PRÓLOGO
Aroeira, interior do Rio de Janeiro.
casa de número 39.
José Roberto era um homem sem emprego. Havia acabado de ser expulso, trabalhava em uma delegacia conhecida na cidade. José precisava de alguma coisa para poder esquecer os problemas de sua vida. Esquecer que mesmo trabalhando duro, no final das contas, ele sempre se ferrava.
Seus planos eram poder encher a cara em qualquer bar que existia pela pequena cidade. Desde que o delegado havia lhe cuspido as palavras da expulsão, José não havia parado de andar pelas ruas, totalmente às cegas, sem saber o que fazer dali em diante.
Ele odiava os seus vizinhos. Odiava a cidade em que morava. Odiava seu trabalho. Queria mudar-se, mas infelizmente não obtinha sorte alguma. As brigas com sua mulher em casa ficavam piores a cada dia que se passava. Pois, Luciana vivia dizendo que estava doente e não poderia mais cuidar da moradia.
Apenas ele fazia algo por sua família, era o único que trabalhava até a última gota de suor escorrer pelo corpo, para manter a casa em pé. Manter a sua família em pé.
Era hora de mostrar pra sua mulher quem mandava naquela porra de uma só vez.
José não aguentava mais, queria acabar com aquela sensação de que seria um nada, agora que estava sem emprego. Tudo que havia conquistado ficaria para trás e ele teria que correr novamente contra o tempo para poder se dar bem de novo. Os pensamentos pessimistas rondavam a sua cabeça há muito tempo.
Ele era um policial, caralho! Mas, ainda não tinha entregado oficialmente seu distintivo, a maioria ainda não sabia que ele tinha perdido seu cargo. Então o homem ainda tinha autoridade por onde passava, devido ao seu grande reconhecimento nas ruas pacatas de Aroeira. Alguns o odiavam, outros ainda possuíam certa admiração.
Era ele quem defendia a vizinhança quando algo de ruim acontecia e agora somente por ele ter confundido um dos culpados de roubo e ter atirado num homem inocente, tinha sido expulso. Nas entrelinhas, ainda tinha alguns mínimos detalhes, por ter fumado e chegado bêbado no trabalho. O que ele não entendia era que tudo isso foi se acumulando e chegou até a borda do copo, por fim, entornado.
Alguém tinha o dedurado, a investigação comprovou indícios de irregularidade, iniciou-se um PAD, um procedimento formal para julgar a conduta do policial. Ao final do parecer, a comissão responsável emitiu uma ordem que ocasionou a sua demissão.
Agora ele estava impossibilitado de voltar à polícia. Ele teve sorte, pois o caso não foi à Justiça, a família da vítima não quis envolver política. Mas, na cabeça de José, tudo isso eram injustiças. Ele não conseguia acreditar no que havia acontecido, tinha raiva de si mesmo. Não iria conseguir outro emprego por culpa das notícias (tudo se espalhava muito rápido pela pequena cidade), ficaria pobre. Ficaria sem ter o que comer. Brigaria ainda mais com a maldita mulher em casa.
Azar. Azar.
Apenas o azar poderia vir adiante em seu futuro.
Sua cabeça estava passando por turbilhões, José estava doente fazia tempos. Não era fisicamente, eram coisas psicológicas. Mal da cabeça. Era um tipo de cansaço mental que só acontecia com aqueles que trabalhavam demais, vendo e passando por coisas no dia a dia que pessoas normais não estavam acostumadas.
A mente de José estava acabada.
E, mesmo assim, o homem tentava fazer tudo. Tentava arrancar sua própria vida para dar à sua família.
Estava quase escurecendo, José andava pelas ruas, de um jeito cambaleante, havia bebido algumas, era rotina. Estava sóbrio, mas aos poucos, os borrões das lamparinas ao redor estavam começando a ficar embaçadas demais, deixando-o tonto. José estava com mais sede. Ele não queria se lembrar de que havia perdido aquele maldito emprego e que provavelmente iria perder a mulher também por isso. E consequentemente ela iria levar embora a sua filhinha, que tanto amava.
Procurou outro bar, por sorte achou um aberto perto da esquina da estrada de chão, ainda tinham alguns idosos e adultos da sua altura, barbudos, bebendo cerveja.
Ele poderia encher a cara o tempo que quisesse e manteria o respeito, pois ainda estava vestido com sua antiga farda de policial. Teve de cumprimentar alguns caras que lançaram acenos de cabeça e depois se sentou numa cadeira no canto, longe dos outros. Ele ouvia o mato atrás dele farfalhar, com a brisa fresca e a risada rouca dos barrigudos ecoarem ao vento.
