Aquela que Faz os Outros Felizes


Elias estava desconcertado e cada vez mais confuso, quando dirigia a dez quilômetros por hora pelas ruas da pequena cidade de Gália. Beatriz, ao seu lado, parecia terrivelmente desconfortável também.

Assim que entraram na cidade encontraram uma viatura de polícia e foram aos agentes da lei pedir ajuda. Os homens trocaram olhares impacientes, e explicaram que já haviam recebido essas denúncias. Parece que os moradores de uma fazenda aproveitavam que havia uma lenda de pessoas desaparecidas naquele ponto da estrada e se fantasiavam distribuindo sustos.

Ano passado prenderem mais de dez pessoas e apreenderam fantasias, coletando várias confissões – e que Elias e Beatriz eram os terceiros a reclamar disso naquele ano. Prometerem averiguar, fazendo contato por rádio e passando orientações ao corpo policial e os orientou à ir à delegacia prestar queixa.

— Pode parar aqui, por favor? – perguntou ela, quebrando o transe dele.

— Ah, claro. – disse ele, saindo do mundo de divagação e parando o carro. Precisava conversar – Bia – começou ele, e acrescentou – Posso lhe chamar de Bia?

— Não. Meu nome é Beatriz. – disse ela, secamente. Depois olhou as flores nas mãos e continuou – Desculpe. Eu amo meu nome. Minha mãe disse que a vida da família era triste e monótona antes que eu nascesse, então eu vim ao mundo e ela disse que eu ia me chamar Beatriz, que significa "aquela que faz os outros felizes". Meu irmão gêmeo ela resolveu chamar de Ademar, era o melhor irmão que alguém poderia ter.

E ficou em silencio até que começou a soluçar e suas lágrimas regavam o buquê azul, enquanto Elias não sabia o que dizer.

— Obrigado por me ajudar. Eu preciso agora ir ver meu irmão. – disse ela finalmente.

— Eu lhe levo até lá. – disse ele, solícito.

Ela não respondeu de imediato, olhando pela janela, como se estudasse o convite. Por fim, moveu a cabeça em sinal negativo.

— Não, obrigado. Não vai ser uma visita feliz. Meu irmão gêmeo não está mais aqui. O que vou visitar é o túmulo dele, no cemitério. – e, sem dar chance para ele falar algo, continuou – Continue reto e vire na terceira esquerda, é lá a pousada. É melhor descansar e continuar sua viagem amanhã.

— Nós vamos nos ver novamente? – perguntou ele, olhando para ela que não retribuía o olhar.

— Não. Eu não sou boa companhia para ninguém, nem para mim. Não acredite naqueles policiais, Elias. Nós sabemos exatamente o que vimos. Mas você não tem nada com aquelas coisas, é problema meu e da minha família – e saiu do carro, fechando a porta sem dar tempo para que ele assimilasse a informação, quanto mais falasse algo – Nossos caminhos se separam aqui, Elias. Continue sua vida, finja que o que você viu foi um sonho, uma alucinação. Para o seu bem, nós não devemos nos ver novamente.

E foi andando, noite afora, à passos lentos.

O homem ficou vendo a jovem se distanciar cada vez mais, sem entender aquele estranho episódio de sua vida. Mas Elias era bem racional, o mais cético dos homens. Alguns minutos depois, se questionava se havia entendido o que ela falou.

Depois, se questionou uma vez mais se havia visto aquelas coisas na estrada, considerando o que os policiais falaram.

Alguns minutos depois, questionou se o que Beatriz lhe falou era verdade ou se ela era dona de sua razão.

— Drogas. – disse ele, movendo a cabeça em sinal negativo e saindo com o carro.

Dez minutos depois Elias estava na recepção da pousada. Já havia se registrado e guardado as bagagem no quarto, e agora estava lendo alguns avisos da pensão enquanto a simpática senhora dona da pensão segurava sua chave.

Foi naquele momento que o sino da porta tocou, anunciando que alguém entrava naquele momento.

Na porta um enorme homem de dois metros de altura os observa por trás de longas barbas negras, com uma saca dependurada do ombro e um longo facão pendurado na cintura.

