🧷CAPÍTULO V: ALFINETES🧷
"Bem-vindos a um novo tipo de tensão
Que atinge toda a nação alienígena
Onde nada é feito para dar certo
Sonhos televisivos do amanhã
Nós não somos aqueles a quem você vai seguir
Isso já é motivo suficiente para brigar
Bem, talvez eu seja o viadinho, América
Eu não sigo a boiada
Agora todos seguem a propaganda
E cantam na era da paranóia" — American Idiot (Green Day)
Às vezes se questionava como seria caso nascesse com um cérebro novo. Será que continuaria tímido soltando seu sorriso com as gengivas à mostra somente quando estivesse feliz ou seria extrovertido? Distribuiria abraços? Será que conseguiria fazer mais amigos? Já tinha Jimin, mas poderia ter mais...
Mais um, somente... Não conseguia considerar Jungkook um amigo, ele não conversava muito com Jhope, mas conversar para ele não era algo fácil... bom, alguém tinha conseguido fazer ele falar até mais que o normal na noite passada...
Tudo bem, talvez três amigos? Se fosse neurotípico, talvez até mesmo seis amigos para quase lotar uma mesa de restaurante em seu aniversário? Pare de pensar nisso, volte para o trabalho...
Será que conseguiria desfrutar de mais cores em sua vida com novas pessoas? Pensava que sua forma de pensar e se comportar se limitava, às vezes, às cores. Como se a rigidez cognitiva fosse uma paleta de cores quentes com o cinza.
Será que sou capaz de ver além do cinza, vermelho, rosa e laranja? Bom, claro que sou, né? Afinal, sou autista, não sou daltônico, ou será que sou? Seu coração deu um mini salto de ansiedade com a dúvida, não pensou duas vezes, pegou o celular e anotou "fazer um teste para daltonismo na próxima semana" em sua agenda virtual.
Isso faz de mim um austita paranóico. Respirou fundo, pronto, menos um problema... ou mais um, já que o criou assim que se distraiu do seu trabalho pela milésima vez naquela manhã. Abriu o celular de novo e apagou o evento que tinha acabado de criar.
Não posso ser autista e daltônico, é como ganhar duas vezes na loteria em questão de genética e... chega de pensar, vamos voltar para esse romance clichê hétero em que uma líder de torcida vai ficar com o jogador de basquete... será que essa geração nunca vai superar que High School Musical* acabou faz anos?
Não estava se distraindo à toa, seu foco sempre o ajudava nessas horas, mas hoje... Primeiro foi o cheiro de lavanda que não sentiu na manhã de sábado ao abrir os olhos, as roupas limpas de cama só estariam prontas depois das quatro e meia da tarde, quando a maldita lavanderia abria.
Pensou em até subornar o dono para abrir antes, mas lembrou que não teria dinheiro para isso e descartou a ideia.
Paranóico, autista e pobre... daltônico não. Isso ficaria nítido na faculdade, certo? Fiz design e... se bem que todos ficavam olhando estranho meus trabalhos solos e eu sempre era criticado em grupo por conta da escolha das paletas de cores e...
Pegou o celular de novo e criou, novamente, o evento "fazer teste para daltonismo na semana que vem". Voltou a ler.
Segundo desastre: ao passar um dia com Jimin na boate para decorar o mapa do espaço e depois de noite em um encontro desajeitado, esqueceu e nem teve tempo de comprar o produto de skincare que tinha acabado no dia anterior.
Prosseguiu sem passar a sua água micelar, e como não ficar ansioso já que ela vinha antes de todos os produtos e era justamente ela que limpava sua pele? Rotina de sábado completamente destruída.
Os dois desastres eram como alfinetes em seu cérebro atiçando sua ansiedade e quase o fazendo paralisar; eram lâminas finas e cortantes, uma em cada canto de sua cabeça e perto da nuca o incomodando... o incomodariam o dia inteiro.
Mas era um garoto autista de suporte nível dois funcional**, morava sozinho, conseguia se virar melhor do que muitos e, por isso e também por conta de uma certa teimosia que fazia parte somente de seu caráter (como um típico taurino), resolveu que enfrentaria tudo isso e terminaria suas tarefas.
Mesmo não sendo muito produtivo.
Hoseok queria terminar as demandas de revisões que faltavam e nada, nem falta de roupas de cama limpas, a ausência de água micelar ou os malditos números ainda anotados no dorso de sua mão iriam estragar os seus planos
Ao abrir o notebook e sem tomar café (como sempre) começou trabalhar nos textos enviados e reler eles até não poder mais. Mas o relógio foi das nove até o meio-dia tão devagar que quase o matou.