Foi servido rapidamente com um copo cheio. José levou até a boca, experimentou, e estava com um gosto ótimo, do tipo que ele poderia acordar no outro dia com uma ressaca daquelas. Fez uma careta ao pensar nisso, mas pelo menos enquanto estava ali naquele momento, poderia fingir que o amanhã não iria existir.
Ele não queria que existisse outro dia depois daquele.
José nunca foi violento, nem suicida, mas depois que se entrava na polícia, as coisas se tornavam um caminho sem volta. Era difícil ver crimes sem solução, ver as mães chorando com a morte de seus filhos quando aconteciam injustiças, saber sobre crianças desaparecidas que nunca voltariam para casa, encontrar jovens usando drogas pesadas em becos, presas num caminho sem volta e outros crimes a mais que não se pode resolver facilmente.
José deixou que outra cerveja queimasse a sua garganta. E mais outra. E mais outra.
Ele ficou bebendo até o bar se fechar, não quis sair de lá. Não queria ir pra lugar algum. Queria sumir. Pensava que talvez seria muito melhor se ele não existisse naquele mundo, talvez assim, pudesse ter ao menos uma paz de espírito.
O dono do bar teve que expulsá-lo também, foi de um jeito respeitoso, mas severo. Nem chegava perto das palavras duras do delegado. O cara tinha dentes amarelos e um sorriso de escárnio que usava com todos os clientes quando queria disfarçar que não estava nem um pouco confortável com a situação. José entendeu o recado.
Ele começou a andar para fora do bar, pela estrada. Pensava em qual seria o lugar ideal para que sua família pudesse ir, sem ter que arcar com problemas. Sem ter que brigar, sem perder empregos, nem lidar com mães desesperadas, pais ou filhos chorando. José amava sua família e gostaria de ficar com elas pra sempre.
Então finalmente ele chegou a uma trágica conclusão e foi direto pra casa.
A louça finalmente estava limpa, pratos e talheres brilhando residiam sob a secadora de metal. Luciana olhou para a sua filha Maria, ainda sentada à frente da mesinha de centro da sala com uma folha de papel e um monte de giz de cera espalhados. Já fazia quatro anos que a mulher não conseguia lidar com sua criança, e com sua casa, pois estava se sentindo deprimida.
Ela não sabia exatamente o que era esse sentimento de tristeza tão avassalador, mas nenhuma erva ou chá curavam.
Estava com medo de que o que quer que fosse aquela coisa intrínseca no seu ser, pudesse passar para sua bebezinha. Maria era linda e tinha os olhos como os do pai, caramelos. Seus cabelos eram cacheados e emaranhados no topo da cabeça, como se fosse um pequeno leão dócil.
A criança não falava muito, mas era birrenta ao seu modo. Maria não era de se entender com as pessoas ao seu redor. Luciana já não sabia como lidar com ela, depois que a garotinha se tornou agressiva com as crianças e professoras quando mudou da maternidade III para a pré-escola, as coisas se tornaram ainda piores. Pois, ela se preocupava e esse sentimento excessivo atrapalhava o seu desempenho de trabalho dentro de casa.
Luciana olhou no relógio, estava bem tarde, seu marido não havia chegado ainda e ela decidiu que colocaria a filha pra dormir. A mãe sabia o que viria a seguir, uma cena teatral em dramaticidade. As duas não se davam bem, mesmo que a garotinha parecesse inofensiva, Maria tinha transtornos incomuns que Luciana nunca tinha visto antes em uma criança.
Luciana chegou próximo ao desenho que sua filha fazia em cima da mesa.
— O que está desenhando?
Maria Clara, nome esse que fora dado por escolha da avó materna, respondeu:
— "Môneca", mamãe. — a pronúncia saiu completamente errada enquanto a menininha se concentrava nas linhas tortas dos cabelos da boneca. Uma criança de quatro anos geralmente já sabe falar o básico e até mais do que isso, mas Maria Clara tinha um atraso.
Luciana conseguiu entender, ela já estava acostumada com esses episódios. Maria era muito ruim em aprender a ler, a falar e a escrever, as professoras diziam que Luciana tinha de ter paciência, mas a mãe sabia o que isso significava. Luciana entendia que elas apenas queriam diminuir o tamanho do problema, mas sua filha tinha um diferencial das outras crianças. Isso a deixava irritadíssima, pois não entendia o porquê de Maria Clara ter vindo tão diferente de como ela era quando mais nova...
Onde foi que havia errado?