— Noite, Luísa. Noite, moço. – disse a voz rouca do homenzarrão de meia idade, acima do peso e com as roupas sujas de terra em alguns pontos. As botinas estavam imundas de barro.

— Noite, Clécio. Entregando as batatas mais cedo hoje? – respondeu a sorridente Luísa, indicando onde a saca de batatas devia ser deixada, enquanto Elias recebia sua chave.

— Não faz mal remediar. – disse o homem, deixando as batatas no canto do balcão. – Não vamos ficar andando tarde da noite depois do que aconteceu no cemitério.

— Verdade... – suspirou a mulher, meio envergonhada.

— O que aconteceu? – perguntou Elias, interessado.

— O senhor não soube? – perguntou um confuso Clécio, olhando de Elias para Luísa. E continuou – Anteontem um sujeito de fora disse que foi atacado por uma turma com facas, no cemitério. Ontem uma menina daqui, conhecida da cidade toda, quase foi sequestrada no cemitério quando ia colocar flores para a mãe. – e, coçando a barba, disse – Diz que um doido com uma faca ameaçou cortar fora os dedos dela.

— Mas quem e que vai no cemitério sozinho a noite depois dessas histórias? - disse Luísa, inconformada – A cidade toda está com medo, para que alguém arriscar desse jeito?

— Se quiser saber o que eu penso – disse o homenzarrão – O último lugar para alguém estar à noite é naquele cemitério. Com essas besteiras de lendas os malucos ficam lá dentro para fazer brincadeiras. – e ajeitando o facão na cintura, completa – ou coisa pior.

— Moço? – perguntou Luísa, quando Elias saiu em disparada porta afora.

Elias não queria saber de conversas agora. Assim como ele, Beatriz havia acabado de chegar na cidade, não sabia dos acontecimentos.

Não sabia dos maníacos.

Elias correu como um louco vencendo rapidamente a pequena cidade, até chegar a área de cemitério. Ao chegar no portão de entrada, dois policiais já sinalizaram para que parasse de correr e continuasse se aproximando.

— Qual é a pressa filho? – perguntou o policial mais idoso, escondido atrás de um espesso bigode grisalho, enquanto o mais jovem examinava a identidade de Elias.

— Tive um acidente na estrada e me hospedei na pensão – começou Elias – Uma moça estava comigo, ela também acabou de chegar e não sabe dos ataques no cemitério.

— E você já sabe, filho? – disse o policial idoso, olhando de soslaio para o companheiro.

— Eu não sabia até um homem chegar na pensão e contar a historia. Um homem enorme que carregava um saco de batatas como se fosse um saco de algodão. – rebateu o suspeito.

— Clécio. – sorriu o policial idoso, acenando positivamente para o outro policial. E falava com Elias enquanto esse guardava os documentos que lhe foram devolvidos – A ordem é ninguém entrar ou sair do cemitério, filho. Sua amiga também tentou deixar flores no túmulo da família, mas as ordens são para permitir a entrada apenas com o dia claro.

Elias parou de falar porque um homem passava em frente ao cemitério. Estava todo coberto, com chapéu e casaco. Andava com habilidade, mas apoiando-se em uma bengala. O homem acenou para os policiais sem parar de caminhar e continuou seu caminho.

— Se...- tentou dizer Elias depois que o homem passou - ...procuram pessoas suspeitas...

— Obrigado por tentar nos ensinar nosso trabalho. – disse rispidamente o policial mais jovem – Uma boa noite, senhor.

— Aquele pobre diabo é morador da cidade, filho. – explicou paciente o policial mais idoso – O infeliz cobre todo o corpo porque sofreu horrível acidente, noventa e sete por cento do corpo queimado, vive enrolado em gazes e esparadrapo. – e, usando sua lanterna para iluminar o interior do cemitério, examinava o lugar – Agora se nos dá licença, estamos tentando trabalhar por aqui, filho.

Elias não pôde dizer mais nada. Sentindo-se derrotado, seguiu em frente, caminhando para espairecer, e não na direção de volta da pousada.