Olhava sobre os ombros de hora em hora e encarava seu primeiro alfinete mental: a merda de sua cama. Respirava fundo e ignorava, ou tentava. Depois, quando esquecia esse elefante branco, a outra tortura começava: sentia seu rosto como se estivesse sujo.
Me sinto uma bomba relógio, a qualquer momento vou explodir de nervoso, ansiedade e... se levantou de supetão, nem ligando para os personagens que abandonou no meio da revisão, tomou um copo de suco de laranja na cozinha e depois voltou para o trabalho... Pronto, amava suco de laranja, isso o ajudou.
Tinha conseguido evitar dois alfinetes, mas um ainda maior o matava por dentro, encarou de canto de olho o dorso de sua mão. Fechou os olhos. Agora não, e tentou voltar a leitura... menos de cinco minutos, voltou a olhar a mão, fechou os olhos de novo e negou com a cabeça... agora não... mas de "agora não" e "agora não" a toda hora aquele terceiro alfinete o irritava profundamente.
E ele não vinha de nenhuma rigidez cognitiva... vinha de algo tão natural quanto o sol e as nuvens de Toronto que ousavam aparecer naquela manhã fria e invadiam seu pequeno apartamento pelas frestas quentes e alaranjadas das cortinas brancas.
Sendo autista ou não, nessa ou em uma realidade paralela, esse terceiro alfinete ficaria presente porque faz parte da curiosidade humana pensar depois de uma noite estranha e até mesmo boa: eu mando mensagem ou não? É muito cedo ou não? Devo criar algum joguinho? Demorar ou... simplesmente enviar um "oi?".
Não, "oi" seria muito seco. Talvez um "olá, como você está?". Curto e direto... e que tal um: "oi, tudo bem? Você se lembra de mim? O garoto que invadiu sua noite sem querer, surtou, correu para o banheiro e depois teve uma crise de ansiedade?". Não, isso seria demais. Como mandar uma mensagem pode ser algo tão difícil?
Nada disso teria acontecido se certos animais não estivessem brincando entre suas entranhas desde a hora que ele chegou em casa ontem de noite. Ansiedade e dúvida após uma noite estranha e cheia de borboletas no estômago, as asas grandes batiam nos cantos de seu órgão e doía... como doía.. e subiam até o peito.
É fome, só pode ser fome, não tomei o café da manhã... novamente.
A maneira de tentar racionalizar cada ínfimo sentimento não vinha de seu cérebro, vinha dele mesmo, sua essência, de seu coração medroso e tímido com qualquer coisa que mexia com ele. Sabia lidar com os alfinetes da mente, tinha aprendido nas sessões de terapia na infância e adolescência, mas os do coração...
Ninguém ensina como lidar com as coisas que fazem esse músculo pulsante tão importante palpitar mais rápido do que o normal. Isso vai além de convenções e traquejos sociais, algo que não pode ser explicado com palavras. Mas, para ele, era somente fome e ansiedade do dia por conta dos outros alfinetes.
Jhope não sabia, mas, se não tivesse nascido autista, ainda assim gostaria do cheiro de doce de lavanda; ainda gostaria de cores quentes porque refletem seu lado animado e sorridente com a vida. E ainda teria mania de racionalizar cada sentimento que tinha por medo de senti-lo de verdade.
E, claro, ainda assim seria um baita teimoso, mesmo se leis da física falassem que ele não poderia fazer algo, ele as desafiaria, afinal, detestava perder para si mesmo e adorava testar seus limites. Era um adulto funcional e se orgulhava disso. Quantos neurotípicos não conseguem fazer metade das coisas que eu faço? Muitos, essa é a resposta.
Seu apartamento sempre estava limpo e cheiroso, a cozinha arrumada, as roupas lavadas e tudo milimetricamente organizado dentro do seu quarto: a mesa de trabalho, seus desenhos agrupados em cima da cabeceira, seu notebook com a bateria carregada, seus livros organizados por cor e tamanho na pequena prateleira pendurada na outra parede.
E se orgulhava de seu mundinho particular.. o mundo poderia acabar do lado de fora daquelas paredes em tons de bege, o apocalipse zumbi poderia acontecer, e mesmo assim Hoseok se sentiria calmo e tranquilo por estar no seu esconderijo perfeito contra uma realidade desorganizada e desgastante mentalmente.
