0.3 / Ocasionalmente o destino prega peças
São Paulo
Dezembro, 2017
"Teu olhar é trapaça
Mistério, previ
Pois é
Me tira o chão"
— Anavitória (Outrória)
Tem dias que acordamos e a loucura encoraja fazer coisas perigosas, sentir aquela adrenalina e um espírito aventureiro. Como pular de paraquedas ou nadar com tubarões. Para ser sincera, não estou disposta fazer atividades arriscadas como essas. Prefiro enfrentar esse dia lindo e uma tarde no shopping. O que não é arriscado e complicado.
— O que vamos fazer hoje? Não saímos de BH para ficarmos trancadas na casa do seu pai e não aproveitar as férias.
— Podemos ir ao shopping, você adora fazer compras e eu quero passar em alguma livraria. Ou você tem outro plano?
— Não. Gostei da sua ideia.
Após o almoço fomos nos arrumar para sair. Papai disse que não poderia ir hoje e que faria o possível para ir na próxima vez, ele usou a velha desculpa que o trabalho exige muito tempo dele. Eu entendo que o trabalho é importante. E sei também que se ele quisesse mesmo ir, ele iria, arrumaria um espaço para mim na agenda dele. É tudo questão de prioridades, se a pessoa quer ficar com você, ela arranja tempo. Poxa, eu saí de Minas para ficar com ele. Mas não quero que ele pense que sou uma filha ingrata, então apenas concordei.
Fomos à livraria depois da tortura que sofri esperando a Bia. Ela experimentou vários e vários pares de sapatos e insistia em dizer que a escolha não é fácil. Parece eu decidindo qual livro comprar, sendo assim, esperei pacientemente e dei minhas opiniões quando minha amiga questionava. Notei que a moça que atendeu ela, não gosta de clientes que levam tanto tempo para decidir o que levar e ainda são exigentes. Acho que eu não teria paciência para isso. Transitamos pelos corredores em busca de algum título que chamasse minha atenção. Eu tenho uma wishlist, mas quero dar uma chance às novidades ou a um livro desconhecido por mim.
— Vai demorar muito?
— Eu não reclamei quando a gente estava na sapataria.
— Tina, nem ficamos muito tempo lá.
— Aham.
Quando decidi qual comprar, Bia e eu rumamos para o caixa e paguei minha compra ouvindo ela resmungar sobre não entender a demora da minha decisão sendo que são só livros e saímos da loja. E eu faço uma pergunta parecida. São só sapatos, por que demorar muito? Mas o que pode ser futilidade para mim, não é para ela.
— Olha aquele vestido, Tina! É perfeito para você. — ela aponta para um manequim na vitrine usando um vestido azul turquesa.
— Nossa... é lindo. Vamos entrar, quero ver melhor.
Assim que colocamos os pés na loja, surgiu uma funcionária com um sorriso contido pronta para nos atender. Marianne é o nome dela — obrigada pela informação, crachá.
— Boa tarde! Posso ajudá-las?
— Sim. Adorei aquele vestido azul que está na vitrine.
— Tenho certeza que vai combinar com a cor do seu cabelo. Quer experimentar?
— Claro, por que não?
Olho no espelho a procura de alguma coisa que me faça detestar, pode ser qualquer detalhe bobo. Depois que vi o preço na etiqueta concluí que preciso de uma desculpa para dizer a Marianne que não vou comprar. No entanto, ele ficou ótimo em mim. O modelo é ombro a ombro e ele fica um pouco acima dos joelhos. Sem defeitos.
— Já vestiu? Você gostou? — Marianne pergunta. Não respondo, abro a porta do provador e saio — Ficou lindo. Adorei.
— É, eu gostei. Onde está a minha amiga?
— Ela saiu e disse que já voltava. Acho que ela viu alguém.
Que estranho, ela não conhece ninguém daqui além do meu pai e da Lúcia. Espero que ela não apronte nada e que não vá parar na delegacia.
— Eu não vou ficar com o vestido. Não cabe no meu orçamento.
— Se eu fosse você ficaria com ele, Tina.
— Onde você estava, Bia?
— Eu encontrei com uma pessoa. Você já vai saber.