A algazarra começou quando Luciana a chamou para dormir, Maria Clara não gostava de ordens, principalmente as de dormir. Tinha medo do escuro. De dormir sozinha. E esses espetáculos não ocorriam somente em horários noturnos, eram rotineiros em muitos momentos.
O humor da garotinha mudava rapidamente e já não parecia mais uma criança inofensiva e sim um bebê malcriado que esperneava sem parar.
Luciana teve de puxá-la pelo braço com força para que ela fosse para o quarto. A mulher não tinha culpa, tudo que falava para a filha era completamente ignorado. E então, quando a paciência se esgotava, apelava para a violência às vezes. Era assim que tinha sido educada em toda a sua infância, poderia muito bem repassar os ensinamentos.
Após longas tentativas falhas de tentar fazer Maria Clara parar em cima da cama e dormir, finalmente a garota caiu no sono depois que Luciana contou-lhe uma história de ninar. A mãe acertava nisso, era uma das poucas coisas na criação de Maria Clara na qual Luciana fazia com sucesso. Repetia o que sua própria mãe fazia quando criança, contando para sua filha sobre histórias de princesas, castelos e fantasias que acreditava antigamente, todas com final feliz.
Diferente da sua vida, que caminhava lentamente para o fundo do poço. Luciana não sabia como ser uma boa mãe, não sabia como ser uma boa esposa e nem cuidar da casa como deveria. Era tudo que a sociedade impunha.
Mesmo com o impacto positivo que a Constituição fazia a cada dia, as mulheres ainda sofriam preconceitos e desigualdades terríveis, a realidade social estava longe de ser igualitária. Uma mulher que sabia cuidar da casa, dos filhos, era considerada uma mulher perfeita. Luciana não era esse tipo. Ela queria sua independência, sua autonomia. Ela queria sair, explorar. Mas, se fizesse isso, seria julgada aos olhos do povo.
Ela também tinha sonhos, gostaria de procurar um emprego melhor, como seu marido fazia, quando ia trabalhar fora todas as manhãs e tardes. Muitas profissões ainda eram vistas como "masculinas", dificultando a entrada de mulheres.
Ela pensou em estudar mais, mesmo que fosse em casa, porém sua concentração falhava. Até mesmo para isso não tinha condições, estava doente. E piorava a cada dia.
Deu um beijo na testa da filha, lhe desejando uma boa noite de sono e foi se deitar em seu quarto. O espaço na cama do casal estava vago, era o de seu marido. Quando José chegasse, ela enfim saberia que os problemas deixariam de existir. Ele chegaria, falaria que o emprego na polícia ainda estava garantido a ele e tudo não passou de um mal entendido.
Eles iriam brigar todo dia por causa da doença de Luciana que não melhorava, mas depois das gritarias e xingamentos, ele a abraçaria e diria que estaria tudo bem, que eles iriam resolver de alguma maneira por que a amava muito. Ele sempre resolvia.
A mulher não conseguia dormir sem ter o marido do lado. Ela o esperava todas as noites, mesmo depois de longas rondas que ele fazia, quando vigiava a cidade. Os minutos se passaram lentamente, Luciana estava quase dormindo, até ouvir a porta da entrada se abrindo. Demorou, mas pôde ouvir os passos de botinas pesadas, subindo as escadas.
A luz que vinha lá de fora que perpassava pela fresta da porta foi interrompida por uma silhueta musculosa. Um silêncio perturbador tomou conta do quarto. Luciana ficou encarando a sombra do homem parado ali, sem se mover da cama. Ela estava deixando seus olhos se acostumarem enquanto a silhueta entrava em seu quarto, empurrando a porta e se aproximando mais.
— Amor? — a mulher se sentou na cama com um movimento lento, mas preocupada.
O quarto estava escuro, era quase impossível de se enxergar. Mas, ela reconheceu José Roberto por meio de seu cheiro característico misturado com a bebida, que exalava de suas roupas.
— Por que chegou tão tarde? Está tudo bem?
— Está tudo bem, meu amor, está tudo bem.
As mãos ágeis de Luciana tatearam o rosto do marido sem pressa, ela queria saber o que havia de errado. Dava-se pra sentir as rugas que o rosto dele formava pela idade e a sua barba que arranhava. Ele não era de beber e nem mesmo de ficar até tarde pelas ruas. Alguma coisa lhe dizia que tinha algo de errado.
— Onde você estava? Como foi lá no trabalho? — perguntou, forçando a visão.
— Não se preocupe com isso, tudo está bem. — a voz dele saia em um tom de calmaria, diferente de tudo que Luciana já ouviu.
