05
Caretos e facanitos, vindos do desfile, espalhavam-se em volta do boneco gigante erguido na eira. Um ancião tinha acendido o lume para proceder à queima que afastava tudo o que é maligno, velho e satânico, para a aldeia dar início a um novo ciclo.
O "Mega Careto" pegou fogo, mas não era nisso que Raquel prestava atenção. Os seus olhos atentavam na imagem dos pés da irmã, imóveis a alguns centímetros do solo, que dançava nas labaredas.
Várias vezes tinha ouvido sobre a perda de noção entre o real e o fantástico e sobre as experiências esotéricas daqueles que se mascaram de careto. Porém, ainda que sempre tivesse sentido pavor daquelas figuras intimidadoras e de feições demoníacas, nunca lhe tinha passado pela cabeça que algo assim pudesse vir a acontecer.
Não até Rafaela lhe confidenciar tudo.
Alfredo chegou-se para mais perto de Raquel na multidão, arrancando-a das memórias da madruga de terça-feira de carnaval de há 5 anos. Tal como naquele instante, a presença do mais velho era o suficiente para a ancorar ao presente e ela estava imensamente grata por isso.
— Com isto, a Rafa poderá odiar-me menos, esteja lá onde estiver.
Só quando sentiu os braços de Alfredo em torno dos ombros e ouviu as suas palavras doces é que compreendeu que tinha dado voz à culpa que carregava desde aquele dia. A culpa por ter deixado a irmã sozinha. A culpa por não a ter apoiado o suficiente. A culpa por não ter percebido que o peso do estigma da violação, somado ao da adoção, seria um fardo colossal para uma jovem que habitava uma aldeia tão pequena.
— Vou fazer até o impossível para que ele pague — foram as únicas palavras de Alfredo que penetraram a consciência de Raquel.
Tanto quanto se sabia, a Rafaela tinha sido o primeiro caso de violação do Bruno. Porém, definitivamente, não tinha sido o último. Uma tentativa mal sucedida no carnaval do ano anterior tinha dado aso a investigações que culminaram com a descoberta do brinco ensanguentado que Bruno tinha arrancado a Rafaela na tarde em que a violou, a coberto do seu disfarce de careto. Sem a vítima que tinha escolhido a denúncia ao silêncio eterno e sem o bizarro troféu encontrado na mesa de cabeceira, Raquel nunca teria chegado a descobrir quem era o agressor da irmã, sanando as dúvidas de ambas as Figueiredo.
Até àquele momento, tinha sido apenas "o jovem com a constelação no pescoço". Agora que tinha rosto e nome, um peso desaparecia dos ombros de Raquel, por muito errado que isso fosse.
Não curava as feridas. Não apagava os erros nem a dor. Não devolvia a vida roubada. Mas trazia algum conforto.
Tal como a Queima do Entrudo sinalizava uma transição de ciclos na cultura pagã, também Raquel sentia que o fogo diante dos seus olhos estava a sinalizar uma mudança de página.
Ainda não estava pronta para fazer as pazes com a aldeia. Ainda não estava pronta para perder o medo que tinha daquelas sinistras e angulosas máscaras vermelhas, encimadas por um capuz riscado. Ainda não estava pronta para denunciar a violência de algumas tradições ou ritos de passagem para a idade adulta, e do efeito que poderiam ter em psicológicos mais debilitados e distorcidos.
E talvez nunca estivesse.
Mas sentia que agora que o assassino de Rafaela tinha sido desmascarado, poderia finalmente começar a cicatrizar a ferida que lhe infetava a alma há meia década.
Sim, assassino. Ainda que a irmã tenha conhecido o fim pelas próprias mãos, Raquel sabia que aquilo se tinha tratado de um assassinato. Um que tivera a alma pura de Rafaela como primeira vítima, antes de reclamar a carne que a continha.
As coisas estavam longe de terminar. O caminho à sua frente seria duro, com questões legais, emocionais e psicológicas para resolver. Ainda que conseguisse contar com o apoio da família, que se tinha mudado para a cidade depois da tragédia, sabia que teria de ser forte por toda a gente.
Contudo, tinha dado um importante primeiro passo.
Graças ao seu regresso à sua aldeia natal, parte do seu passado mimetizava agora o Mascareto que ardia na eira, transformando-se em cinzas que o vento levaria para longe, permitindo-lhe respirar mais desafogada.
E isso poderia ser o suficiente para convidar a chegada de uma nova primavera.
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