A day with the wrong brother
A sua voz é arrepiante, fico imediatamente assustada. O medo no seu olhar diz tudo, ele está preocupado. Quem é este Alfa e porque é que o rapaz mais forte que já conheci tem este receio todo por ele ?
- O Alfa ? - Sussurro as palavras. Os nossos rostos ainda tão próximos, a sua respiração batendo na minha pele, os seus olhos que gritam "Foge!" deixam-me num estado frenético. Estou nervosa, sinto que acabei de cometer o maior erro da minha vida ao desafiá-lo.
- Sim. É ele o...rei da nossa espécie, digamos.- Largo-me do seu aperto e levanto-me. Ainda há pouco descobri que não sou a única, existe outra pessoa como eu, e agora dizem-me que existe um chefe para a minha espécie ? Espécie ? Há semanas era apenas eu, a Billie, com um pequeno problema de poder trocar de pele, dentes e unhas e agora faço parte de uma comunidade que não conheço. Que nunca pensei conhecer.
Levo as mãos à cabeça, puxo os cabelos com força suficiente para perceber que isto tudo é real. Não é um dos pesadelos, o Ty está aqui à minha frente, com uma expressão de tristeza e confusão que me deixam ainda mais nervosa.
- Espera.- Como um flash, aquele homem loiro de olhos azuis aparece-me na mente.- Aquele homem de fato.- Ele abana a cabeça mal o menciono.- Não, não pode ser Ty, não pode.
- Billie, ele é o Alfa. Foi ele que orquestrou todos os sonhos que nós os dois tivemos.
- Não. Tu não estás a perceber. Eu ouço-o.- O seu olhar, que antes evitava o meu, cai em mim.- Na minha cabeça. Eu só o vi quando os sonhos começaram.
- Sim, eu também comecei a ouvi-lo quando senti as mudanças.
- Eu ouço-o desde que me lembro.- Parece que premi um botão que não devia, ele fica nervoso, suspira alto.- O que estás a esconder de mim Ty ? Eu tenho que saber, eu preciso de saber o que vai acontecer ! - Rapidamente ele se levanta e tapa a minha boca.
- É de noite e os teus tios estão a dormir, podes calar a porra da boca ? - Rolo os olhos, com toda esta situação ele está preocupado com o barulho. Tiro as suas mãos dos meus lábios.- Eu conto o que tenho que contar. Para que te mantenhas segura, percebeste ?
- Ah, agora queres proteger-me ? Quase me mataste naquela casa de banho.
- O plano foi assustar-te, não matar.- Senta-se de novo na cama e tira o casaco que estava a usar até agora.- Eu só queria que te afastasses de mim, mas ele... ele descobriu na mesma.
- Descobriu o que ?
- Que nos conhecemos. Que sabemos o que cada um de nós é.- Ele gesticula com as mãos em pânico e bufa alto.- Nunca vamos escapar.
- Qual é o problema de nos conhecermos ?
- O problema é que ele queria uma competição, entre nós. Para ver o teu... potencial. E se tivesses continuado a morrer ele ia desistir ! Mas tu tinhas que puxar uma de esperta e arruinaste tudo ! - Ele levanta a voz claramente irritado.
- Como é que era suposto eu saber ? Tu não me explicaste nada! Só me magoaste. Eu pensei que eras tu a brincar comigo.
- Eu ia explicar ! Eu fui ter contigo a casa do Justin, foi o primeiro pesadelo, e eu soube imediatamente o que ele queria. Eu queria falar... mas não me deixaste ! - Foi para isso que ele veio ter comigo a casa do Justin ? Ele disse que precisava de falar comigo mas nunca pensei que seria isso, e nunca, num milhão de anos adivinharia que fosse porque um homem que se intitula o dono de todos os que são como eu me quisesse testar. Quem é este homem e porque é que ele quer fazer isto comigo ?
- Tu... magoaste-me. E disseste para me afastar... eu... tinha medo.
- De mim ? - Abano com a cabeça.- Não parecias ter medo quando me mataste.- Ele levanta o pescoço para poder ver os estragos que causei.
- Isso é diferente, são sonhos. Só te consegui matar porque me imaginei forte o suficiente para fazer isso.- Ele ri-se baixinho.
- Essa força é real Billie. Todos temos, é uma das regalias de um metamorfo.
- Um quê ?
