Capitulo Único
Eu senti pena de você, Vitor.
Você achava mesmo que sabia alguma coisa sobre mim?
Achava mesmo que eu me importaria em continuar vivendo com a desculpa de que não conheceria nada além de São José dos Campos? Só porque um dia eu te disse que o meu maior sonho era viajar o mundo?
Vitor, você achava mesmo que eu deixaria de me matar porque amo violetas? Chegou a acreditar que "nunca mais sentir o cheiro das minhas flores preferidas" seria uma boa desculpa para me convencer a continuar vivendo?
Para mim, isso significava que você nunca me conheceu.
E, não se engane, eu até tinha consciência de que isso podia significar tudo para um montão de gente, que sei lá, deixa-se encantar por flores e viagens...
E tudo isso era mesmo lindo, é verdade. Mas, faça-me o favor, não para alguém como eu, que não conseguia deixar de pensar em qual é o sentido.
Você sempre achou que sabia de tudo ao meu respeito não é mesmo, meu querido?
E não havia um dia sequer que não me visitasse...
Desde que eu finalmente tomei coragem de confessar para você os meus medos mais pessoais (eles eram os mais secretos, Vitor. Os que me deixavam mais envergonhada, que faziam com que eu me sentisse tão deslocada), não parava de fazer questão de estar por perto.
Vitor, você faz ideia do que é não conseguir ir ao banheiro sem receber uma mensagem de texto? Acabei ficando tão dependente de você que se a mensagem atrasava, eu começava a me desesperar.
Eu estava feliz assim. Dentro do que é permitido considerar feliz uma pessoa suicida... Mas então você notou que eu precisava de você demais.
Vitor, seu cretino, tão perfeito como era! Começou encher o meu saco para que eu consultasse um profissional!
Um belo dia você cismou de discursar sobre o quanto era imperfeito e limitado e que não podia me ajudar sozinho.
Eu não queria um profissional, Vitor. Isso significaria que eu era, decididamente, diferente.
Eu sentia tanta raiva quando via sua irmã de cinco anos brincando com você, sabendo que ela te amava simplesmente sem motivo algum. Que o amor que ela sentia por você era tão genuíno ao ponto de não esperar nada em troca.
Não me entenda mal, eu a amava também. Mas era revoltante que mesmo quando você estivesse longe, sua irmãzinha de cinco anos se sentisse segura e sua namorada de dezenove agisse como um bebê.
E você nem notava o meu egoísmo. Você era tão dedicado... Achava mesmo que podia me salvar.
Mas no fundo eu sabia que bastava que você fosse aprovado em uma universidade ou que seus pais se mudassem para outra cidade, que algo de ruim iria acontecer comigo.
Nunca haveria uma vida pós-Vitor para mim.
Mas pelo menos eu estava vivendo... vivendo enquanto você me mantinha por perto.
Então, eu não vou mentir, fiquei muito brava quando você fingiu que me levaria para uma sessão de cinema na sexta feira à tarde, mas na verdade chegamos a um consultório psiquiátrico.
Foi patético, Vitor.
Na minha opinião, eu não estava gritando com você à toa. Ainda que os outros pacientes me olhassem como se eu fosse a louca no recinto.
Eles eram loucos, eu não. Eu só não aguentava mais nada disso.
Então você me deixou lá sozinha para falar sobre a minha vida e meus medos mais profundos com uma pessoa que eu sequer conhecia.
Ela era uma garota nova, de olhos claros e a pele bem morena... O que podia me dizer que eu já não soubesse?
Droga, o que ela podia saber?
A princípio eu achei que podia encurtar a conversa com uma ladainha qualquer para que, o quanto antes, ela me liberasse.
No entanto, a mulher me encarou calada por cerca de um minuto, não fez qualquer pergunta antes de me passar uma folha de papel para que eu respondesse a um teste.
E aqueles questionamentos, Vitor. Eu sabia que tinham a ver com você. Nunca, em toda a minha vida, alguém me fez perguntas com tanta especificidade sobre os monstros da minha alma. Aliás, ninguém poderia. Não sem uma bola de cristal ou uma boa conversa com você primeiro.
Aquela mulher, tão bonita e com olhos tão diferentes... eu comecei a sentir ciúmes só de imaginá-la em uma mesa de um bar qualquer, sentada durante horas de admiração enquanto ouvia você falar sobre os meus problemas.
