Não fuja, Brenda!


Eu olhei para o céu, sem poder acreditar no que estava vendo. Para minha decepção não era uma nave extraterrestre. Até porque, se fosse, eu daria um jeito de colocar Karen, minha irmã mais nova, lá dentro. Quem, em sã consciência, acorda antes das seis da manhã para ver o sol nascer?! Alguém que não é desse planeta! Mas não importava, porque diante dos meus olhos só havia nuvens dos mais variados tons de cinza. Nenhuma nave, nenhum sol.

- Bom – ela disse com um sorriso no rosto – Sempre teremos amanhã!

- Eu te avisei que o tempo não melhoraria! - resmunguei.

- A sua falta de fé me decepciona, Brenda – ela balançou a cabeça, fazendo com que os cachos loiros se movimentassem junto – O tempo poderia ter mudado no último segundo, só saberíamos vindo até aqui. Por isso não me arrependo.

- Pode deixar: eu me arrependo por nós duas – vi sua expressão murchar, mas não me abalei– E, aliás, se você quiser continuar com essa maluquice, amanhã é a vez da Rebecca te trazer aqui!

- Eu pedi para a mãe mandar você vir – admitiu com os olhos castanhos cheios de culpa.

- Depois você fala que não tem irmã preferida! - dei um tapa ardido em seu braço – Claro que é a Becca! Você não a fez andar pela noite escura e nem ficar horas de pé na areia da praia. E ainda a deixou dormir e roncar que nem um trator! Não teve nenhuma consideração pelos nossos vizinhos temporários! - não que eu tivesse, claro. O gosto musical deles era péssimo e o aparelho de som, alto.

- Lógico que não! - devolveu o tapa - Eu pedi especificamente para você porque acho que você precisava mais – ela deu de ombros, sustentando meu olhar.

- Não é possível! - gritei em frustração – A Rececca não ficaria mais branca nem com Vanish, nem com uma mordida de vampiro! Que, inclusive, nem sei se ela é. Você não acha essa fixação gótica dela muito estranha? - gesticulei loucamente com os braços – Além disso, a bonita tem deficiência de vitamina D. Ninguém precisa de sol mais do que ela!

- Você precisa de algo que lhe faça feliz – Karen despejou de uma vez – Urgentemente. E hoje é sua última chance para que isso aconteça ainda nesse ano.

- Dormir me faz feliz, mas você não permitiu que eu o fizesse – murmurei.

- Não, dormir é uma fuga da sua própria consciência – argumentou, cruzando os braços. Eu estalei a língua. Como uma garota de treze anos estava me desafiando dessa forma? Como ela parecia saber tanto do que falava? - Sabe qual é o seu problema? – ela massageou as têmporas e bufou - Você sempre foge.

- Isso não é verdade!

- Me diga que não fugiu da faculdade quando as coisas ficaram difíceis demais! Ou quando você quase atropelou o prefeito! - abri a boca, querendo negar – Eu estava do seu lado e tive que gritar desculpas pela janela, Brenda! Mas principalmente, me diga que não fugiu de Marcos.

- Eu não fugi de Marcos! – gritei, fazendo um casal que caminhava olhar em minha direção.

- Não? – ela ergueu as sobrancelhas, incrédula – O cara te fazia rir como uma hiena, foi a amizade mais próxima que teve na sua vida e de repente, "puff" – fez um sinal expansivo com as mãos –, sumiu.

- Não foi nada disso que aconteceu – falei entredentes.

- Então, o que aconteceu? – inquiriu Karen.

- Nada.

- Tá vendo? Você foge das perguntas, foge de ser ajudada, foge até da própria irmã! – sua voz tremeu nas últimas palavras. E com os olhos marejados, Karen virou as costas e me deixou plantada no meio da praia. Eu senti o bolo em minha garganta crescer cada vez mais ao perceber que ela não olhou para trás e havia realmente me deixado sozinha.

