IV
Passando pelos esqueletos e o desenho de Namazu, Carol chegou ao periscópio e colocou seu olho na lente, ainda hesitante pela impressão de que todos os vidros teriam rostos malditos esperando. Não foi o caso dessa vez. Ela descobriu que o que bloqueava a sua visão na primeira olhada poderia ser a chave do mistério. Infelizmente, não teve escolha a não ser quebrar a lente com as costas da lanterna e usar o mesmo objeto para limpar os cacos de vidro, evitando rasgar seu traje. O artefato do periscópio eram dezenas de papéis enrolados em um cilindro, como um mapa do tesouro pirata. Carol lembrou-se imediatamente do conto Manuscrito Encontrado numa Garrafa, de Edgar Allan Poe. Ela começou a desenrolar os papéis e ouviu uma respiração profunda que a fez vasculhar a sala novamente. Nada.
Carol apoiou os papéis na frente do computador, pôs a arma numa ponta e apoiou a mão na outra para que eles não enrolassem de novo. A lanterna pairou sobre as folhas manchadas de sangue e revelou uma foto em preto e branco. Era a falecida tripulação, com mais de trinta pessoas reunidas na frente do submarino ainda no porto. Era possível identificar o comandante e o homem que viu com Elisa no corredor, mas sem os corpos destruídos. Na multidão, destoavam três pessoas: a única mulher do grupo, que aparentava não ser japonesa, mas ainda asiática, e dois estadunidenses, o mais velho deles com uma prótese no lugar da perna direita. A cabeça de cada um dos dois estava circulada com caneta preta, projetando setas, cada uma para um nome. Do jovem, "William", e do velho "Marshall".
A mulher também tinha uma seta se projetando dela rumo à frase em inglês "I'm here". "Estou aqui". Aparentemente, ela reuniu todos os documentos e os escondeu para revelar o que havia acontecido. Pelo sangue nos papéis, aquele foi seu último ato de bravura.
A próxima folha continha dois mapas, um do Caribe e outro do sudeste asiático, ambos com triângulos no centro. O primeiro interligava a Flórida e mais duas ilhas sublinhadas no mapa, Porto Rico e Bermudas. O segundo estava entre o sul do Japão, a ilha de Guam e as Filipinas. Carol lembrou-se de ter visto em alguma reportagem que as Filipinas eram um dos únicos países católicos da Ásia devido à colonização espanhola. Ela olhou à direita, para o cadáver com um crucifixo. O esqueleto não parecia ter muito mais que um metro e cinquenta, assim como a garota da foto. Ela era filipina, e também católica como a mãe de Carol.
Voltando o olhar para os mapas, ficou bem claro o que representavam: o Triângulo das Bermudas e o Triângulo do Dragão. Chamado pelos ocidentais de Mar do Diabo, o Triângulo do Dragão era uma zona misteriosa do Pacífico onde ocorreram diversos desaparecimentos de navios e até mesmo fenômenos ufológicos, tornando o lugar tão misterioso, embora não tão famoso, quanto seu irmão caribenho. Carol lembrou-se de ter lido sobre esse lugar em algum canto da internet. Ele foi decretado como zona de perigo pelo Japão após o sumiço de cinco embarcações. Tal qual o das Bermudas, as hipóteses sobre essa anomalia variam das mais céticas sobre tempestades, tsunamis e vulcões submersos até as mais conspiratórias sobre portais e alienígenas. Era desse dragão que o comandante fantasma estava falando.
A próxima folha era um documento de quatro páginas com o emblema da CIA. Carol não era fluente em inglês mas compreendia o bastante para ler. O documento firmava uma parceria confidencial da CIA com o governo japonês para a construção de um submarino chamado Namazu para explorar o Triângulo do Dragão e outro no das Bermudas chamado Colombo. O projeto não poderia ser divulgado a ninguém. Por isso as marinhas dos dois países negaram envolvimento com o submarino na costa baiana. O documento dizia que dois membros do exército americano, William e Marshall, seriam responsáveis por inspecionar as pesquisas e considerava a possibilidade de assassinar os japoneses envolvidos no projeto quando elas terminassem. Carol supôs que a tragédia do Namazu fez a CIA desistir do Triângulo das Bermudas.
As pesquisas explicadas no final do documento envolviam uso do eletromagnetismo para desvio de radares e invisibilidade, armas capazes de destruir embarcações ou navios inimigos replicando as anomalias e até a possibilidade de teletransporte. Tudo envolvia tecnologia militar. Era citado inclusive a possibilidade de usar essas armas numa eventual Terceira Guerra Mundial. A parte mais estranha do relatório mencionava a teoria da Relatividade de Albert Einstein e dizia que a causa das anomalias seriam distorções no espaço-tempo causadas por alguma força escondida nas profundezas do oceano, algo como um pequeno portal ou buraco de minhoca.
Carol lembrou-se dos torpedos que foram disparados e da frase "Namazu é a origem do Triângulo", mas se recusou a pensar mais sobre o que poderiam ter encontrado lá embaixo para não enlouquecer. Certas coisas devem permanecer em segredo. Preferiu continuar com a ideia de que o Namazu da frase de William era só o submarino. Segundo o relatório, uma das consequências da anomalia poderia ser a radiação. Imediatamente, pegou seu rádio comunicador. A espera durou alguns segundos até que Marcos atendesse.
- Carol, tudo bem?
- Tudo. Queria saber do motor.
- Estamos verificando a sala de máquinas e parece que não tem nenhum tipo de vazamento. Inclusive, os níveis de radiação do contador geiger estão bem abaixo do esperado. A radiação não vem do motor. Isso é bom porque significa que o submarino não vai explodir. Agora o desafio é tirá-lo daqui, mas isso é ocupação da marinha e não nossa.
- Acho que eu descobri a origem da radiação. Eu sei que vocês vão achar que estou maluca, mas eu encontrei alguns papéis presos dentro do periscópio - Carol começou a observar os arredores - Parece que uma integrante da tripulação os escondeu enquanto...
Carol parou como uma estátua quando olhou para uma das telas. Nela, havia um rosto desfigurado, não por tiros como o dos outros fantasmas, mas queimado, derretido. "Igual aos uniformes. Eles foram queimados pela anomalia". Porém, apesar da pele vermelha escorrendo como cera de vela, Carol conseguiu identificar o Capitão Marshall.
- Carol? - perguntou Marcos - O que aconteceu? Responde!
As palavras se recusavam a sair. Olhou para trás e não havia ninguém, mas o corredor emitia o dom de dois passos alternados, um normal e outro metálico, de ferro batendo no chão. Carol apontou a lanterna para a foto dos tripulantes e focou na perna de metal de Marshall. Os passos rítmicos chegavam mais e mais perto. O sonar tocou de novo, como da vez em que João foi estraçalhado.
Marcos chamou mais algumas vezes no comunicador até ser interrompido por um chiado. Logo em seguida, vieram os gritos e sons de coisas quebrando. Carol sentia-se fundida à fuselagem do submarino. Não poderia deixar mais ninguém morrer lá embaixo.
Ela deixou os papéis caírem e pegou o revólver por um instinto de proteção mesmo sabendo que não adiantaria de nada contra uma ameaça metafísica. Nunca pensou que rezaria para que um assassino fosse de carne e osso ou que estivesse enlouquecida por radiação. Os passos finalmente chegaram à sala de comando. Entre ela e a porta circular, estava o espectro translúcido de Marshall.
1203 palavras
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