Mas isso nunca aconteceu, não é mesmo? Eu demorei meses para perceber que os medicamentos que ela me prescreveu fariam efeito.
E mais tempo que isso para compreender que você não poderia ser meu único pilar.
Como daquela vez em que foi atropelado. Aquele evento fatídico!
Na verdade eu tive raiva.
Tive raiva porque você queria tanto que eu vivesse, você queria tanto, Vitor, que eu acabei acreditando que significava alguma coisa a mais.
E eu pensava que se estivesse perto de você ficaria segura... Era tão importante me manter viva, que enquanto você me abraçasse eu estaria a salvo.
Mas então você inventou aquela droga de surpresa.
Você tinha que ser o melhor em tudo, não é? Não foi diferente quando adotou aquela droga de gato que levou até a minha casa.
Mas o bicho não queria entrar e se esgueirou para o meio da estrada.
Só que você era perfeito, Vitor.
Você tinha que salvar o gato.
Então aquele motociclista consideravelmente bêbado te colocou entre a vida e a morte assim, bem na frente dos meus olhos.
Foi a droga do pior dia da minha vida.
O gato lambendo seu corpo estirado na estrada.
Eu, paralisada na calçada, tomando coragem para ir até você e furar o aglomerado de desconhecidos que se formava ao seu redor, apenas para descobrir se você ainda respirava.
Depois disso foram meses em um hospital. Meses à fio de incertezas se você sobreviveria ou não. Se nós sobreviveríamos. Porque eu havia decidido que não fazia sentido continuar sem você.
Mas você me deu a droga do gato.
E como se não bastasse deu seu primeiro nome a ele.
Quem raios dá o próprio nome ao animal de estimação?
Porque, embora tentasse disfarçar, debaixo de todo aquele cavalheirismo, você era muito egocentrico, João Vitor.
Mas você era meu pilar.
E meu pilar estava morrendo.
Você tinha consciência disso, e sequer parecia se importar.
"Enquanto há vida, há esperança", não parava de repetir. E eu não parava de pensar em como aquilo tudo era uma ironia absurda.
Todas as vezes que chegava em casa, João me recebia na porta. E por mais comida de gato que eu desse ao infeliz, ele não parava de me seguir por todos os lugares. Mamãe dizia que ele havia me adotado.
E foi em uma dessas fugidas da perseguição felina que recebi uma ligação do hospital anunciando a piora em seu estado crítico.
Meus pais ligaram o carro e tentaram — ah, como eles tentaram — me fazer ir até lá com eles, mas eu me lembro da aceleração do sangue nas minhas veias, do ritmo desenfreado do meu coração e da força ressurgente de não sei onde que me capacitou a correr por cerca de três quilômetros ao escorrer das minhas lágrimas.
Entrei no seu quarto naquela tarde, e quando nossos olhares se cruzaram eu tive certeza que seria a última vez.
Eu estava trêmula, infeliz, derrotada. E você, Vitor! Entre tubos, curativos e cateteres, você sorria.
E me pediu para tentar não gastar tantas lágrimas. Veja só!
Como se eu fosse capaz.
Ah, querido Vitor. Sei que fui uma grande tola naquele dia.
Não devia ter confessado a você que todo o medo, toda escuridão e todo o pânico que haviam se atenuado desde que comecei com as medicações e a terapia pareciam voltar com mais força naquela hora. Eu contei que se você partisse, não faria isso sozinho. Outra pessoa teria aceitado que eu era mesmo um caso perdido. Mas você me disse aquilo.
Você me olhou dentro dos olhos e redesenhou cada um dos meus traços com seus dedos ossudos. Eu achei que se declararia e expiraria, e o pensamento me causou um calafrio horrível.
Mas, em vez disso, o Vitor de sempre ralhou comigo.
E assim se tornou a primeira pessoa a dizer com todas as letras que eu não era o que pensava. Que a garota a quem você havia conhecido, aquela sim era eu, e que eu precisava encontrá-la de novo.
Você me disse que eu estava indo tão bem e não devia aceitar regredir. Que eu — e somente eu — podia dar um basta naquilo.
Isso poderia parecer nada para uma pá de gente.
Convencer-se a ver as flores brotarem no dia seguinte talvez até fosse mais eficaz.