Aqueles acontecimentos esquisitos estavam mexendo com seus nervos. Ficava claro que precisava de um bom jantar, um banho quente e uma boa noite de sono. Estava na estrada por oito horas antes da primeira alucinação, precisava repor a energia. Imagine o que Téo diria.

Ele sorria ao pensar em Téo, seu amigo quase irmão. O casamento de Téo seria em quatro semanas, Elias seria um dos padrinhos, e tinha várias providências ainda a tomar. Caminhava despreocupado pela noite, preocupado com estas questões, embebedando-se com o ar puro do interior, quando algo furtou sua atenção.

Um vulto passou correndo metros à frente, margeando o muro do cemitério, um vulto negro com um risco azul;

Era Beatriz.

Intrigado, Elias caminhou na direção dela, que estava escondida atrás de um poste, e chamou o seu nome em alto e bom som. Quando os olhos dele encontram os dela, ele viu olhos marejados e uma forte expressão de angustia e decepção.

— Elias... Por que você veio? Estava livre... – ela suspirou.

A lua cheia ia alta no céu, tingindo o mundo de prateado. Os negros olhos de Elias observavam a luz da noite emprestar tons de prata aos cabelos de Beatriz. Ela era muito bela, é verdade. Pena que a sanidade havia deixado seu ser.

— Você precisa de ajuda?- perguntou ele, a um metro do poste de onde ela se abrigava.

— Ah, Elias... Por que está vindo atrás de mim? Por que não ficou em segurança? – ela falava e guardava junto ao peito o pequeno jarro de barro que providenciara, que certamente encheu de água e mergulhou as flores azuis. – Vá embora. Vá embora agora, senão estará em perigo.

— Beatriz... – suspirou ele, usando o tom que usaria para tratar com uma criança de cinco anos. – Estamos em perigo porque coisas ruins estão acontecendo aqui. Mas não tem relação com a peça que nos pregaram, são pessoas, mas que...

Ele falava esticando o braço para tocá-la, confortá-la. Mas com uma energia sobre humana ela estapeou seu braço, fitando-o com os olhos injetados de fúria.

— Você não faz a mínima ideia de quem sou ou de onde venho e quer me tratar como uma imbecil? Acha que estou maluca? – ele não conseguiu responder – Vá ofertar sua solidariedade inútil com quem quiser. Eu não preciso de você e de nenhum outro idiota. E se você acha que alucinou, mentalize isso quando essas malditas coisas escarradas do inferno retalharem seu corpo.

O homem nada respondeu. Beatriz aos poucos conteve a respiração, sempre olhando em volta e parecendo estudar a altura do muro do cemitério.

— Desculpe. – disse Elias, somente. E continuou – Por que você precisa tanto ir ao cemitério hoje? Não pode ir ver seu irmão amanhã com dia claro e mais movimento nas ruas?

— Existem coisas que você não entenderia nem se eu explicasse, senhor dono da verdade. Problemas exclusivamente meus, que caso eu lhe conte, vai me tirar por louca – e os olhos dela se cravaram nele como duas adagas afiadas, enquanto voltava a estudar a altura do muro.

— É alguma coisa sobrenatural? Alguma coisa de magia? – perguntou ele, em tom de inocente curiosidade.

Beatriz girou os olhos dentro das órbitas, expirando lenta e furiosamente. Por fim, reuniu energias e conseguiu falar.

— Se é alguma coisa de magia e você não acredita, então vá para o seu quarto dormir. Procure uma outra donzela indefesa amanhã, porque eu não sou donzela nem sou indefesa. Magia é tolice, não é mesmo? – e voltou a estudar a altura do muro, olhando depois para o pequeno vaso com flores que trazia consigo – Se bem que se eu não colocar essas flores no túmulo antes de meia noite, isso vai ser problema seu.

Elias começou a entender, e sentiu-se mal com isso.

Era uma questão religiosa para Beatriz, que praticava alguma arte que pensava ser autêntica e isso não era problema dele. Ele realmente ficou alarmado com a questão dos ataques e pensou em ir ajudá-la, mas agora, passando toda a tensão e a chuva de dúvidas que desabou sobre sua cabeça, consegue ver que se comportou como um imbecil.