— Tem certeza que não vai querer ficar com o vestido? Esse é o último. — Marianne ainda está tentando me convencer.
— E se não surgir ocasiões para eu poder usar? Não adianta comprar e deixar guardado.
Dez minutos depois eu e Bia saímos da loja com o vestido. O poder da persuasão. O passeio não parou por aí. Beatriz insistiu para ir à praça de alimentação, e eu concordei. Aceitei antes de saber que ela combinou de encontrar com a pessoa que viu durante o tempo que fiquei no provador da loja.
— Quem é essa pessoa misteriosa?
— Surpresa! Anda logo, Tina! Não queremos deixar ele esperando.
— Por mim tanto faz. Espera aí, ele quem?
Se eu tivesse ouvido a voz que me avisou para não acompanhar Beatriz, eu não estaria aqui agora surpresa e constrangida. Bom, tarde demais para voltar atrás. Literalmente. Nesse instante começo a recordar dos fatos. Minha chegada em São Paulo, aeroporto, quedas, malas, vergonha e olhos verdes. Até então, antes de vir para cá, eu não me considerava uma garota azarada e muito menos sortuda. Zero sorte, se for levar em conta o que houve poucos anos atrás. Acreditava que tudo ocorria como deveria, sem intromissão do universo ou sei lá o quê, nada extraordinário. Mas parece que assim que coloquei meus pés em solo paulista, recebi uma aurea desastrada e inclinada ao azar. Posso usar de exemplo o momento que derrubei esse cara no aeroporto e a situação que me encontro agora.
São Paulo está entre as vinte maiores cidades do mundo no quesito população e tamanho. Partindo deste princípio, como eu iria imaginar que fosse reencontrá-lo? É, estou começando a acreditar que ocasionalmente o destino prega peças.
— Eu não acredito que você fez isso comigo, Beatriz! — sussurro para que somente ela possa ouvir, mas não foi bem assim. O intruso olha diretamente nos meus olhos, sorri para mim e balança a cabeça negativamente. Toma liberdade e senta-se na nossa mesa.
— Que recepção calorosa. Sua amiga me convidou e eu não poderia recusar o convite. Não é mesmo?
Não faço questão alguma de responder. Minha mãe sempre deixou claro para não conversar com pessoas estranhas. E no momento não estou em condição de fazer nada. Só quero saber por que raios ela pensou que esse encontro é uma boa ideia.
— Tina, você não vai responder?
— Não falo com estranhos. E também estou envergonhada demais para ponderar qualquer frase.
— Não sou estranho. Você já até pulou nos meus braços. — como se pudesse confiar em alguém que acabei de "conhecer". Tem pessoas que conhecemos há anos e depois descobrimos que são falsas.
— Foi um incidente e eu pedi perdão. Você sabe disso.
— Não liga para ela, Felipe. Cristina só está envergonhada pelo o que aconteceu.
— Eu não ligo. Não tem que ficar com vergonha. Daqui algum tempo nem vamos lembrar mais. Então, o que vocês vão querer comer?
— Pode trazer uma porção grande de batatas fritas para mim e a Tina. E suco de laranja para ela.
— Okay. Já volto.
Foi só ele afastar três passos da mesa que a Bia começa a tagarelar sobre como ele é lindo, gentil e prestativo. Só assinto para ela poder parar de falar. Entretanto, ela entende o meu silêncio como uma deixa para continuar fazendo suas observações.
— Percebeu como ele ficou te fitando? Ele gosta de você.
— Você é louca. Convida ele para ficar com a gente sem ao menos o conhecer. Qualquer um pode ser o próximo Jack Estripador.
— Eu sei que está envergonhada e um pouquinho irritada. Você pode estar totalmente errada sobre ele. Fazemos julgamentos errados o tempo todo, como você disse, não o conhecemos. E se por acaso você estiver certa, estamos cercadas de pessoas que podem ser testemunhas. Se for fazer você se sentir mais segura, pergunta o nome completo dele e joga no Google. Lembra que quando éramos crianças e eu detestava alface sem ao menos experimentar? — assinto — Depois que eu provei passei a gostar.
— Você quis dizer com essa analogia que eu preciso dar uma chance para conhecê-lo melhor?
— Exatamente. Desnecessário construir essa barreira da China entre vocês.
