Stranger
"Vou buscar-te..."
"Prepara-te..."
"Falta pouco..."
A voz disse. E mais uma vez eu tremo. Aterrorizada com uma voz tão grave e rouca mas tão atraente. Num ato infantil puxo a manta por cima da cabeça, na esperança que ela não me apanhe. Na esperança que uma voz na tua cabeça não te apanhe? Cresce.
- Vai embora! - Murmuro. Sinto o suor escorrer pela minha testa.
"Nunca..."
Solto um grito. No meio da escuridão, espero que alguém me ouça. Segundos depois a porta é aberta, o meu tio agarra os meus ombros e obriga-me a sentar. O gesto é tão rápido que me dá tonturas.
- Tio, estou farta...- Digo sem pensar. A minha cara de exaustão passa a uma normalidade forçada. O que lhe vou dizer? Eu não consigo parar de ouvir vozes na minha cabeça, podes fazê -las parar por favor ? Não... demasiado ridículo e demasiado estúpido. O que faria ele ? Mandar-me outra vez para a clínica psiquiátrica ?
Encho o peito de ar e forço um sorriso falso. Terei que continuar com o meu trabalho de esconder o que ouço, o que penso, o que sonho, tudo o que me faz ser eu.
E o problema é que ele acredita, não me conhece, ninguém me conhece, ninguém conhece o meu verdadeiro ser. Ele não sabe quando estou mal ou bem, ele não sabe a raiva interior que sinto por ele, ele pensa que todos os meus sorrisos equivalem à felicidade. Não tio... não estou feliz.
"Hei de te fazer feliz"
Sinto um esticão nas costas, como se os meus ombros quisessem dar um simples beijo. Sinto como se minha pele diminuísse de tamanho, como se se formassem em camadas na minha espinha. Algo dormente viaja desde o topo da minha cabeça até aos meus pés. É uma sensação esquisita mas ... de algum modo agradável.
- Está tudo bem ? - Só depois deste pequeno episódio é que noto que o meu tio ainda está ali, especado, a olhar para mim como se fosse algum animal no zoo. Inspiro todo o ar que consigo, lutando contra todos os meus instintos que dizem para o mandar daqui para fora. Tento falar mas a única coisa que faço é manter a boca aberta e os olhos bem abertos fixos nos seus, na busca de inspiração, na procura de palavras para responder a uma pergunta tão simples mas ao mesmo tempo tão complicada. Acabo com um aceno de cabeça e mais uma vez mando um sorriso que o deixa descansado e completamente sem uma pista do quanto miserável me sinto.
Com a resposta de um sorriso tão falso como o meu sai fechando a porta, sempre com muita calma. Típico. Sou deixada de novo na escuridão.
Pondero retornar ao sono mas o medo de acordar com a mesma voz assustadora impede-me. O relógio bate as 6 horas da manhã, ainda tenho mais uma hora antes do despertador tocar. Pouso os pés no chão e sinto um arrepio forte passar pelo meu corpo inteiro, a minha pele vibra com o frio que o chão me transmite, combinado com o suor causado pelo pesadelo a secar. Acendo a luz do quarto e olho para os cabelos espalhados pela almofada, um acontecimento já habitual, nunca tive peladas ou reparei que tinha menos cabelo mas sempre encontrava os meus cabelos azuis colados à almofada. A minha tia sempre fazia inspeções ao meu couro cabeludo quando era mais pequena para perceber essa minha... condição. Pego no monte de cabelos e coloco-os no balde do lixo.
Sem saber que fazer para matar o tempo resolvo tomar um banho refrescante para me livrar destes arrepios e suores frios. Tiro a minha roupa e deixo a água correr à espera que aqueça. Os meus olhos encontram o meu corpo no espelho e não posso evitar minha imagem, levo a mãos à cabeça e tento sentir onde os cabelos possam ter partido mas encontro-os igualmente longos e escuros. Depois analiso a minha cara e assusto-me com a figura à minha frente. A minha pele está pálida ao contrário dos meus olhos que estão rodeados com uma cor mais escura, não tenho uma boa noite há anos. Os meus olhos azuis estão mais escuros que o normal, como sempre ficam quando tenho pesadelos. Também noto que a cada dia que passa estou ficando cada vez magra, eu não sei como perdi todo o apetite, em pequena era gordinha, sempre fui mas... desde que a voz se tem tornado mais intensa não consigo pensar em mais nada senão em ouvi-la
Sempre a ouvi, quer dizer, sempre o ouvi. Eu sei que é um ele, ele sempre fala comigo com carinho mas o seu tom de voz sempre me deixou alerta, como se nele houvesse malícia. E estou aqui a falar como se conhecesse a voz da minha cabeça, estou a ficar louca. Se os meus tios soubessem o que eu passo não compreenderiam, e eu sei que não porque em pequena confiei neles e contei sobre a voz, acabei numa instituição. E eu nunca na minha vida quero voltar para lá, nunca mais.
