— Olha... – disse a mulher, terminando de despertá-lo, parecendo desconcertada e cautelosa – Essa situação é estranha, mas mesmo assim desculpe pela forma que nos conhecemos, foi estranho para nós dois.

— Concordo. – assentiu ele.

— Mas eu poderia usar seu celular agora? – perguntou ela – Queria avisar que estou chegando e falar de você e, se não se importar... – parecendo ainda mais desconsertada, achou coragem e falou – Se importa se eu falar seu nome, seu carro e placa, para que saibam com quem estou?

Elias demorou um pouco para responder, assimilando a informação. Por fim, pareceu julgar o pedido razoável e moveu a cabeça em sinal afirmativo.

— Bem... Tudo bem, sem problemas. – disse ele, sacando o celular – Essa situação é realmente estranha, você está certa de não confiar em mim.

— Obrigada. – disse ela, pegando o celular – Desculpe por essa cautela, mas você sabe que...

E parou de falar, esbugalhando os olhos.

Elias não a censurou porque também havia esbugalhados os seus.

Também havia escutado.

— O que foi isso? – Quase sussurrou o homem, entredentes.

— As coisas que não vimos? – sussurrou ela de volta, ofegante e sem piscar.

Ouviram de novo. Um urro, ou gemido. Alguém sentindo muita dor, ou muita raiva. Uma voz marcante, grossa, poderosa. De alguém grande. Alguém perigoso.

Beatriz e Elias tiveram uma comunicação não verbal. Trocaram olhares combinando de correr para a estrada, e assim o fizeram. Mal alcançaram a estrada correram para o carro, batendo as portas.

— Vamos, vamos, vamos! – suplicou Beatriz.

— Agora! – respondeu um apavorado Elias, quando ouviram o urro novamente,

Elias girou a chave, o motor engasgou e nada aconteceu. E o mesmo mais duas vezes.

— Vamos correr! – arfava Beatriz, olhando para todos os lados.

— Vai pegar! Vai pegar! – tremia Elias, girando a chave novamente e novamente.

— Corre, Elias! Corre! – gritou Beatriz, saindo do carro e correndo estrada afora.

O homem ouvia os urros e viu a mulher correr estrada afora. Então olhou no retrovisor e viu o que Beatriz vira e que a motivou a correr.

Havia um homem, ou dois, não era possível saber. Media mais de dois metros, e era uma colossal reunião de tecido humano, em um arremedo estranho de homem, como se dois ou três homens houvessem sido desmembrados e remontados à esmo, com as partes de tecido costurados da forma mais grosseira possível. Do lado esquerdo havia dois antebraços e mãos, o tronco era desproporcionalmente maior em relação à cintura. Não tinha orelhas, o olho esquerdo era vazado. Os dentes eram pontiagudos e amarelos, da boca escorria saliva e sangue. Os longos cabelos negros estavam empapados de lama e sangue – o mesmo sangue que brotava de cada costura do corpo, empapando os trapos que vestia por calça e camisa, enquanto os pés vinham descalços.

O ar faltou aos pulmões de Elias, enquanto o medo apunhalava seu coração. Ele parecia congelado no tempo e espaço, até que percebeu algo que atraiu todas as suas atenções como um poderoso imã: a criatura estava andando.

Andando na sua direção.

Desesperando começou a girar a chave do carro com energia, suplicando a todos os anjos do céu que intervissem e o motor pegasse.

Elias estava em boa conta no conceito dos anjos, porque o carro finalmente pegou. Engatou a marcha com energia e saiu cantando pneu, já fazendo distância da criatura. Acelerou loucamente e freou bruscamente assim que alcançou Beatriz.

— Entra! – ele gritou ao lado dela.

Ela abriu a porta e se jogou no carro, batendo a porta e gritando "Vai!".

Ele obedeceu e ganhou a estrada.

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