- Um metamorfo. É o que tu és.- Ouvir o seu rótulo faz um suspiro sair pela minha boca sem permissão. Saber que há um nome para o que sou, saber que não fui a única a passar por aquela dor, e muitos mais passaram por ela faz-me sentir tão... surpreendentemente aliviada. Não quero nem tenho que passar por isto sozinha. Existem pessoas como eu. E temos um nome.- Naquela noite, quando me agarraste o pulso, ele ficou pisado, ficou inchado durante horas. Essa era a tua força, não a que sonhaste que tinhas.
Porque é que sinto que tudo isto se está a tornar demasiado real para eu aguentar ? Ser esta criatura era uma coisa minha, uma coisa que pensava poder esconder, uma pequena grande situação pela qual tinha que passar mas que podia muito bem omitir do publico. Mas aqui está o Ty, a arrastar-me para dentro de uma espécie quando eu sou apenas uma humana anormal.
Mudanças de cor de olhos, de pele, de dentes, de unhas, visões de memórias de outras pessoas, arrepios, sonhos que me afetam na realidade e que podem ser partilhados. E agora tenho força sobre-humana? Faz parte de uma criatura como eu.
Mas eu sou só eu, uma humana confusa, com alguns problemas dermatológicos, mais nada. Não quero fazer parte de um grupo, nem quero ser perseguida por um tal de Alfa nos meus sonhos.
Caio de joelhos no chão do quarto. É demasiada informação e eu não consigo processar tudo de uma vez.
- O que é que fazemos ? - Sussurro nem sequer olhando para ele.
- O que temos feito.- Fito-o confusa.- Tu continuas a fingir que está tudo bem. E eu... mantenho-te segura.- Ele junta as mãos e aperta-as uma na outra como se estivesse a pensar demasiado.
-Vais continuar a seguir-me então ? - Ele parece surpreendido.- Sim, eu notei. É um pouco difícil não reparar quando sinto um arrepio cada vez que estás por perto.- Sento-me no chão e encaro um ponto na parede.- O que é que ele pode fazer ?
- Bem, agora que agiste... Ele não vai desistir. Vai tentar chegar até ti. A bem ou a mal.- Tenho mais umas quinhentas perguntas mas neste momento não consigo formular nem uma na minha cabeça. Tenho um medo que não consigo controlar, ele toma conta do meu coração e deixa o resto do meu corpo em alerta. Eu não sei o que ele pode fazer comigo, mas sei que ele é um ser forte senão não seria o chefe de nós todos. Não quero que ele me tire da minha família, não quero que ele me obrigue a estar com ele. Eu sou só... eu. Mais nada.- Eu tenho que ir.
- Não.- Levanto-me num pulo e agarro o seu braço, apanho-o de surpresa com o meu toque repentino.- Por favor, eu não quero que ele me leve Ty.- Estou mesmo a pedir ajuda a este rapaz que já me magoou tanto? Não tenho nenhuma memória boa vinda dele, então porque é que sinto que agora que ele me contou que me está a tentar proteger e me disse o porquê de me ter ferido posso confiar nele ? Posso estar a cometer um enorme erro, mas a quem vou pedir ajuda ? Só ele compreendo o perigo.
- Não te preocupes.- O seu braço passa pelo meu ombro e puxa-me contra o seu peito.- Eu fico por perto.-Ele dirige-se à porta do meu quarto.
- Ty.- Ele vira-se para mim de novo.- Como é que vais sair daqui?
- Da mesma maneira que entrei.- Lá está aquele sorriso sarcástico. Do bolso tira uma chave, igualzinha à que tenho.- Vejo-te amanhã.
(...)
- Estou a avisar-te Esme, se não estiveres pronta quando eu aí chegar eu arrasto-te até à faculdade! - Grito para o telemóvel e ouço-a protestar do outro lado.- Vou sair agora, quero-te de pé. Não vou dizer de novo !
- Ah, cala-te Billie, deixa-me dormir.- Ela resmunga, sei que ela deve estar cheia de sono e com muito pouca vontade de aturar a pessoa que for mas ela tem que voltar à sua vida, tem que voltar a ser aquela rapariga cheia de vida ! Se ela não voltar ao que era terei que ser eu a colorida desta amizade e essa imagem não me fica nada bem.
Depois de mais umas quantas ameaças pareço ter ganho a batalha, acho que ela finalmente se levantou mas só posso confirmar essa teoria quando lá chegar. Ponho a mochila ás costas e preparo-me para a viagem de autocarro até à casa da Esme, não vou ter boleia do meu tio hoje. Tem sido assim ultimamente, ele trabalha de sol a sol, raramente o vemos.