Concentrei-me no mar e na frequência perfeita das ondas: sempre indo e voltando como as palavras da minha irmã que ecoavam em minha mente. Você foge. Ano que vem vai ser melhor. Você foge. A praia está ficando mais lotada. Você foge. Será que existem padrinhos mágicos no mundo real? Você foge.

Estava em uma espécie de estupor motivado pela possibilidade de Karen estar certa. Um sorveteiro, uma garota com a boca melada de açaí, um cara passeando com um cachorro irromperam meu campo de visão, mas tudo parecia pertencer à outra realidade. Até que o cachorro começou a latir e a correr na minha direção, com os pelos dourados chacoalhando loucamente. Antes que eu pudesse abaixar para acaricia-lo, no entanto, senti um líquido quente escorrer por minha canela. Ruim demais para ser verdade.

- Não, Leôncio! – o rapaz ralhou, puxando a coleira insistentemente e confirmando que havia mesmo xixi em minha perna. Tentei aceitar a infeliz realidade ao invés de discutir com um cachorro, que provavelmente não tivera a intenção – Me desculpa, moça. Sério, desculpa mesmo, ele nunca fez isso. Leôncio, isso foi muito feio!

- Não foi nada – consegui responder. Tudo bem que eu estava parada feito um poste no meio da praia, mas realmente não era para tanto. E aquilo também era só sangue filtrado, embora me lembrar disso não tivesse nenhum benefício. Ureia, ureia, ureia. Em meio aos meus devaneios, percebi que o dono ainda repreendia o cachorro – Não foi nada, sério – assegurei – Ele não fez por querer. E considerando as necessidades fisiológicas dos mamíferos, poderia ter sido muito pior...

O moço se permitiu dar uma gargalhada e eu me dirigi à água do mar, lavando minha canela fervorosamente.

- Ele só faz isso quando fica muito feliz – explicou – Até então era um privilégio todo meu. Mas sério, desculpa mesmo.

Assim que terminei a tarefa, voltei meu olhar ao cara.

- Não se desculpe profusamente por algo que pode ser resolvido com um banho – dei de ombros, não me importando mais com a situação e me abaixei para acariciar as orelhas felpudas, fazendo com que ganhasse algumas lambidas e um semblante satisfeito. Todo meu choque e constrangimento eram águas (amarelas e com toxinas) passadas.

- Deixa eu pelo menos te pagar um sorvete? – sugeriu, arrumando a armação dos óculos de grau no nariz – Em um gesto selador da paz entre eu, você e o Leôncio.

Estava pronta para declinar a oferta, pronta para agradecer e dizer que acidentes ocorriam. Não havia necessidade alguma daquilo. Porém a voz de Karen me acertou como um chicote: você foge. Era uma questão de honra provar que ela estava errada.

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Analisei a lanchonete onde estávamos: as mesas rústicas ocupavam a maior parte do salão e na parede havia pequenos quadros coloridos. Aparentemente, era muito cedo para que uma sorveteria estivesse aberta então tive de me contentar com torta de morango e suco de uva, enquanto Sam, meu recém-conhecido, pediu pão de queijo e coca cola. Enquanto aguardávamos, olhei sorrateiramente para ele. O maxilar quadrado, a pele alva e os óculos não o faziam ter cara de mau. Não, ele era bastante bonito. E o jeito como sorria me dava a sensação de que ele era confiável, até. Mas isso não me impediu de entrar em pânico de ele ser um assassino-que-matava-garotas-que-aceitavam-sorvetes-de-estranhos e falar o primeiro nome que surgiu em minha mente ao invés do verdadeiro. Berenice.

- Obrigado por ter esperado eu colocar o Leôncio para dentro – Sam quebrou o silêncio – Eu não sei o que acontece com esse cachorro, que mal te viu e acha que você é propriedade dele – seus olhos exibiam um brilho humorístico. Sorri.

- Claro – revirei os olhos em falsa exasperação, completando depois com um tom mais sério: – Mas só se ignorarmos o fato da propriedade ser um roubo.