Beatriz está certa. Pensando bem, ele não parece ser um tipo de Jack Estripador. Eu só não queria me deixar levar por um rostinho bonito, e como minha mãe costuma dizer, quem vê cara não vê coração. Vou tentar ser mais comunicativa e simpática. É claro que vou confiar com os dois olhos bem abertos.
— Onde você estava quando o viu? — a pergunta que não quer calar.
— Ah, foi totalmente por acaso. Eu aproveitei que você estava experimentando aquele vestido e fui olhar aquela saia preta da vitrine. O Felipe passou justamente na hora e eu o reconheci pela cabeleira ondulada e fui falar com ele.
Não tive a chance de perguntar mais nada. Quando olhei na direção que Felipe tinha seguido, ele caminhava até aqui com a comida e meu suco de laranja. Sendo assim, controlei e guardei minha curiosidade sobre o que minha amiga falou para ele.
— Aqui está a batata de vocês duas e o suco da Tina. Aliás, por que Tina? Não conheço nenhuma Cristina com esse apelido.
— Não é nada interessante. Meus pais só quiseram inovar. — dou de ombros e pego algumas batatas
— Vocês não são daqui, né?
— Não. Somos de Belo Horizonte, viemos passar as férias na casa do meu pai. Está tão na cara assim?
— Deduzi pela sua animação antes de... bom, você sabe — e se todos continuarem recordando, não vamos esquecer tão fácil.
— Fale sobre você Felipe, queremos te conhecer melhor. — Bia apoia os cotovelos na mesa e entrelaça as mãos, apoiando o queixo sobre elas, se mostrando claramente interessada pelo que ele irá falar — Pode começar pelo seu nome completo — olha para mim colocando a ideia de jogar no Google essa informação pertinente. E eu cruzo os braços esperando pelo o que ele tem a dizer. Não vou mentir, estou curiosa.
Será que vamos ter que fazer aquelas apresentações chatas que os professores pedem no início do ano letivo?
— Meu nome é Felipe Ávila Baxter e tenho vinte anos. Meu pai é estadunidense, o sobrenome Baxter veio dele. Eu curso fotografia, meus pais são músicos e eu trabalho com eles na escola de música que eles têm, não trabalho todos os dias. Aproveitando, se vocês querem aprender algum instrumento, eu recomendo a DóRéMi Music. Ah, eu costumo ser bem extrovertido e tenho uma alma bondosa. Minha vida não é interessante, não fiz nenhuma descoberta inusitada e nem conheci nenhuma celebridade. Me sinto em uma entrevista de emprego com vocês duas atentas olhando para minha cara. Parecem que estão me avaliando.
— Claro que estamos. A Tina tem medo de você ser perigoso.
— Caramba! Não é o que dizem por aí. Quero saber de vocês duas agora, tem que ser uma troca mútua de informações. Não vale esconder os defeitos e as manias estranhas. — ele rouba algumas batatas, restando apenas três, Bia comeu mais da metade.
Eles entram em uma conversa sem fim e eu uso meu tempo para bebericar o suco e observar ao meu redor. Vejo uma criança chorando e sua mãe — suponho que seja — negando o que o garotinho havia pedido. Volto a prestar atenção na conversa e pego o bonde andando, sem saber qual é o assunto de agora.
— ... Eu adoro o teatro. É muito legal ser uma pessoa diferente a cada peça, poder interpretar um personagem. Sentir e viver cada um. Mas por outro lado, tem a arquitetura, que eu sempre tive como primeira opção. As duas possibilidades estão num mesmo patamar agora, não sei qual escolher.
— Acho que você deve optar qual é a mais segura e que te deixa mais feliz. Eu sempre tive a fotografia como única opção, mesmo gostando de música, não me imagino atuando nessa área para a vida toda. Faz parte de mim, mas se encaixa mais como hobby. Minha mãe diz que tenho talento, mas ela entende minha escolha e nunca questionou. Fica difícil te aconselhar.
— Não tenho tanto tempo para decidir antes do Sisu abrir. — Felipe, Bia e eu pegamos as últimas batatas.
— E você, Cristina?
— Eu quero cursar história, licenciatura. Não tenho muito a dizer.