Era problema dela, não dele.

E ela aceitaria a ajuda dele se quisesse, e não quando ele quisesse. E isso seria no momento que ela determinasse, não antes e nem depois.

— Desculpe, Beatriz. – disse ele – Eu fiquei preocupado quando soube dos ataques no cemitério, sabia que você vinha para cá e queria lhe avisar, lhe ajudar. Mas uma vez que você não está em perigo, não tem porque eu continuar importunando você. – depois disso, suspirou e continuou – Se eu puder fazer alguma coisa por você para reparar minha idiotice, estou à disposição. Ou, se você quiser, posso dar meia volta e sair da sua vida, deixando-a em paz.

Beatriz olha para ele por alguns segundos, então diz:

— Posso subir nos seus ombros para tentar pular o muro?

O pedido pegou Elias de surpresa. Mas surpresa maior ele viu nos olhos dela, que se esbugalharam enormemente, olhando sobre o ombro esquerdo do homem. Ele se volta, para procurar o que a alarmou.

E não entende a agitação dela. Do outro lado da rua estava o morador do lugar, o sujeito todo coberto por conta das queimaduras no corpo. Ele já ia se voltar para ela e explicar, quando o homem deixa cair a bengala, permanecendo de pé.

Ele então tira o capuz da cabeça e arranca o pesado casado que cobria seu dorso. A visão era estranha e repulsiva. Era um corpo todo queimado, mas sem qualquer cicatriz, como se o acidente tivesse acontecido agora. Havia muito sangue e muita fuligem por todo o corpo. Cabelos ele não tinha. Os olhos estavam injetados e no lugar da boca nada havia, como se a carne tivesse derretido e se fundido naquele ponto do rosto. Os baços também eram queimados e sangrentos, mas eram poderosos, com volumosos bíceps.

Das costas ele sacou duas facas de lâminas longas, quase duas espadas. E, com olhos injetados de ódio, começou a caminhar na direção deles. O homem mancava, por isso seu avanço não era tão rápido.

Esse intervalo de tempo foi o suficiente para que Elias e Beatriz soltassem do peito poderoso gritos de terror e corressem na direção contrária da criatura.

— O que diabos é aquilo? – gritou Elias.

— Ele quer me matar! – desesperou-se Beatriz.

Como o monstro mancava, acabaram fazendo distância entre eles, até chegarem novamente no portão do cemitério, onde estavam os dois policiais.

— Devagar! Devagar! – falou com energia o policial mais jovem, com a mão no coldre onde descansava a pistola.

— O que é isso? Viram alguma assombração? – perguntou o mais idoso, iluminando os dois com sua lanterna.

Eles pararam de correr e arfavam, curvados. Ambos estavam fora de forma, era evidente.

— Vimos... – finalmente gritou Elias.

— Vimos um homem! – cortou-o Beatriz, reprovando-o com um olhar severo – Ele veio na nossa direção, acho que estava com uma faca!

— Você acha? – Exclamou ele, espantado.

— Quer que eles pensem que você é maluco, como você achou que eu era? – sussurrou ela, com olhos furiosos fuzilando o homem.

Elias corou. Ela estava certa. Tinha que esperar que eles vissem com seus olhos, senão ele seria tão louco quanto Beatriz.

Agora não sabia se torcia para a criatura desaparecer ou continuar em seu encalço, surgindo a qualquer momento na esquina, à cem metros.

Feliz ou infelizmente, o demônio manco surgiu na esquina e caminhava a passos lentos na sua direção, arrastando as lâminas no chão.

— Ali! – gritou Elias, apontando para os policiais de onde vinha seu algoz – Ali!

Instintivamente Beatriz levou o vaso de flores para perto do peito, e não esboçou nenhuma outra reação. Os policiais, por outro lado, reação alguma esboçaram.

— Filho, já falamos que aquele é um conhecido morador da cidade. – falou o policial mais velho – Está tentando se divertir às nossas custas?

