Capítulo único


O punho se movia na horizontal em movimentos rápidos, tensionando a faca suja contra o interior macio e escorregadio do pão murcho dividido ao meio. A margarina dentro da geladeira ficava dura e difícil de usar; fora, acabava molenga e meio asquerosa. Pedro detestava sua margarina desse jeito, como um óleo no pão, mas isso poupava tempo ao homem que lhe servia o café. Seu pai. Um pai que já acordava com pressa todo mísero, e cada vez mais miserável, dia. Mesmo nos finais de semana o amarfanhado levantava cedo demais, pois agora era dever dele também varrer a casa e limpar os móveis. O divórcio lhe trouxera mais que arrependimento.

Sorte a de Pedrinho que naquela manhã tinha vovó Carminha a visitá-los, e graças a ela não foi obrigado a também levantar às oito da manhã. "Deixe o menino dormir, Fernando! Ele já madruga a semana inteira, e você ainda enche o coitado com esse monte de cursinhos. Ele é só uma criança", repreendia a senhora de cabelos loiros, alguns brancos, e a quem a palavra senhora causava arrepios. "Estou na flor da idade, viúva é que não vou morrer", falava e saía rindo, balançando as pulseiras de continhas escandalosas.

Uma coisa era verdade: Carmem parecia mais jovem que o filho, mas pudera! Vivia sozinha, não precisava se preocupar com os dois marmanjos que pariu ainda muito moça, nem com o falecido Odair — que descanse em paz. Já Fernando era professor do Estado, estava há dois meses sem receber um centavo, tinha uma pilha de provas para corrigir, uma sala com pequenos diabos para enfrentar, e ainda uma esposa amargurada para ouvir xingando no telefone.

"Não dá, Nando. Você vive estressado e desconta isso em quem tenta te ajudar e nada tem a ver com seus problemas. Sei que a vida anda complicada pra você, mas eu também tô num aperto danado. Ainda te admiro, mas não dá pra continuarmos juntos... Ah, quinta-feira tenho uma entrevista, então se você puder me desejar sorte... Beijo". Não que Giovana o xingasse, de fato, mas ele achava que sim, ao menos quando junto da mãe dela ou das amigas fofoqueiras... Quem sabe?

Quando não isso tudo, pensava nas horas perdidas no trânsito, de pé no ônibus lotado, tempo que poderia usar para lançar notas ou preparar aulas futuras, ou apenas dormir. Ah, como boas noites de sono faziam falta... Como Giovana fazia falta... Vai ver a impaciência fosse isso mesmo: excesso de sono e carência de prazeres. Em outros tempos diria sem medo que adorava lecionar, mas agora... Carregava nas costas uma dor constante.

Pedrinho tinha dó de Fernando, embora o pai brigasse demais com ele e por motivos tão banais quanto resmungar da margarina no pão ou do Nescau frio na caneca do Hulk — gostava do achocolatado morno. Já vovó Carminha era só alegria, acordava-o com bolo de cenoura com cobertura de chocolate, suco de laranja e o fazia rir ao cochichar:

— Seu pai tá feito mico com micose limpando o banheiro, mas se você não contar que acabei com o xampu dele, não digo que você que molhou tudo tomando banho ontem de noite.

Uma piscadela e mais riso. Carminha imitava bem o filho como um macaco se coçando todo de nervoso. No entanto, a senhora esguia e de sorriso amplo saiu do quarto quando Fernando começou a falar alto demais. Encontrou-o na sala, andando para um lado e para o outro, gesticulando com uma das mãos, enquanto a outra mantinha o celular junto à orelha.

— Calma, meu filho, não precisa ficar assim. Vai acabar envelhecendo mais rápido que eu.

— Como vou ter calma, mãe? Esse filho da puta tá é querendo me roubar. Maldita hora que fui levar esse carro pra oficina. Dois mil reais pra alinhar, balancear, e trocar as pastilhas de freio? Vai se foder! Eu não cago dinheiro, desgraça!

— Fernando, não diga essa palavra! Já te disse que é forte demais.

— Mãe, por favor, agora não.