— Você é uma garota misteriosa? Vou ter que te desvendar, então.
Felipe passa a mão direita na nuca, fazendo com que alguns fios de seu cabelo castanho claro fiquem bagunçados. Ele fixa suas íris verdes diretamente nos meus olhos. Me olha com tanta intensidade que sinto que está explorando minha alma e, que a qualquer momento, vai descobrir tudo que fiz de ruim nesses dezoito anos de existência. Fico nervosa e sinto minhas pernas tremerem, graças a Deus estou sentada, assim eu não caio e ele não pode perceber o tremor. Minhas bochechas queimam e eu olho para minha esquerda para quebrar esse contato visual.
— Não sou misteriosa na maior parte do tempo.
— Sem problemas. Gosto de desafios. Vocês vão ficar na cidade até quando?
— Por mais de dois meses, ainda não temos data específica para voltar. Vamos ficar por tempo indeterminado. Pretendo curtir bastante, é minha primeira vez aqui. Quando a Tina veio para cá, ela só foi no Ibirapuera.
— É um dos meus lugares favoritos. Se vocês quiserem, posso ser guia e mostrar a cidade.
Peso os prós e contras rapidamente. Ainda estou um pouco apreensiva. Ele realmente parece ser uma pessoa bem legal, mas não posso deixar de lado os avisos de minha mãe para ter cuidado com pessoas que não conheço. Presumo que meu pai não vá poder me levar em algum lugar toda vez que eu quiser, o que me resta é ceder à oferta dele.
— Por que não? Nada melhor que um paulistano para nos apresentar a cidade. Só se realmente você estiver disponível, não quero incomodar. — respondo
— Tudo bem, é bom que vou ter uma ocupação nos meus dias livres.
Felipe pede meu número e eu passo com a palavra dele de que vai entrar em contato para que possamos marcar um dia para o passeio. Ele recebe uma ligação e diz que precisa ir para casa, Bia e eu vamos embora também. Só quero chegar em casa e começar mais uma leitura.
Acenamos para um táxi e para nossa sorte, o motorista nos enxergou. Fomos totalmente ignoradas pelos dois últimos. Graças a Deus o motorista é um senhor simpático.
— Vocês não são daqui, certo?
— Está tão óbvio que somos turistas? — já é a segunda pessoa que faz a mesma pergunta.
— O sotaque de vocês.
— Somos mineiras. — Bia responde.
O trajeto até a minha casa foi preenchido por boas conversas, risadas e histórias sobre passageiros estranhos e peculiares que já passaram por este táxi.
— Se o destino for aqui mesmo, chegamos.
— Sim, é aqui. Obrigada. — coloco minha bolsa apoiada no ombro e pego minhas sacolas.
— Disponha. Só fiz o meu trabalho. Fique com isto, — o taxista tira um cartão do bolso da camisa — quando precisar é só chamar. Não precisa me pagar essa corrida. Considerem de presente de boas vindas.
— Obrigada. Pode deixar.
— Ele gosta de você e nem adianta negar. Esses olhos lindos observaram tudo o tempo todo.
— De novo essa história? Sei que você quer que eu encontre alguém, mas não precisa bancar o cupido.
— Sabe qual é o seu problema, Tina? Você pensa demais, só curte o momento. Lembre-se que quem perde tempo é relógio parado.
— Não vou ficar dando corda para suas conclusões sem cabimento.
— Tá bom. Eu sei que você gostou dele também, não sou idiota. Percebi a troca de olhares de vocês dois. Vou ficar esperando...
— Esperando o quê ou quem, sua doida?
— Você admitir que estou certa. — ela dá uma piscadela e sai do quarto.
Era só o que faltava. Vou ter que confirmar a teoria dela sem ter um pingo de veracidade.
♡
Oi, pessoal! Cheguei com mais um capítulo. Quero saber a opinião de vocês sobre esse encontro do Felipe e da Tina. Às vezes o destino dá uma mãozinha para ajudar, e ainda tem a Bia para dar uma de cupido.
Espero que vocês tenham gostado. Se a resposta for sim, deixe seu voto.
Obrigada por tirar um tempinho para acompanhar a história!
Beijinhos e até o próximo capítulo
😚❤
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