— Ou estavam se divertindo com drogas? – perguntou o policial mais jovem em tom acusador.

— Elias! – disse Beatriz, com energia, cravando as unhas no antebraço do rapaz.

Seus olhos se cruzaram e ele entendeu. Dispararam correndo no sentido contrário em que vinha a besta.

— Não vale à pena, são apenas viciados. – disse o policial mais velho quando o mais jovem ameaçou persegui-los.

E ficaram em suas posições.

Quando a criatura fugida do inferno passou diante deles, apenas moveram a cabeça levemente, cumprimentando-o e ignorando o som das lâminas riscando o chão da calçada.

— Eu já vi isso acontecer antes. – dizia Beatriz, enquanto corriam – Eles parecem hipnotizar as pessoas que não interessam para eles. Quando as pessoas olham, veem apenas uma pessoa normal, não o que elas são. Só mostram sua verdadeira forma quando querem.

— E porque apareceram para nós? – perguntou Elias ofegante, enquanto corria – E como você sabe tanto dessas coisas?

— Não dá tempo de explicar, primeiro vamos sobreviver! – respondeu ela - Onde está o seu carro?

— Na garagem da pousada! As chaves estão no meu quarto! – respondeu ele.

— Vamos! – ordenou ela.

Nada mais falaram nos próximos minutos, até chegar a pousada. Uma vez lá correram para o quarto, e Elias imediatamente recolheu as chaves, quando Beatriz olhava pela janela, procurando seu perseguidor.

Ela se assustou quando Elias bateu a porta.

— O que está acontecendo? Por que fechou a porta? – perguntou ela, desconfiada.

— Quem faz as perguntas aqui sou eu. – disse ele, parecendo furioso – O que diabos está acontecendo? O que houve com a minha vida?

Ela hesitou procurando as palavras certas. Por fim, falou.

— Isso não é problema seu. Pegue o carro, tome a estrada e vá para longe. – ela disse, em tom sombrio – Daqui alguns dias, você vai achar que essa história é fruto da sua imaginação.

— Já tentei isso, mas não funcionou. – disse ele, sentando-se na cama. – Eu exijo uma explicação. Aceito que não seja racional, essas coisas não são racionais.

— Vai achar que estou louca. – ela disse, ameaçadora.

— Estou tão louco quanto você, porque vi e ouvi tudo. – disse ele, resoluto. E cruzou os braços – Me de a versão resumida, se quiser, mas comece do começo.

Ela deixou escapar um sorriso maldoso.

— Foi você quem pediu. E eu sei que vai se arrepender.

Graciosa, ela sentou-se na cama ao lado dele, deixando repousar no colo o vaso com as flores azuis.

— Dois séculos atrás, exatamente na cidade onde estamos, uma família resolveu abandonar os costumes puros de buscar iluminação espiritual, paz e sabedoria e se curvou a um caminho mais fácil de encontrar elevação espiritual. – Iniciou ela.

— Isso parece coisa de budista para mim – interrompeu ele.

— Antes fosse. – disse ela, sombria – Eles deixaram de lado todas as fontes de informação na busca de luz e paz, focando apenas na manutenção da vida e o poder sobre os demais homens. Nessa busca, cometeram erros que não podiam ser cometidos, ultrapassaram fronteiras que jamais deveriam ter ignorado. – e, olhando nos olhos dele, deu a terrível informação – Eles fizeram um horrendo pacto com o Diabo.

Elias se sobressaltou quando a lâmpada do quarto piscou e uma brisa soprou janela adentro. Ele olhou para Beatriz, mas ela permanecia imóvel e com os olhos grudados nele, enquanto seus vermelhos cabelos bailavam o vento.

— O preço era conhecido desde o início. – continuou ela – Vida, almas, sangue, carne. Um preço que estavam dispostos a pagar, desde que não tivessem que fazer sacrifícios dentro da família. Viajavam para longe, frequentavam estradas desertas, fingiam dar abrigo a andarilhos e moribundos. Muito sangue inocente foi derramado. Muitas vidas foram tiradas. O preço foi pago, e o Adversário honrou sua parte do pacto.