Tinha disciplina, isso vinha de sua essência, tinha otimismo, seu jeito tímido e reservado, ele poderia passar anos se questionando o que era o autismo e o que era ele mesmo, mas, para muitos próximos de sua família, principalmente Jimin, era bastante óbvio o que era um e o que era outro.
— Foda-se, consegui... — era meio-dia e ele tinha vencido a batalha até agora contra dois alfinetes irritantes — mereço uma bela recompensa por isso... — se levantou para almoçar somente doce e café na cafeteria que tinha ido no dia anterior e continuava indo todos os dias.
O grande problema é que, o que para Jhope é uma vitória, para seu cérebro é um grande esforço que cria uma maldita ansiedade e ela o invadiu por completo durante toda a manhã e isso lhe custou toda a energia que teria para o resto do dia.
Foi almoçar na sua cafeteria favorita desejando que nenhum outro empecilho o atormentasse até o dia acabar, nenhum outro alfinete aparecesse sem ser convidado (como se algum um dia fosse). Ah, doce ilusão...
🎸🎸🎸
Saiu do prédio vestido com seu cardigã rosa e andou com as mãos dentro dos bolsos, as ruas movimentadas de Toronto aumentavam seu trânsito nas calçadas à medida que ele chegava perto da rua principal da cidade que teria o metrô, os ônibus, os carros e, claro, os outdoors brilhantes e em movimento, uma réplica em miniatura da Time Square***.
Sentiu algo estranho assim que colocou os pés na rua, olhou as mesmas pessoas andando de um lado para o outro e com seus casacos de frio, alguns até mesmo com pelos sintéticos nas bordas dos capuzes, mas nem mesmo o céu aberto e os raios de sol o confortava.
Isso porque, ao invés de estarem preocupados com suas vidas e correria alheia, alguns estranhos o olhavam de forma penetrante e confusa e Hoseok notava que encaravam o seu cardigã. Ignorou, como sempre tentava fazer com esses olhares, poderia ser somente por conta da cor chamativa...
Quando atravessou a rua, olhou para cima...
O rosto que estampava a propaganda de um perfume caríssimo e masculino era irritante de tão perfeito, os olhos asiáticos, o rosto com a pele uniforme, os cabelos compridos e pretos até os ombros, parecia um modelo, mas Jhope sabia muito bem que, na verdade, era um cantor muito famoso.
As roupas de rockeiro e a imagem, ou aquilo que criou de seu encontro na noite anterior, tomou sua mente e sentiu o dorso da mão formigar. Agora não, disse para sua ansiedade crescente, olhou de novo para o outdoor e pensou... curioso como eles têm o mesmo nome.
E logo tentou, novamente, esquecer a mão com o número do telefone anotado.
🎸🎸🎸
Ao chegar na cafeteria e encarar as plantas verdes e os ornamentos em madeira clara, um ambiente vintage e gourmet que poderia se encaixar perfeitamente em feeds do Instagram, respirou fundo e sentiu o cheiro de limpeza, seu coração se acalmou e a ansiedade em seu peito começou a se dissipar.
Tentou não pensar na cena que Jungkook fez quando ele sentou na cabine na noite anterior e falou: vou embora. Tentava sempre não pensar muito, o que fazia, óbvio, ele pensar cada vez mais; era um looping vicioso e inevitável que atormenta qualquer um.
Sua fala fez Jimin protestar, resmungar e quase choramingar com um biquinho forçado na face, e Jungkook revirar os olhos, levar uma das mãos até as têmporas, apertá-las e sussurrar um: socorro, meu Deus. Era a reação automática dele toda vez que "Jhope dava uma de Jhope", como ele mesmo dizia.
Mas nem as palavras do primo ou a expressão de reprovação do companheiro dele adiantaram, Hoseok estava tão nervoso e trêmulo que saiu sem os seus fones e pegou o primeiro Uber que aceitou.
Teria que colocar na sua agenda o evento: comprar fones novos e não poderia esquecer isso por nada. Poderia pedir de volta para o estranho que conheci ontem se tiver pego meus fones... Não, não vou mandar essa mensagem.
Talvez tivesse estragado a noite do primo, mas depois tentaria compensá-lo.
Quando estava para encontrar a mesma mesa de sempre perto da janela e depois pedir sua comida, olhou que uma nova revista estava colocada no hall de entrada do local.