Ele arqueou as sobrancelhas grossas, exibindo ar de surpresa, mas ainda assim de divertimento.

- Temos uma anarquista aqui? – perguntou baixo.

- Não, só uma implicante inata. - confessei – Consigo contrapor tudo. É como um dom. Só que ao contrário – ele riu – Mas estou me esquivando de discutir política. Ainda mais com desconhecidos – frisei a última parte. Era um medo real em um mundo que se mata por nada.

- Não é o que a sua camiseta diz – ele apontou para mim e eu gelei. Sabia do meu acervo de camisetas de políticos que viravam pijamas. Mesmo que não fossem ideais, elas eram grandes, confortáveis e distribuídas de graça – Esse número não é de um partido?

Olhei rapidamente para baixo, não me lembrando da roupa que vesti de manhã (eu havia mesmo me trocado?!), mas constatei com alívio que estava vestindo uma camiseta preta meio esgarçada, com um grande número 42 estampado na frente. Me senti tão grata por não ser a camiseta do João da Farmácia!

- Não é de partido político – me defendi – Escuta, algumas pessoas herdam bilhões, outras herdam propriedades, eu herdo o mau gosto da minha irmã mais velha. E, olha, ela não saiu da fase gótica até hoje. Deve ser de uma banda, não de um partido. A não ser que ela tenha se filiado e não falou para ninguém... – me detive, pensando ser exatamente o tipo de coisa que Rebecca faria para defender seus ideais. Peguei meu celular, ávida para saber se algum grupo usava aquela numeração. Em uma rápida pesquisa no Google, descobri o Partido Pirata.

Olhei para Sam, que me observava com curiosidade. Foquei na camiseta que ele estava vestindo e, como pensei que tinha visto, a estampa era uma bandeira pirata.

- Você faz parte desse partido, né?! – apontei para seu tórax e seu cenho se retorceu em confusão.

- Ahn?

- O Partido Pirata, numeração 42, pós-anarquista, que defende a liberação de informações...? – como se ele não soubesse! Observei um relampejo passar por seus olhos.

- É um segredo – ele cochichou, se inclinando para frente e tirando o relógio. Exibiu uma tatuagem minúscula no punho, o tal número. Olhei para ele, incrédula. Quem era tão devoto a um partido a ponto de fazer uma tatuagem? O pobre Leôncio tentou me avisar, pediu para que eu corresse de seu dono lunático da melhor forma que podia.

Enquanto plotava a minha saída estratégica, surpresa com a minha própria decepção repentina, o garçom chegou com nossos pedidos.

- Camiseta daora, cara – ele elogiou, apontando para Sam – Sem os canudos para vocês, né?

Sam assentiu, balançando a cabeça. Pelo menos aquele cara tinha empatia por tartarugas. Antes de inventar uma situação emergencial em casa, não aguentei a curiosidade da relação entre o partido e os assassinos-de-plástico e perguntei:

- O partido é ecológico? Talvez vote nele ano que vem.

Faltou sair refrigerante pelo nariz de Sam. Ele assumiu a cor de um pimentão e se engasgou no meio do acesso de tosse.

- Foi uma sequência muito extraordinária de acontecimentos para que eu não aproveitasse a chance, Berenice – sorriu como se pedisse desculpa – Mas eu não faço parte de nenhum partido, sou só um entusiasta do Sea Shepherd, uma ONG que luta pela preservação da vida marinha e caça navios baleeiros.

- E sua tatuagem? – perguntei, desconfiada (e também aliviada).

- É do Guia do Mochileiro das Galáxias, uns dos poucos livros que li e gostei – deu de ombros e olhou para mim como se fosse dizer mais alguma coisa, mas desistiu no último momento e deu uma mordida em seu pão de queijo. Enchi minha boca de torta e terminei o suco de uva momentos depois. Eu realmente estava faminta. Parecia que agora eu até estava enxergando melhor. Ele, notei, tinha um tique de sempre arrumar o cabelo e ajeitar os óculos no nariz. Era charmoso, sem que estivesse tentando.