Ela pausou a narrativa e Elias a fitou. Ela chorava copiosamente.

— Enquanto o Inimigo tinha sua sede de sangue saciada, seus acólitos tinham sua graça. Tinham riqueza, poder, beleza, todos seus desejos eram atendidos. Não conheciam a velhice, nada temiam e nada respeitavam. – suspirou ela – Foram anos sombrios, onde toda a região foi subjugada por aquela poderosa família. O povo tinha medo, mas não sabia do que. Só sabia que anualmente algumas pessoas desapareciam, que o gado morria sem explicação, que as colheitas murchavam mesmo se regadas. Como se algo de impuro estivesse contaminando até mesmo o ar à sua volta. E eles não estavam enganados.

Uma nova lufada de vento preencheu o quarto, refrescando a suada testa de Elias e permitindo um balé improvisado aos fios de cabelo de Beatriz.

— O inevitável aconteceu quando as pessoas começaram a reparar que aquela família de homens e mulheres lindos não tinha sua beleza maculada pelo tempo. As pessoas começaram a se questionar, começaram a contar histórias. – e, após suspirar continuou em um tom monótono e sombrio – Até que alguns membros do corpo da igreja se ofereceram para investigar e descobriram coisas que não deveriam ter descoberto. Aquela descoberta foi a sua ruína, e do grupo que partiu para a investigação, poucos retornaram. Mas informação é poder, e agora sabiam com o que lutavam. Sentindo-se ameaçada pelos murmúrios do povo, a família amaldiçoada pediu mais poder ao adversário, que achou graça da situação e pedia mais sacrifícios. "Uma troca justa", é o que os membros da família pensavam.

Elias estava tenso. Precisou mover a cabeça de um lado ao outro e esticar os braços, tentando livrar-se da tensão.

— Sedentos por mais poder e achando que não tinham adversário à altura, a família saiu para caçar, dispersa, em grupos de dois, formando assim quatro grupos. As pessoas da cidade se dividiram, se organizaram e atacaram. Em uma emboscada bem sucedida, descobriram que os inimigos sangravam. – e, sorrindo sombriamente para Elias, conclui – Descobriu que eles morriam.

Elias abriu a boca, pensando em falar alguma coisa, mas não conseguiu.

— Dois morreram e restavam seis. Quando os membros da família voltaram para casa, deram falta dos seus. Usaram suas artes para entender o que havia acontecido e viram o derradeiro momento quando um coração foi trespassado e uma garganta cortada. Quando viram que podiam morrer. – Beatriz ajeitou os ombros, olhou para o teto e cerrou os olhos. – O inevitável aconteceu. As pessoas da cidade invadiram a mansão da família, houveram gritos, sangue, lâminas esvoaçantes. A família toda caiu, até mesmo um bebê que foi achado em um enorme berço. Da parte dos aldeões, muitos caíram, todos foram chorados. – ela então baixou a cabeça e fitou o chão tristonha, dizendo - O Inimigo ficou feliz de ver que seus filhos haviam caído, porque podia fazer a eles mais uma oferta, e foi o que ele fez. Lhes ofertou uma sobrevida, algumas noites por ano neste mundo, para fazer o que bem entendessem, desde que recebessem uma oferta de sangue anual, sempre uma noite antes do dia de Todos os Santos.

— O dia das bruxas – sussurrou Elias. – Hoje.

A luz piscou novamente, enquanto um cão latiu ao longe. Elias estava tão tenso que era capaz de trincar todos os ossos.

— Mas toda ação permite uma reação – disse ela retomando a narrativa – Foi permitido que se desse combate a essa atrocidade sobrenatural de outra forma sobrenatural. Na mesma noite, Paladinos da Luz poderiam dar combate às coisas horrendas que só podem ser vistas por homens se elas permitirem. Não me esqueças.

— As flores. – recordou Elias.

— Aquelas flores só aparecem nessa noite, Elias. – confessou ela, parecendo cansada - Eu não estava lá perdida. É minha sina e sina de minha família peregrinar até aquele local, colher as flores e depositar na tumba de nossos heróis, para que lutem por nós. É por isso que essas flores têm este nome.