Então tenho escondido desde então. Sei que não é saudável mas eu não posso ser mais tratada como uma doente, ver os olhares de pena dos meus tios... é o pior que me podiam fazer. Desde pequena que só quero a aceitação deles, quero mostrar-lhes que sou uma miúda normal, uma filha normal, por muito que não seja filha deles.
O vapor que esconde a minha imagem do espelho avisa-me que a água está quente e finalmente entro no banho. A água que me cai pela cabeça sabe tão bem que só quero ficar debaixo deste chuveiro o resto dos meus dias. Pego no gel de banho e passo pelo corpo, até sentir a minha pele esticar de novo.
Olho para o meu pulso e sinto novamente o puxão, passo a mão por a pele, parece tão fina, é como se a água quente a estivesse a derreter. Estou a alucinar, certo ?
O meu dedo desliza pelo comprimento do meu braço, do cotovelo ao pulso, e vejo a pele se tornar viscosa como gelatina, ela despega-se e segue o caminho do meu dedo.
O meu coração dispara, é como se este corpo não fosse o meu, como se esta pele não me pertencesse. Quero gritar, pedir por ajuda, pedir que alguém me acuda e me diga que isto é normal, mas não é, eu não sou.
Por baixo da pele que sai está uma nova, não parece uma ferida, aparenta ter nascido uma muda de pele mesmo por baixo desta, pronta para ser a substituta. Desligo imediatamente o chuveiro com medo que a água quente me cause isto no corpo todo, a coisa viscosa está entre os meus dedos e pinga no chão da banheira escorrendo pelo ralo. É uma sensação demasiado esquisita.
Ligo a água no frio e tomo o resto do banho em tempo reduzido e arfando com a água gelada. Quando passo a toalha pelo meu corpo espero ver mais restos de pele a cair mas nada acontece, parece ter sido uma coisa de momento. Se acontecer de novo talvez devesse mostrar à Tia Morgan para ela ver que não sou louca.
Depois de seca, visto uma roupa simples, ultimamente não tenho vontade nenhuma de me arranjar. Contento-me com confortável.
Seis e quarenta e cinco da manhã, faço a mala com lentidão e saio do quarto sem fazer muito barulho para não acordar os meus tios e a Myra, a minha prima.
Vou até à cozinha, bebo um pouco de água e pego numa maçã preparando-me para sair de casa.
- Billie ? Já vais tão cedo ? - O meu tio está de pijama a olhar para mim, confuso.
- A Esme vem-me buscar, vamos juntas.- Minto.
Esme, a minha melhor amiga, vive do outro lado da cidade. Se me viesse buscar seria por algo extremamente importante. Devo ter parecido convincente porque ele nem sequer duvida das minha palavras, deve estar mesmo com sono. O meu tio abana a cabeça e com um bocejo na boca entra de novo no quarto.
Suspiro sabendo que fui bem sucedida com a minha mentira.
Saio pela porta e começo a andar ate à faculdade, não que seja muito longe, uns quarenta e cinco minutos a pé, que se fazem extremamente bem para alguém que está sempre com a cabeça no ar, como eu. Serve para pensar um pouco. Hoje estou determinada a tornar esses quarenta e cinco minutos numa boa hora. De fones nos ouvidos ando pelas ruas, com um passo calmo e uma mente abstraída. O meus olhos vagueiam de pessoa em pessoa que vai passando. Cada uma mais diferente que a outra. Fico perguntando-me o que têm de especial estas pessoas, será que passam ou passaram pelo que estou a passar ? Se calhar já podem ter passado por pior, quem sabe. Esse pensamento, por muito mórbido que seja, faz-me sentir melhor.
A minha visão cai num rapaz moreno que mesmo antes de eu reparar já ele me observava.
Os seus olhos penetram nos meus com tanta intensidade que a sensação na minha pele volta, ela vibra desde a minha nuca até ao fim das minhas costas. Ele tem o dobro do meu tamanho e a sua postura é intimidante, no entanto, não há coisa mais assustadora que o seu sorriso.