Mas não para mim.
Não enquanto ainda podia me lembrar de quem eu era. Um vislumbre dos pequenos sonhos do que eu poderia me tornar um dia.
Então, quando você adormeceu e eu voltei para casa, tranquei-me no meu quarto para falar com Deus.
Talvez tenha sido aquela a primeira vez em anos em que eu realmente acreditei que havia alguém do outro lado. Porque, se houvesse esperança, eu estava jogando todas as minhas cartas na mesa.
E, eu sei, talvez tenha sido egoísta da minha parte não pedir por você. Mas você estava tão vivo, que, ainda naquela época, eu tinha a certeza que nem mesmo a morte poderia mudar essa condição.
Em vez disso, porém, roguei a Deus por mim. Roguei pelo que aconteceria comigo se você me deixasse. E implorei! Como eu pedi, Vitor, que você deixasse de ser uma necessidade. Que deixasse de ser o meu pilar ou, se nada disso fosse possível, que ao menos deixasse de ser o único.
Então, abri os olhos e, literalmente, cai para trás.
João – não você, o gato — estava a alguns palmos do meu nariz esperando que eu terminasse o que fazia. E, por algum motivo, a cena foi tão engraçada que os meus dedos se moveram de modo quase automático, afundando-se nos pelos caramelados do seu pescoço.
Eu sorri para ele e — pasme — tive certeza que o bichano retribuiu. Talvez tenha sido a primeira noite que dormi com um sorriso — sem dúvidas foi a primeira em que havia uma bola de pelo aconchegada aos meus pés.
Minha primeira visão, todos os dias, passava a ser aquele par de olhos heterocromáticos e curiosos.
A profundeza daquela concentração fazia parecer que ele me conhecia. Que tentava me convencer que confiava em mim.
E, Vitor, preciso confessar, foi um bocado agradável descobrir que alguém de temperamento tão genuíno me amava e tinha confiança em mim.
Foi dessa forma que logo, embora eu confesse que talvez por vaidade, encontrei outro pilar.
As amarras de angústia começaram a se desfazer e todo o medo que eu sentia, qualquer incerteza de aurora vindoura se dissipava com o tempo.
As expectativas de receber uma má notícia a seu respeito eram menores a cada telefonema e, ainda quando não eram tão boas, deixavam de ser aterrorizantes.
Mas, é claro, ainda que livre de todo o peso emocional, havia um vestígio de medo de que tudo voltasse numa avalanche devastadora e me levasse de volta para aquele lamaçal.
Foi também você quem disse que era a minha obrigação acreditar a cada dia bom, que todos os outros seriam assim. De duvidar, a cada dia mau, que o próximo seria semelhante.
E sua fórmula foi um remédio e tanto!
Mesmo quando os mares ficaram calmos e a tormenta dentro de mim finalmente pareceu adormecer, nada foi um alívio maior do que vê-lo deixar o leito.
Eu, particularmente, não me lembro de nesta vida ter tido maior surpresa.
Foi de concordância universal, portanto, que você poderia ter esperado ao menos um dia para me propor casamento.
Mas você sempre foi muito decido, não é, Vitor?
Nunca duvidou que eu aceitaria, e é claro que estava certo.
A vida prosseguiu. E muito mais ligeira do que eu e você poderíamos supor.
Não foi fácil entendermos que os filhos biológicos não viriam. E não menos difícil esperarmos três anos em uma fila de adoção até conseguirmos a guarda da nossa Sol.
Não foi fácil criá-la. Especialmente na adolescência. Ou quando escolheu aquele canalha como marido. Mas nós nos saímos bem.
Agora, quando não estou mais aqui, e espero que você tenha seguido todas as pistas até encontrar essa carta (porque, homem, como eu chorei para escrevê-la!), já se passaram sessenta anos e ninguém poderia sobreviver à uma pneumonia tão severa e insistente na minha idade. Então, meu bem, não gaste lágrimas. Entenda que só quero te agradecer.
Obrigada por ter sido meu pilar e obrigada, especialmente, por ter deixado de ser.
Com amor, sempre sua,
Esposa.
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Obs.: essa é uma obra de ficção levemente baseada em experiência própria. A autora nunca conheceu o Vitor e também não acredita em mágica, mas realmente ganhou um gato de Deus.
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