- Billie ? - Ando na direção da voz de Myra que me chama. Ela está à porta com sorriso enorme e brincalhão na boca. Ela abre o resto da porta e eu só quero dar uma murro na cara desta figura gigante à nossa frente.
- Não. Tu não vieste a minha casa.- Ando rápido até ele e empurro o seu peito, ele só me responde com um sorriso.
- Eu só estava a falar com a tua irmãzinha...
- Tu não falas com ela, não olhas para ela, nem sequer penses nisso ! - Olho para trás, para onde Myra está, ainda segurando a porta com uma expressão divertida.- Fecha a porta Myra, não é contigo.- Ela solta uma risada.
- Então não ficaste contente com o Justinzinho ? - Como é que ela sabe disso ? A minha tia foi a única a vê-lo.- A mãe contou-me.- Ela põe a língua de fora.- Deixaste-o por essa girafa ? Pensava que tinhas melhores gostos.- E mesmo com o insulto, o Ty solta uma gargalhada.
- Fecha a porta Myra ! - Grito, e ela obedece contrariada.
- Gosto dela.- O Ty fala ao meu lado ainda no meio de risadas.- Tem sentido de humor, ao contrário de certas pessoas.
- O que estás a fazer aqui ?
- Vim buscar-te.
- Vais levar-me à faculdade ?
- Não. Melhor. Quero levar-te a um sitio.
- Eu não vou contigo a lado nenhum. Eu tenho aulas.
- Falta.- Com as mãos nos bolsos olha para mim como se fosse algo simples. Como se eu fosse faltar por causa dele.
- Não vou faltar por ti. De qualquer maneira eu tenho que ir a casa da Esme.- Só o nome da Esme faz o seu corpo encolher-se.- E eu ainda não me esqueci do que lhe fizeste por isso... eu vou sozinha ok ? - Começo a andar pelo passeio sendo perseguida por ele.
- Deixa-me levar-te.- Ele alcança-me e põe-se à minha frente, parando-me.- Eu prometo que fico dentro do carro.
- Eu vou no carro dela para a faculdade.
- Eu sigo-vos.- Olho-o incrédula.- Sabes que precisas de proteção. Então não sei porque não queres a minha ajuda.
- Eu não precis...
- Billie! - Interrompe.- Eu vou levar-te. Ponto. Agora entra no carro.- Só o facto de ele pensar que manda em mim enfurece-me ao ponto de querer não aceitar a sua ajuda, por muito que precise dela. Mas a razão acaba por ganhar, seria um alvo fácil se não o tivesse por perto, para além disso tenho a sensação que ele só me seguiria para dentro do autocarro, isso só significa mais tempo com ele, coisa que estamos a tentar minimizar a todo o custo.
Entro no seu carro sem mais nenhuma palavra, ele tratou-me como uma criança, como se mandasse em mim e eu comporto-me como uma ao amuar.
- Desculpa ok ? Eu não queria falar assim. Só queria que viesses comigo, é mais rápido.- Liga o carro e faz o caminho para a casa da Esme, eu não preciso de lhe dar direções, é óbvio que ele sabe onde é, cretino. As vezes que ele deve ter ido lá fazendo se passar por Caleb, tirando proveito da Esme.
- Onde querias levar-me ?
- Ainda quero. Não é porque te vou levar à Esme que não te vou pegar quando acabarem as aulas.
- Ty... eu não quero ir contigo a lugar algum. Por muito que tenhamos esta... condição em comum, não quer dizer que nos conheçamos. Ok ?
- É justo.- Ele abana a cabeça concordando comigo, mas ele não está convencido, ainda está com a mesma ideia na cabeça.- E se eu dissesse que... vai ajudar-te com a tua... condição ? - O que quer ele dizer ? Que me vai ajudar a controlar as minhas mudanças ? Talvez me ajude a não me transformar cada vez que fico demasiado concentrada no Justin, ou quando fico com raiva, ou o que seja o meu gatilho que me faz trocar de pele.
- Estás a falar a sério ? Ou só estás a tentar convencer-me ?
- As duas.- Dá uma risada e os seus olhos verdes fitam-me.- Vá lá, prometo que não dói. E se calhar ainda te divertes.
- Se for mesmo para me ajudar...
- Estás a dizer que sim ? - Agora parece entusiasmado.
- Talvez.- A sua boca abre num enorme sorriso.- Mas não fiques com muitas esperanças.