Um sorriso branco mas cheio de malícia.
Sei que no meio desta gente toda ele olha para mim, observa-me, mesmo depois de eu desviar o olhar. Não resisto e tenho que olhar para ele novo, e encontro-o no mesmo sítio, encostado a vitrine de uma loja que vende colchões, com uma perna alçada e os braços cruzados.
Parece estar à minha espera, mesmo não me conhecendo, sinto que ele estava ali apenas para me influenciar, para me provocar o medo que sinto.
Quem és ? Quero perguntar mas estou demasiado longe e por muito que quisesse não conseguiria obrigar a minha boca a abrir.
Viro uma curva que me esconde e me distancia daquele rapaz e aumento a minha velocidade, talvez seja melhor encurtar esta hora por metade. Acelero o passo alternando entre ver por onde ir e ver se ele me segue. E o esticão na minha espinha diz-me que ele está perto. A minha cabeça entra em alerta máximo quando me dou uns segundos para olhar para trás e o vejo a alguns passo de mim, um pé atrás do outro, sem fazer contacto visual comigo, apenas a fingir-se distraído mas eu sei, eu sei o que ele está a fazer.
O plano de andar atá a faculdade é atirado ao lixo quando vejo um autocarro a parar a alguns metros de mim, não penso duas vezes, corro ao autocarro e subo atrás do ultimo passageiro deixando o miúdo para trás. Entro, e pago ao motorista ainda tentando controlar a respiração. E, mesmo como eu esperava, ele parou.
Observo-o pelas janelas do autocarro, olha para mim com um sorriso ladeiro, vejo que o apanhei de surpresa. O autocarro começa a andar e eu sinto-me aliviada por ele não me ter seguido para aqui. Num gesto de espontânea coragem quando o autocarro se afasta levanto o braço e abano a mão como se me estivesse despedindo.
Tenho que perguntar a alguns passageiros para onde vai este autocarro e chego à conclusão que o único sitio onde poderia ir é até a casa de Esme. De todos os autocarros acabo por apanhar aquele que vai para o lado oposto a onde quero ir. Pego no telemóvel, carrego na imagem da loira e levo-o ao ouvido.
- Esme ? Ainda estás em casa ?
- Como assim ? Ainda estou na cama.- Suspiro, sempre a mesma.
- Claro que estás. Estou a ir para aí.
- O teu tio não te levou ?
- Não, vim de autocarro.- Ela faz um barulho duvidoso.- Eu depois explico.- Segue-se um som de aceitação e a chamada é desligada. Bufo olhando para o ecrã, aquela rapariga podia dormir pelo mundo inteiro.
Uns quinze minutos depois e consigo ver a casa de Esme ao longe, faço paragem e espero para sair. Os arrepios pararam por completo, como é que aquele miúdo pode ter um poder no meu corpo ? Ou seria apenas medo que me fez ficar assim ? Só a lembrança dos seus olhos me fitando curiosos fazem os meus pêlos se eriçarem.
Desço do autocarro e ando até a casa de Esme constantemente confirmando se ele não me seguiu de alguma maneira. Pego na chave que a Esme me ofereceu de sua casa e entro sem problemas, tranco a porta atrás de mim com todos os trincos. Olho para cima vendo a loira enrolada numa toalha de cabelo encharcado, ainda tem os olhos inchados de sono.
- Billie o que se passou ? - Ela pergunta preocupada e, quando vê que a sigo, anda até ao quarto.
- Um rapaz estava a seguir-me.- Sento-me na sua enorme cama fofinha. Ela deixa a toalha cair e começa a vestir-se, sem qualquer tipo de vergonhas, afinal, já nos conhecemos desde pequenas.
- Era bonito ? - Ela pergunta distraída com a roupa que irá vestir.
- O que é que isso interessa? - Fecho os olhos e consigo vê-lo, observando-me atentamente.
- Interessa porque se calhar ele só queria pedir o teu número.
- Esme, ele não queria nada disso. Eu vi nos seus olhos... ele queria me mal.- Ela faz um gesto com a mão que me diz que pensa que estou a exagerar.
- Pensas sempre que todas as pessoas são más. Assim não conheces nenhum rapaz para namorar.- Desisto imediatamente do assunto, estou a dar a imagem de menina louca de novo e eu não quero isso. Vou me contentar apenas com o facto de estar a salvo na casa de Esme, isso já é bom. Ela olha para mim suspeitando o tempo do meu silêncio.- Hoje é sexta miúda, vamos sair e divertir-nos !