Inclinou o corpo para frente e viu o mesmo rosto perfeito que estava no outdoor lá fora: maxilar quadrado e com a barba feita, um olhar preto e penetrante para a câmera e um jeito de se vestir que deu até uma sensação de dejavú em Jhope: jaqueta preta.
Examinou mais a foto de Min Yoongi, o rockstar, e pensou como era curioso o estilo de roupas, imaginou que o "Min Yoongi de ontem" era muito parecido por conta do coturno preto que viu no banheiro; folheou a revista e achou a matéria principal onde fotografias de corpo revelavam outra coisa estranha: o sapato que viu ontem nos pés por trás da porta do banheiro era muito similar ao da foto.
Mordiscou as bochechas por dentro da boca, tirou a mão de dentro do cardigã rosa, pegou o celular e adicionou o número aos contatos. O nome: "Min Yoongi", juntou as sobrancelhas. Coincidências até demais, falou para si mesmo em tom baixo.
Levantou o rosto do celular, olhou ao redor e notou que algumas pessoas no café o olhavam da mesma forma que algumas o tinham encarado na rua... olhou para si mesmo se questionando se estaria, novamente, com a roupa colocada do lado ao contrário, ou até mesmo suja... mas não, tudo estava em ordem.
Sentou-se apressado na mesa, odiava receber tanta atenção, deixou sua bolsa de lado enquanto esperava sua tortinha grande de morango e café chegarem, abriu o notebook na mesa e viu como tinha progredido tão pouco nas leituras... bora, mais uma vez, para essa fanfic do Troy**** com a... sua torta e café logo chegaram.
Ficou quase duas horas na cafeteria, almoçou mal, mas tinham progredido bem mais na revisão do que antes, afinal, não tinha mais os dois alfinetes tão presentes em sua mente, ambos deixados em casa, já o do seu coração... terminou de fechar o notebook e seu celular tocou.
Seu coração disparou, poderia ser... Min Yoongi? O seu, não o da revista ou do outdoor. "Meu?", pelo amor de Deus, que pensamento foi esse? Não, impossível, ele não tinha seu telefone, se recusou a passar e... revirou os olhos, chega de pensar, pegou o aparelho e logo atendeu quando viu o nome na tela.
Jimin.
— Me desculpa por ontem e... — começou e nem ao menos pôde terminar.
— Desculpas?! — Jimin disse com a voz estridente — ora, bom dia, né? Quando a gente conversa com alguém pela primeira vez no dia, se fala bom dia, não é mesmo? Ou você dormiu e acordou comigo hoje?
— Não dormimos juntos, Jimin... — às vezes levava tudo tão a sério e se esquecia que seu primo não era a pessoa mais literal do mundo.
— Claro que não dormimos... depois que você foi embora do nosso rolê porque... pegou a porra do maior rockstar do mundo no banheiro da Love Is Blind?! — disse ele com a voz alta, brincalhona e melodiosa, parecia até estar se divertindo...
A mente de Jhope começou a ficar um turbilhão de pensamentos com o que o primo tinha acabado de dizer e com a forma como tinha dito. A imagem do outdoor, da revista, o coturno, os mesmo nomes, a jaqueta preta, pessoas o encarando, tudo estava tão confuso e frenético em sua mente que perdeu o ar.
Hoje, definitivamente, não seria um dia para "tentar não pensar", hoje seria, com toda certeza, estranhamento e dificuldades, um dia somente para pensar, pensar e pensar...
— É o que?! — E mais um empecilho, ou alfinete, para o seu dia começou. Só teria que descobrir se este seria outro da mente ou do coração.
🎸🎸🎸
*Referência à trilogia de filmes chamada High School Musical.
** Austista de suporte nível dois possuí uma dificuldade mais acentuada para vida social, o que pode causar a pouca presença de amizades em sua vida; além disso, possui comportamento repetitivo em crises de ansiedade social que podem se transformar em crises de pânico; indica necessidade de apoio em atividades do dia a dia no começo da vida e até a adolescência como comer, trocar de roupas e tomar banho. Com terapia ocupacional e comportamental nos primeiros anos de vida, isso pode ser trabalhado e a pessoa pode desenvolver uma vida mais tranquila e sem grandes entraves.
***Licença poética, a autora não sabe como de fato é a rua principal de Toronto.
****Troy é um dos personagens principais de High School Musical.
Agradeço por ler até aqui!
Comente, vote e converse comigo!
Até o próximo capítulo!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top