Mas não era isso. Era outra coisa. Algo que fazia cócegas na minha epiderme. Algo que Karen chamaria de energia. Ela, sempre com o místico. E eu, que mal acreditava em energia elétrica (sério? Elétrons se movimentando e formando correntes? Conta outra!), começava a ver sentido no que as pessoas chamavam de conexão.

- Eu sempre quis viajar bastante, como uma mochileira – deixei que as palavras fluíssem – Quando eu era criança tinha a minha lista dos desejos – sorri com a lembrança – Só me lembro de dois itens: viajar todo o Universo e dirigir melhor que o Ayrton Senna.

- E eles se tornaram realidade? – ele perguntou, me olhando intensamente. Vi a curiosidade em seu semblante e dei um risinho.

- Não consigo nem juntar dinheiro para uma passagem de ônibus intermunicipal. Fora Taubaté, só conheci São Paulo e Ubatuba – mordi o lábio inferior – E aqui a gente só vem no Ano Novo, de qualquer forma. Ficamos sempre na mesma casa, vamos as mesmas praias... Mas que direito eu tenho de reclamar? Se tudo isso que vivo não passa de um privilégio? – soltei um muxoxo. Sam ficou pensativo e terminou de tomar sua latinha de refrigerante.

- E o outro desejo? – indagou – Temos uma incrível motorista?

- Eu quase atropelei o prefeito da cidade nesse ano. Ele estava na faixa – corei com a explosão de risadas que se sucedeu – Para de rir, não tem graça!

- Dependendo do nível de corrupção dele, você teria sido uma heroína – constatou e eu revirei os olhos – Berenice Hood – declarou e eu senti uma fisgada no meu estômago. Não acabaria com o momento revelando meu verdadeiro nome. Ele me observou cautelosamente e disse: – Se você não estiver ocupada agora, tem um lugar perfeito que podemos ir.

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Era a segunda vez que eu ia para algum lugar com um desconhecido. Tudo bem que agora ele era um tantinho mais conhecido por mim, mas mesmo assim ainda tinha um pouco de medo. Era só eu olhar para Sam que a sensação se desvanecia e eu era tomada pela animação. Olhei as árvores ao nosso redor e as placas de madeira.

- Uma trilha?! – exclamei. Eu não era exatamente sedentária, mas me senti intimidada.

- Essa não é difícil, dá para fazer de chinelo – estendeu a mão para mim – Se tiver algum trecho ruim, eu te ajudo – dei minha mão para ele, aceitando a oferta. Pequenos choques percorreram meus dedos, o que me fez me afastar de seu toque discretamente. Que merda estava acontecendo?

- Sempre achei que a questão de ser mochileiro está mais relacionada à necessidade de explorar e de conhecer do que pegar um avião e dormir em hostels. É necessário o espírito e acho que você o tem – deixei que aquele comentário me preenchesse.

Andamos em silêncio por alguns minutos, até que chegamos ao destino final, um mirante que permitia ver a extensão marinha. Nos sentamos no pequeno deque e sentimos a brisa marítima acertar nossos rostos. Apesar do tempo ruim, raios de sol se esgueiravam por entre as nuvens, formando um quadro renascentista. Suspirei. Karen estava certa: eu precisava de algo que me fizesse feliz e ver Ubatuba por aquele ângulo me fazia.

- Sabe o que significa 42, segundo os livros? – Sam foi o primeiro a retomar o diálogo.

- Se não for relacionado à política, estarei mais que contente – zombei, arrancando-lhe um sorriso.