- Não sei se estou afim.
- Claro que estás. Vamos arranjar um homem para foderes e logo esses medos vão embora.
- Esme ! - Grito ao ouvir a sua linguagem obscena. Ela ouve o que diz sequer ?
- Billie ! - Ela grita de volta frustrada.- Há quanto não ficas com alguém, não te divertes com um rapaz que nunca mais vais ver na vida ?
- Já faz um tempo.- Olho pela janela pensando, já se passaram uns bons meses. Mas a minha cabeça não está num bom lugar, não posso distrair-me com rapazes.
- Eu sabia. Hoje vamos sair.- Abro a boca pronta para negar a sua ideia.- E nem penses em dizer não. Vamos sair, vamos beijar uns rapazes e sair da festa completamente enfrascadas.- Ela dança pelo quarto cantarolando uma batida que desconheço. É a única pessoa que realmente me consegue fazer sorrir.
Finalmente ela escolhe o que vestir e termina de se arranjar. Está especialmente bonita hoje, com os seus saltos agulha pretos e vermelhos, uma blusa decotada e um casaco de couro.
- Pensas que está tempo de praia ? - Falo ao comparar a minha roupa com a dela.
- A minha mãe sempre me ensinou em sair para impressionar. Nunca se sabe quando vamos conhecer o príncipe dos nossos sonhos.
- Então o Caleb é o quê ? - A imagem do moreno de olhos verdes com quase dois metros aparece na minha mente. Só o sorriso dele faz com que metade das raparigas e rapazes da faculdade se derretam, e mesmo assim, ele só tem olhos para a Esme. Se ele não é o príncipe dos seus sonhos então não sei quem seria.
- Não sei ainda.- Ela leva a mão ao queixo e sorri. Eles não assumiram e a Esme deixa isso bem claro.- Mas vais me dizer que se aparecesse o Leonardo DiCaprio à nossa frente não corrias para ele ? Esse sim é um príncipe.- Ela olha para mim dos pés a cabeça e faz uma careta.- E tu pensas que o vais conhecer vestida assim ? Tenho que te levar ás compras.- Não me sinto ofendida com o seu comentário, já o recebo há muitos muitos anos, mas a verdade é que eu não sou assim, nunca fui.
Então não mudaria a minha maneira de vestir para roupas decotadas e saltos onde não consigo sequer dar um passo sem cair de cara no chão só para conhecer alguém.
Se o tal príncipe dos meus sonhos aparecesse é bom que aceite as minhas roupas largas e confortáveis. Esme pega na sua mala extremamente cara e dirige-se ao carro. Tudo nela expira dinheiro e luxo, os seus pais são estupidamente ricos. Ela dos pés à cabeça vale mais que todo o meu armário.
- Estou bem assim, obrigada.- Digo ao entrar no carro. Ela dá um dos seus famosos suspiros e carrega no botão para ligar o carro.
- Hoje vou fazer-te parecer uma modelo.- A Esme fala com toda a determinação e eu sinto-me imediatamente arrependida de ter vindo aqui.
Em vinte minutos chegamos à universidade e andamos ate à primeira aula, Direito Constitucional. Todos os dias penso em como nós as duas chegamos aqui, a Esme e eu podemos ser muito diferentes no resto mas em termos de objetivos e determinação sempre fomos iguais. Sabíamos que queríamos ser alguém e por alguma razão ambas tivemos o chamamento pelo Direito, e eu tenho tanta sorte por ter a minha melhor amiga comigo no mesmo curso. Especialmente porque seria difícil fazer amigos sem ela.
- Oh, não.- Ouço a Esme ao meu lado e mesmo antes de me aperceber já o Caleb está agarrado a ela.- Caleb ! - Fala com uma voz de entusiasmo nada convincente.- Mesmo a pessoa com quem queria falar.- Esme agarra a minha cintura e sorri malicioso.-Precisas de arranjar um rapaz para ela ficar hoje. Vamos sair.- O Caleb olha para mim com o mesmo sorriso malicioso, o arrepio das minhas costas voltou acelerando o meu coração. O que se está a passar ?
- Eu não preciso de ninguém.- Abano as mãos para que ele tire a ideia da cabeça imediatamente. O moreno solta um risada rouca e eu sei que me vão meter em sarilhos.
- Tenho a pessoa perfeita para ti.
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Espero que tenham gostado !
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Beijo
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