Ele caminhou até a sacada e continuou gesticulando — se os pombos no telhado do prédio vizinho soubessem falar, diriam que era um péssimo regente de arrulhos. Sua mãe, por outro lado, encontrou o neto espiando do corredor, meio encolhido e tristonho. Foi ampará-lo. Pedrinho não gostava daquelas cenas, mas havia peculiaridade: o pai disse nomes bem feios, mas a avó só o repreendeu quando cuspiu "desgraça". Por quê?

— Esse é um nome muito feio, meu neto. É o nome da mulher do diabo, por isso não devemos repeti-lo como seu pai faz, e muito menos se estamos irritados como ele — respondeu Carmem, em confissão.

O menino não era de se impressionar fácil, até porque o pai gostava de clássicos de terror e já o levara para assistir alguns no cinema, como It, de Stephen King. Uma historinha contada ao pé do ouvido, quase no meio do caminho, não o impediria de dormir.

Problemas para dormir ele não teve nenhum mesmo.

Carmem decidiu que daria ao neto uma canseira naquele sábado. Foram à piscina do condomínio, ao shopping, tomaram sorvete e jogaram bola na pracinha, correram atrás de alguns pardais — ela se esforçou para acompanhar o neto — e, ao fim do dia, Pedro já estava exausto. Bastou chegar em casa, tomar um banho e deitar no sofá. Logo o sono veio abraçá-lo.

Quando acordou, estava escuro. Sua visão embaçada melhorou depois de coçar os olhos, e nesse ínterim uma silhueta, ao lado direito da cama, correu até a porta do guarda-roupa, e depois para a entrada do quarto, onde ficou por segundos antes de correr de novo, rumo à sala. Tinha passos ruidosos, era pesada, e seus longos cabelos esvoaçavam desgrenhados no movimento. No entanto, não pôde discernir muita coisa, só a luz que vinha do corredor era pouca para desenhar minúcias na cara da pessoa grande.

Pedrinho se arrepiou sem saber o porquê e sentou na beira da cama. O corpo inclinou à esquerda, tentando ver se o espiavam da porta, mas tinham corrido dali. Os pés buscaram os chinelos, calçaram-nos, e com lentidão se dirigiram até a entrada do quarto. Esticou-se, olhou para a esquerda, depois para a direita. Parca e inconstante luminosidade vinha da sala; só podia ser o brilho da TV. Foi até lá de mansinho.

— Pedrinho?

O menino acabou mudo e na ponta dos pés quando a voz grave soou por trás dele. A mão grande e áspera pesou num dos ombros, fazendo-o girar. Era Fernando se agachando para encarar o filho, enquanto segurava Cemitério Maldito, em livro, na mão esquerda. Também tinha acabado de sair do quarto.

— O que houve? Ouvi um barulho... Era você que tava correndo?

— Não, era a vovó. Ela correu pra sala.

— Filho... A vovó já foi embora, uma das amigas dela passou mal e precisou de ajuda.

— Mas eu vi, era alta e tinha cabelos grandes como os da vovó.

Fernando engoliu em seco, a luz do corredor oscilou, e uma golfada de ar evocou a caçamba de lixo podre no final da rua, trazendo um forte cheiro de azedo que subiu pelos rodapés da parede; tudo isso durante o tempo necessário para que o professor abrisse a boca e murmurasse:

— Ô, desgraça...

E a cara cinzenta de olhos esbugalhados apareceu ao lado de Pedrinho, vinda de lugar nenhum. Cabelos desgrenhados; dentes amarelos e encavalados, alguns faltando na gengiva purulenta; longos braços de dedos magricelos apoiados nas paredes, curvada como uma aranha gigante; trapos rasgados; cheiro de carniça.

Pedrinho gritou e correu aos braços do pai, ajoelhado e petrificado. A figura enorme se contorcionava diante deles, parecendo não ter ossos no meio de tanta secura na qual a pele uva-passa esticava e enrugava. Velha possuída.

— Você me chamou, Fernando, agora OLHE PRA MIM!

Ela puxou a criança e a deixou de lado, contra a parede. Seu olhar maníaco tinha como alvo o pai do menino. A mandíbula de queixo pontudo se deslocou, estalou, e a bocarra se abriu como desabrocha uma venenosa flor, estendendo por entre os lábios a língua longa e gosmenta.

— OLHE PRA MIM, SEU MALDITO!

Fernando gritou. Pedrinho constatou:

Não é a vovó.

E viu o pai ser castigado pela mulher do diabo.

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