- É uma teoria desenvolvida por um supercomputador chamado Pensador Profundo. 42 sempre é a resposta, não importa a pergunta – disse e eu assenti, tendo mais e mais vontade de conhecer tal universo literário – Fiz a tatuagem em uma época conturbada da minha vida, começo desse ano. Estava viajando, fazendo um mochilão sozinho pela Ásia, quando recebi o telefonema de Carolina. Minha ex-noiva estava surtando com o fato de eu ter postado uma foto com alguns mochileiros que conheci no dia, dentre eles uma mulher. Nem sabia o nome da guria, mas Carolina já tinha o nome de um filho bastardo. E naquele dia, no auge de seu surto, terminou tudo – ele deu uma risada sarcástica – Mas a vida sempre nos fornece respostas, como o Pensador Profundo. Carolina só não era uma delas – fiquei com vontade de abraça-lo, mas mais ainda de fazer com que ele risse de novo. Ele sempre ria das minhas histórias trágicas, então limpei a garganta e contei a pior, a que nem as minhas irmãs sabiam.

- Eu acho que tenho uma história pior – fingi me gabar, jogando meu cabelo para trás – Tinha um amigo, Marcos. O conheci esse ano, na faculdade. E aconteceu o inevitável, o clichê mais clichezento da vida: me apaixonei pelo melhor amigo. Depois de ele me beijar, ele olhou no fundo dos meus olhos e disse: - fiz uma pausa dramática – "Eu realmente sou gay. Tipo, muito gay". Ele tinha que ter contado naquele momento?! – dei uma risada e Sam acompanhou – Depois ele pediu transferência de sala e me fez jurar que não contaria para minha família e nem para família dele e simplesmente parou de me responder no whatsapp.

- Foi bem ruim – ponderou – Mas esqueci de uma parte da história: Carolina jogou o anel de noivado de três mil reais no mar, no meio da sua fúria. Eu sei que a inspiração veio de Titanic, mas não sei da onde ela tirou que eu era rico – abafei uma risada com a expressão de braveza que ele fez.

- Tá certo, você ganhou – me rendi, levantando os braços. Depois disso caímos em um silêncio gostoso. Em certa hora, encostei a cabeça em seu ombro e permanecemos daquele jeito. A química estava lá, e parte de meu ser queria que ele me beijasse, enquanto a outra queria sair correndo.

Não aconteceu. Começou a chover e voltamos para a praia que foi início de tudo. Sam me disse que iria num bar longe da orla, "O Barítono", por causa de Leôncio e o medo dos fogos de artifício. Ele me convidou, mesmo que sem esperanças, para "dar uma passadinha lá". E, como se soubesse que ali era o adeus, me deu um abraço forte e um beijo na testa, me enchendo de pensamentos enquanto voltava para casa.

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Senti meu celular vibrar no bolso e quando o peguei recebi uma enxurrada de mensagens de Becca, resultado do péssimo sinal da trilha.

Becca, 10:49:

O pai quer saber o numero que vc vai jogar na Sena

Becca, 11:02:

Brenda?

Becca, 11:30:

Eu realmente espero que vc veja essa merda, porque ta faltando só seu número para fazer o jogo

Becca, 11:44:

CACETE, BRENDA, ONDE VOCÊ TA?!

PRECISO DO NUMERO, PORRA!!11!!!

Senti um sorriso tomar conta do meu rosto.

Brenda, 12:01:

42

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Fui atacada por Karen assim que cheguei ao nosso quarto. Ela me abraçou forte e pediu várias desculpas.

- Eu não deveria ter te deixado sozinha na praia, nem gritado com você, Bre! – choramingou – Me senti muito mal e estava com medo de ter acontecido algo com você, sabia? Você demorou a voltar. Prometo que nunca mais vou fazer isso, quero dizer, exceto se...

Olhei para ela com receio. Karen não era o tipo de pessoa que colocava condições em sua promessa. A olhei de modo inquisidor e ela se explicou.

- Bem, exceto se eu estiver de TPM. Tinha um motivo de eu ter agido daquela maneira explosiva, e não era só babaquice intrínseca, tá? Tive minha menarca hoje! Falando nisso, você vai comigo na minha primeira consulta ginecológica?

- Karen, para de me chamar pra rolê esquisito, pelo amor de Deus! – explodi.