A mulher percebeu que ele não a tocava de volta e abaixou o olhar lentamente, percebendo que o marido estava com algo brilhante agarrado à sua mão. Luciana não percebeu o perigo que estava correndo.
— Eu vou resolver tudo isso para nós dois e para nossa filha.
— O que? Do que está falando?
— Tudo vai se tornar melhor para nós daqui pra frente, não precisamos mais nos preocupar com nada, minha querida. Finalmente teremos um descanso digno...
O corpo de Luciana parecia afundar, pesado, enquanto a linha entre o sono e a vigília iam se perdendo aos poucos. Ela sabia que seu marido falava algo importante pelo tom de voz, mas as palavras chegavam como ecos distorcidos em sua orelha, dissolvendo-se antes de encontrarem significado dentro de seu cérebro.
Sua mente estava lenta e nebulosa, tentava acompanhar os sons emitidos por ele, mas era como tentar agarrar fumaça. Restava apenas um murmúrio perdido no limiar do quase sono.
— José? O que está dizendo?
Após ela perceber que aquilo brilhante era uma arma de fogo, já era tarde.
O homem apontou a arma para a testa de sua mulher, puxando o gatilho.
O barulho ecoou pelo cômodo inteiro.
O sangue da mulher se espalhou pelos lençois rapidamente, deixando um mar vermelho no meio da vasta branquidão. José Roberto quase ficou surdo pelo barulho tão alto. Ele mal conseguia ver o corpo agora sem vida de Luciana à sua frente, mas podia sentir o coração batendo acelerado dentro do próprio peito.
A bala penetrou pelo crânio em um movimento fulminante, atravessando os pontos vitais com precisão letal. A morte foi instantânea, o silêncio que se estendeu foi cruel.
Antes que pudesse se arrepender de sua decisão, José Roberto se levantou da cama, caminhando em passos lentos até o quarto ao lado, o de sua filha.
A porta estava aberta, Maria Clara tinha suas pequenas mãozinhas apoiadas por cima do cobertor e o olhar em direção ao pai. Provavelmente por já ter acordado com o barulho alto do primeiro disparo.
— Papai? — sua vozinha perfurou o estômago de José Roberto de um modo violento, mais forte do que qualquer bala que poderia perfura-lo.
A garotinha se aproximou de seu abajur que ficava em cima do criado e o acendeu, podendo ter a certeza de que era somente seu pai na soleira da porta. E não um monstro das histórias de terror que poderia lhe matar.
— O que foi esse barulho?
José Roberto sorriu fraco, pela palavra saindo em um tom errado da boca dela. Ele se sentou na cama da filha, afundando o colchão com seu peso. Maria Clara estava atenta, encarando os olhos profundos e melancólicos de seu pai.
— Foi só um trovão, meu bem. — com a ponta dos dedos, seu pai acariciou os seus fios. — Pode voltar a dormir, papai está bem aqui. Tudo bem?
A garotinha balançou a cabeça em sinal de concordância, seu rosto estava sereno, ninguém nunca tiraria sua inocência. Maria Clara se virou para a janela, voltando a fechar seus olhos e estava feliz ao receber as carícias de seu pai atrás da nuca. Ele nunca fazia isso.
Ela nem sentiu quando ele apontou a arma para seu crânio. O seu sonho seguinte foi eterno...
O barulho ecoou pelo cômodo inteiro.
Com o corpinho frágil de sua filha nos braços, José Roberto foi em direção ao quarto de casal. O sangue jorrava de forma abrupta da cabeça de Maria Clara, escorrendo pelo ferimento de entrada e saída, enquanto ia formando uma trilha, cor de vinho, pelo chão.
José Roberto a colocou na cama. Ajeitou os corpos das duas, sem pressa, assim como elas se deitavam, quando Maria Clara ainda era bebê. O sangue inundou os cobertores, sujou suas mãos e roupas.
O choro silencioso começou e as desculpas também. José se deitou no lado esquerdo, o lado em que era acostumado a dormir todos os dias. A arma ainda na mão.
— Todos os problemas vão terminar agora... Todos.
A arma foi apontada para sua cabeça, o frio do metal encostou em sua têmpora. Seus dedos estavam trêmulos.
Era o único jeito de salvar a sua família. Quando tudo aquilo acabasse, eles se reencontrariam juntos em um lugar melhor. José acreditava fielmente nisso e fechou os olhos, deixando uma última lágrima rolar.
A ansiedade corroeu seus ossos.
O barulho ecoou pelo cômodo inteiro.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top