— Basta depositar as flores na tumba? E seu irmão? – questionou ele.

— Eu menti para você em parte, Elias. Essas flores são para meus antepassados. – ela admitiu – Você não acreditaria. Mas você fala como se fosse fácil. Saiba que os servos do mal estão trabalhando, ansiosos em busca de um sacrifício, alguém que entre na tumba voluntariamente, sabendo do risco de ser sacrificado. Por isso aconteceram os ataques que ouvimos falar. Você tem que ir embora agora Elias. – e ela sorriu, tristonha – Eu posso ser assassinada, mas não estou apta a ser sacrificada. Para eles, sendo descendente dos seus assassinos, meu sangue é impuro.

— Você disse que era sua sina e de sua família. – perguntou ele – Onde está sua família agora?

Beatriz trincou os dentes e estreitou os olhos, olhando para a janela, longe do olhar de Elias. Resistiu bravamente, mas seus espírito fraquejou. Seus olhos ficaram vermelhos e ela chorou. Chorou como talvez nunca houvesse chorado na vida, soluçando desesperada e encolhendo-se.

Elias não sabia exatamente o que fazer. Aproximou-se dela e deixou seu braço descansar sobre os ombros dela. Ela aceitou a acolhida e encolheu-se em seu ombro, deixando fugir de si algumas poucas palavras em meio às muitas lágrimas.

— Você me encontrou chorando, como chorando agora estou. Meu pai, irmão, tios, primos, todos... – e tremia de dor com as duras lembranças – Eles mataram todos, Elias. Mataram todos. Só restei eu. – e, disse últimas palavras antes de voltar a soluçar incontrolavelmente – E eu serei a próxima.

Beatriz chorou. Colocou para fora tudo que tinha para chorar.

Depois de um tempo se acalmou, e Elias ficou em silêncio também. Ele sentia toda a dor que atingia a jovem, mas ao mesmo tempo não sabia o que fazer. O homem era sincero consigo mesmo: era um covarde, não conseguiria segurar o fardo que Beatriz segurava.

Enquanto ele se perguntava o que devia fazer, ouviu um som estranho. Sentiu Beatriz ficar tensa em seu abraço. O barulho continuou e a jovem se ajeitou. Lentamente se levantaram e foram à janela.

Lá estava a criatura das facas, coxeando pela rua em direção à pousada, ainda muito distante. Elias olhou para Beatriz, que acenou positivamente com a cabeça quando ele mostrou as chaves do carro.

Foi nesse momento que bateram na porta.

Elias sentiu como se jogassem um balde de água gelada por suas costas, e essa água tivesse penetrado sua pele e martelado sua espinha.

Beatriz abriu a boca, mas só fazia tremer os lábios sem conseguir falar, trazendo ao peito o pequeno vaso de flores com o cuidado que uma mãe protegeria seu bebê de peito.

O homem entendeu que ele deveria tomar uma atitude imediatamente. Querendo ou não, ele estava envolvido naquela situação naquele momento. E não se tem notícias que um assassino infernal bateria à porta. Ora, espera-se que eles arrombem a porta, matem todos no lugar e vão à próxima vítima.

Este pensamento tranquilizou Elias, que foi à porta e espiou pelo olho mágico surpreso por não encontrar nada.

A situação era estranha, mas ele não ia se deixar tomar pelo pavor.

Destrancou a porta e a abriu lentamente, para se certificar que não havia ninguém do outro lado.

Foi então que notou a pequena menina, sem altura para ser vista pelo olho mágico. Devia ter dez anos ou menos, estava com um vestido infantil branco, cheio de babados, mais parecia um vestido de boneca. Sobre os dourados cachos, trazia um chapéu branco com uma fita rosa. Os sapatos não podiam ser vistos, escondidos pelo bonito vestido.

A menina tinha um olhar bondoso e ao mesmo tempo triste.

Era uma menininha bonita.

Mas seu corpo era etéreo.

Era um fantasma.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top