Capítulo 24
17 de fevereiro de 2020.
Marina
Já faz uma semana desde que eu recuperei minha memória, e eu ainda não sei o que pensar, o que fazer com a minha vida. Após meu desmaio na praia, um senhor que tem um quiosque e que conhece a família de Murilo há muitos anos me reconheceu e acionou rapidamente meus sogros, que desde então tem me acolhido em sua casa.
Além de Roberto e Cassandra, minha filha tem me feito companhia desde que chegou aqui, mesmo que a princípio ela tenha ficado receosa de que eu iria voltar aquele estado deplorável em que me encontrava antes de perder a memória. A primeira coisa que fiz quando a vi, foi abraçá-la e dizer o quanto eu sinto por ter sido uma péssima mãe naquele tempo, do quanto me arrependo de não ter dado a ela o valor que ela merecia. Desde então, Maya tem sido meu motivo para me manter de pé, tem sido a pessoa a me tirar da escuridão quando ela tenta me puxar mais uma vez para baixo.
Agora que me lembro de tudo, posso enfim encaixar algumas peças do quebra-cabeça que virou a minha vida há pouco mais de dois anos. Após a perda de Théo, decidi me punir pelo que havia acontecido, e deixei minha casa e minha família assim que saí do hospital. Mesmo morando com minha mãe, eu nunca deixava que ela e nem ninguém se aproximasse, e me isolei em meu quarto de infância com minhas lembranças por semanas. Não conseguia comer, não conseguia dormir, não conseguia reagir.
Quando ficou insuportável pensar em tudo o que eu havia perdido, saí de casa e encontrei um bar, que comecei a frequentar com cada vez mais frequência. Eu não gostava da bebida, mas sim da sensação de torpor que ela me causava, o que me deixou viciada. Diversas vezes fui arrancada de lá por Murilo, que estava cansado de me ver naquela situação deplorável, mas assim que ele me deixava na casa de minha mãe, que me recebia aos prantos, eu dava um jeito de fugir mais uma vez. Rejeitei todos os que tentavam me trazer de volta a realidade, mesmo que eles tenham tentado com todas as suas forças. Aimee aparecia todos os dias e ficava esperando a hora em que eu iria chegar em casa trocando as pernas de tão bêbada, para em seguida ser ignorada por mim enquanto eu apagava no sofá. Minha irmã Sabrina até tirou alguns dias de licença de seu emprego para ficar ao meu lado, mas ela nada pôde fazer por mim.
Um ano após a morte do meu garotinho, quando eu estava mais uma vez no bar, percebi que um sujeito que também era frequentador do lugar me olhava com interesse. Ele não era feio, mas eu nunca tinha me interessado por ninguém além de Murilo, e sinceramente não tinha mais vontade de sentir amor, desejo, ou carinho por ninguém, principalmente quando eu estava tentando esquecer que era aniversário de morte do meu filho. Porém, quando vi meu marido entrando pela porta do bar para mais uma vez me tirar de lá, resolvi dar um basta na situação e agarrei o sujeito, acabando de vez com as esperanças de Murilo em recuperar a esposa que ele um dia amou.
Desde então tenho poucas lembranças do que aconteceu, já que após me envolver com aquele homem, que se chamava Rodrigo, fiquei ainda mais bêbada e entorpecida. Lembro apenas de alguns momentos, e na maioria dessas lembranças esse homem me batia por algum motivo, fosse ele o fato de eu não ter conseguido dinheiro para comprar mais bebida, ou o fato de eu não ter limpado a casa que agora compartilhávamos.
A lembrança mais nítida dessa época é de um dia em que eu percebi que nem a bebida conseguia mais apagar minhas lembranças, que era quando fazia exatos dois anos que Théo havia morrido. Eu não havia me permitido falar o nome dele desde que soube de sua morte, mas naquele dia eu não conseguia mais frear meus pensamentos, e todas as lembranças voltaram como uma avalanche. Eu já não suportava mais viver daquela forma, eu já não suportava mais viver de nenhuma maneira. Eu precisava dar um basta naquilo.
Quando percebi que Rodrigo estava apagado no sofá e que a chave do seu carro, que eu nem sei como ele mantinha, considerando que ele gastava todo o dinheiro que "ganhava" com bebida, estava em cima da mesa, eu não pensei duas vezes. Mesmo sem dirigir por dois anos, não tive problemas em colocar o carro na estrada em direção ao lugar onde minha vida havia acabado. Minha ideia inicial era tentar ser atingida mais uma vez naquele cruzamento que destruiu tudo, mas eu sabia que desta forma eu poderia levar alguém inocente junto comigo, e eu não queria destruir mais nenhuma vida. Me lembrei então de uma curva fechada a beira de um penhasco, que ficava cerca de um quilômetro antes do local onde perdi meu filho, e decidi que seria lá onde eu terminaria com aquele martírio.
Assim que passei reto pela curva e quebrei a proteção que havia ali, senti algum tipo de paz pela primeira vez em muito tempo, e me permiti pensar em Théo sem nenhum tipo de bloqueio. Parece que tudo aconteceu tão em câmera lenta que eu tive tempo ainda de pensar em todas as pessoas que eu havia ferido em meu egoísmo de não querer mais viver, e foi então que me arrependi da decisão de ter deixado tudo e todos de lado. Antes de o carro capotar e me levar embora, eu desejei não lembrar tudo de ruim que havia acontecido, para ter meu marido e minha filha de volta. Eu desejei esquecer. Então tudo acabou.
Agora, meses depois de eu ter tentado tirar minha própria vida, estou deitada na cama enquanto acaricio Maya, que dorme ao meu lado, e enfim percebo que eu havia pedido por tudo o que aconteceu nos últimos meses. Eu ganhei a oportunidade de recuperar uma parte da minha vida de volta, mesmo que para isso eu tenha esquecido por algum tempo de uma das pessoas mais importantes da minha vida. Ao mesmo tempo em que me sinto grata por ter ficado viva e por estar de novo ao lado da minha família, eu me sinto egoísta por desejar esquecer tantas memórias boas dos cinco anos em que Théo viveu neste plano. Desde que recuperei minhas lembranças, não tive mais aquele sonho com ele na praia, e o que eu mais desejo nesse momento, enquanto tento pegar no sono, é que eu possa sonhar uma vez mais com ele, com sua risada tão linda, com sua alegria tão contagiante, com sua presença ainda tão viva dentro de mim.
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