Capítulo 3
Misha sorriu desconcertada e olhou para nossas mãos entrelaçadas. Nos olhamos por um tempão, mas esse tempão nunca que ia caber numa canção. Eu tinha ensaiado um discurso inteiro, mas nada saía. Meu cérebro parecia um grande canteiro de obras não concluídas. Que agonia não lembrar de alguma coisa.
Quando eu penso alguma coisa, quer dizer, algumas vezes nessa vida a gente quer um... Não, esquece... É quando, por exemplo, um elefante, nada a ver esse elefante... Como é que eu vou dizer que estou apaixonado?
- Você está muito bonita hoje.
Não era isso que eu queria dizer, mas... Bem, essa era uma das coisas... Só que... Não que ela não fosse bonita, ela era, mas eu queria dizer coisas mais significativas e só dizer que ela é bonita não parecia muito relevante, visto que Misha escuta aquele tipo de coisa a todo instante.
- Obrigada, Kent. Isso é muito gentil da sua parte. - Seu tom sorridente demonstrou que estava mais feliz do que aparentava com as minhas palavras. Vi a luz no fim do túnel. - Espero que você não esteja sendo irônico.
- Não leve a música ao pé da letra, Misha.
- Quer dizer que esse amor todo que você sente por mim não é irônico? - Sorriu de lado.
- Se eu dizer que eu te amo, você vai achar que eu estou sendo irônico? - investiguei.
- Eu vou achar que você gosta de mim como quem gosta de um vídeo do Youtube de alguém cantando mal.
Misha ser fã de Clarice Falcão me pegava muito, pois eu não precisava me preocupar em usar qualquer referência musical sem parecer um louco.
- Você não é boa em fazer suposições, Misha. - Achei graça.
- E se tudo isso acabar com a gente no necrotério brincando de sério, deitadinhos no bem bom, hein? - Ela deixou escapar a pergunta com uma certa curiosidade mórbida.
- Imagina que cena feliz. Sua autópsia seria engraçada, nela daria pra ver que você só morreu por mim. - Entrei na brincadeira, com medo de explodir que nem um vulcão de felicidade.
- Esse papo tá ficando doentio. - Misha riu. Eu a acompanhei, pois não existia nada que fosse tão interessante quanto rir com ela.
- A sua loucura parece um pouco com a minha. - Lembrei da parte de uma de suas letras favoritas.
Ela puxou sua mão da minha e eu senti falta das nossas peles unidas como se fosse da minha própria respiração.
Misha abaixou-se e pegou algo de dentro da sua bolsa. Eu soltei uma risada alta quando ela colocou aquele objeto no centro da mesa.
- Nossa, eu não acredito que você ainda guarda isso. - Arregalei os olhos num misto de surpresa por ver aquela pequena lanterna sem pilhas me encarando.
- Aquela trilha que a nossa turma fez em 2014 foi tão... Incrível. Lembro de tudo até hoje. - Misha disse timidamente. Nessa altura do campeonato ela já estava próxima demais para recuar mais uma vez. Ouvir sua respiração misturando-se com a minha foi poderosamente revigorante. Um choque de energia. Sinto que ganhei mais dez anos de vida. - Esses dias eu estava olhando minha caixa de sapatos onde eu guardo certas coisas e a encontrei. E essa - apontou para a lanterna - foi a melhor lembrança que eu guardei de você todos esses anos.
Eu me limitei a rir. A história era engraçada. Misha tinha se perdido no meio da mata e todo mundo estava procurando-a. Eu tinha que fazer alguma coisa. Peguei minha lanterna (que só funcionou por quinze minutos, joguei as pilhas no mato de raiva) e sai sem rumo atrás dela. Não suportava imaginá-la sozinha e em perigo. Ralei o joelho, quase pisei em cima de uma cobra jararaca, enrosquei o braço numa família de ortigas e fiquei puto e triste da vida por não encontrar aquela menina. Acabei encontrando-a quando estava anoitecendo, sentada quase no topo de uma árvore.
Segundo seu relato, ela assustou-se quando viu uma cobra enorme enquanto caminhava, então subiu para o topo da arvore para não morrer. Morria de medo do réptil, por isso resolveu esperar até alguém sentir sua falta e ir resgatá-la. Foi a partir desse dia que viramos amigos. Amigos estranhos, mas amigos. Ela quis guardar minha lanterna sem pilhas como sinal de gratidão.
- Foi lá que nos conhecemos. - Lembrei, chegando discretamente mais perto de seu rosto. Como ela não recuou, fiz uma nota mental para avançar um pouquinho mais o sinal.
- Você me salvou.
- Ninguém ali teria coragem de enfrentar cobras venenosas. - Dei de ombros.
- Verdade. Depois desse dia você nunca mais largou do meu pé. - Misha corou um pouquinho.
- Não larguei, porque eu sinto que você gostava que eu estivesse sempre por perto. - Comecei tentando não sorrir muito, mas Misha sorriu demais e estragou tudo. Ela podia encandear um planeta inteiro com o brilho de seu sorriso. - Não sei se você ainda percebeu, mas eu estou apaixonado. Por você. Eu estive por muito tempo e eu vou ficar assim sem previsão. Eu estou apaixonado porque, bem, você é você. Nenhuma garota é você e se elas não são você, eu não posso amar alguém que não seja você. Deu pra entender? - Até eu franzi a testa tentando me entender.
Sem que eu me desse conta, Misha me deixou ainda mais confuso quando selou nossos lábios em um beijo arrepiante. Se eu soubesse que beijá-la seria melhor que encontrar um tesouro valioso escondido, teria feito isso mais vezes do que eu pretendia.
Misha me beijava e sorria ao mesmo tempo. O mundo poderia explodir que eu jamais saberia.
- Eu também amo você, Kent!
Eu bem que poderia morrer feliz. Mas não agora. Eu não podia deixar Misha viúva antes de pedi-la em namoro.
- E se eu falar que você é tudo que eu sempre quis pra ser feliz, você vai pro lado oposto ao que eu estiver? - Ela quis saber. Deixei que o meu beijo respondesse por mim.
- Eu desisto oficialmente do meu posto de rei do lado oposto. - Decretei, e Misha sorriu, feliz com minha decisão. - Já dominei demais aquelas bandas.
- Kent.
- Diz.
- Nunca me dê motivos para cantar banho de piscina para você. - Pediu, inclinando-se mais uma vez para me beijar.
Cai na gargalhada.
- Nunca cante Irônico para mim. - Pedi. Então eu beijei Misha do tanto que eu sempre quis.
Fim
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