- Eu até comprei um presente para você – disse, revirando uma sacola. Peguei o embrulho e, ao ver o conteúdo, taquei nela – Sei que as coisas não deram certo com Marcos, mas eu realmente quero que você encontre o amor, Bre. Se a calcinha vermelha funcionar, bem. Se não funcionar, a gente ainda pode procurar um benzedeiro...

Revirei os olhos, rindo do jeito exagerado da minha irmã caçula. Decidi que ela merecia saber um pouco da minha manhã, então me pus a contar todos os detalhes de Sam e Berenice.

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- Vocês são muito tontos! – Karen ralhou, andando de um lado para outro em seu vestido branco para o réveillon. Era a décima vez que ouvia versões diferentes do mesmo discurso – Óbvio que você era a resposta para a vida dele, literalmente a resposta – estalou a língua, e eu me afundei na cadeira – Que ideia foi essa do nome falso e de nem trocarem telefone? – bufou – O Universo ajuda, mas vocês não facilitam. É isso. Eu nunca mais oro para Santo Antônio por sua causa – ameaçou.

Desviei o olhar, ouvindo a discussão típica da minha mãe e de Becca, a respeito das roupas pretas para a virada. Um clássico. Do outro lado, meu pai exibia a barriga de cerveja em frente à churrasqueira, cantando Raul Seixas e virando as carnes. A mesma coisa de todos os anos anteriores. Exceto que dessa vez algo borbulhava em meu estômago e, sem pensar duas vezes, agarrei a chave do carro que estava em cima da mesa.

- Karen, a gente precisa encontrar Sam – a puxei pelo braço, enquanto ela me olhava com admiração – A gente volta antes da virada ou um pouquinho depois, ta? – ela assentiu e virou minha co-piloto. Conseguimos sair sem sermos notadas.

Chegando ao Barítono, percebi que havia vários cachorros soltos. Notei quando um veio em minha direção, abanando o rabo. Reconheci Leôncio, o que significava que Sam estava mesmo ai. Passei os olhos pelo espaço e vi sua silhueta em uma roda de pessoas. Me aproximei, com um batalhão de borboletas no estômago. O cutuquei e ele se virou, exibindo surpresa ao encontrar seu olhar.

- Posso falar com você? – pedi subitamente tímida. Ele assentiu de imediato e me conduziu até um lugar mais reservado, no canto da sala. Ele me fitou e eu sustentei seu olhar. Não aguentei e dei um longo selinho nele, que logo evoluiu para um beijo completo, com coração acelerado e sensação de flutuar. Nos separamos e ele me deu um sorriso lateral.

- Acho que isso não envolveu muitas palavras, Berenice.

- Foi a melhor maneira de me expressar – dei de ombros e ele concordou - E é Brenda de Souza, tá? Entrei em pânico e menti meu nome – admiti – Mas foi só isso! O restante era tudo verdade, inclusive essa última parte – acrescentei rapidamente.

- Brenda – ele sussurrou – Acho que combina mais com você. Perdão não pegar seu número de celular hoje, pensei nisso o dia inteiro.

- Idem.

Ele então entrelaçou nossos dedos e eu sorri com a sensação de choque e formigamento que tinha experimentado mais cedo. Ali, no escuro e sem os característicos fogos de artifício, percebi que estava no lugar certo. Claro que teria que dar muitas explicações quando chegasse em casa, mas valeria a pena. De repente, ouvi o grito agudo de Karen e fomos juntos ao seu socorro.

- Socorro! Essa cadela fez xixi em mim!!! – ela se retorcia, fazendo caras e bocas – Isso é comum? Ta escorrendo por minha perna, é quente e pegajoso! – parecia a ponto de chorar. Nisso, um garoto de uns 14 ou 15 anos se aproximou, tentando acalmá-la.

Eu e Sam nos entreolhamos, cúmplices.

- Talvez os cachorros sejam mesmo os melhores amigos dos homens – proferiu e eu concordei.

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