Não muito tempo depois chegamos a casa da Esme, mentalmente agradeço por ter aceitado a boleia, a esta hora estaria no autocarro e nem a metade do caminho. A porta abre-se e de lá sai Esme, perfeitamente arranjada, pronta para levar com o que a vida lhe atirar.
A maneira de ela se levantar depois de um choque é simplesmente incrível e eu admiro-a muito por isso.
Eu fui a única a ver a Esme de pijama a chorar pelos cantos de bochechas vermelhas e com sacos enormes debaixo dos olhos. Num entanto, por muito bonita que esteja, amaldiçoo-a por ter saído de casa quando lhe disse para esperar por mim. Os seus olhos encontram-me, e ela rapidamente anda até ao carro com um sorriso deslumbrante.
- Não quero nem sequer uma palavra trocada. Percebeste ? - Sussurro para Ty que sorri com a minha ameaça. Ele não me leva a sério, mas talvez devesse. Saio do carro antes que ela chegue até mim.- Vamos ? - Confusa, olha para o Ty, e depois para mim.
- Aquele é o irmão do Justin? - Ela esquiva-se de mim e estende a mão pela janela do carro tentando chegar a Ty, ele aperta a sua mão e sorri.- Olá, tu és o irmão errado, o que estás aqui a fazer ? - Pelas suas costas pouso o dedo nos lábios para que Ty me veja, ele percebe, tem que estar calado.
- Eu vi a Billie na rua e perguntei se ela precisava de boleia.- Outro olhar ameaçador na sua direção.
- Que simpático. A ajudar a cunhada.- O Ty solta um risinho que não encaixa nem um pouco na sua figura.
- Chega de conversa. Estamos a ficar atrasadas Esme.- Aquele sorriso tímido estampado da cara do Ty evapora mal os nossos olhares se cruzam, é o meu ultimo aviso, este é o mais próximo que ele vai estar de Esme, nunca mais terá essa chance, ou eu não me controlarei. Ela pode não saber mas eu sei o quanto ela o magoou.
- Jesus, tanta pressa Billie.- Finalmente ela se afasta da janela e fica ao meu lado.- Obrigada por a teres trazido sã e salva, e um pouco stressada mas eu dou um jeito nisso.- Ela pisca-lhe o olho e novamente a reação de Ty é hilariante, parece uma criança, ri-se como se fosse a primeira piada que ouviu na vida. Com um aceno de mão ele vai embora, graças a Deus, não sei quanto mais tempo aguentava isto.- Então Billie ? Estás a tentar guardar os irmãos para ti ?
- Não quero ter nada a ver com este irmão, acredita. Só aceitei a boleia por cortesia.
- Claro que sim.- Ela ri, dando cotoveladas na minha barriga.
- Não te aproximes dele Esme, estou a avisar-te.- A Esme rende-se, entra no carro e levanta as mãos.
- Ok ok. Até parece que ele faz parte de uma seita ou assim.
- Ou pior.- Sussurro para mim mesma. Acho que ela não me ouve. Sabe-se lá das coisas em que ele está envolvido, eu não o conheço, não sei o que ele faz, não sei nada sobre ele para além de que ele consegue transformar-se em qualquer pessoa pela sua memória. Só isso faz com que seja 100% mais perigoso.
Então o que estás a fazer com ele?
É uma boa pergunta. Por muito que me queira afastar dele e do que ele significa eu não posso, estou demasiado curiosa, e não consigo simplesmente fechar-me no quarto e passar anos a tentar controlar a minha pele quando alguém como eu me pode ajudar. Por muito detestável que seja tenho que engolir o sapo e conviver com ele.
Agradeço a Esme por não tocar mais no assunto, ainda bem, ela ficou convencida que ele me tinha apanhado a meio do caminho quando realmente me veio buscar a casa, de propósito, para me levar para outro sitio.
Consigo distraí-la minimamente durante toda a manhã, no final das aulas ela não se foi abaixo e tem o seu sorriso intacto, considero-me uma vencedora.
"O que vais fazer hoje?"
Vejo a mensagem do Justin saltar para o ecrã enquanto escolhia uma musica para ouvir. Eu não posso dizer a verdade, ele não aprovaria e não perceberia. A Esme não sabia que foi ele que me magoou, ele sabe, e pode magoar o Ty se souber, ou pode parar de falar comigo. Eu não quero isso, por isso resolvo mentir.
Digo que vou sair com a minha irmã, a Myra, porque ela precisa de um vestido para um aniversário. O que não é bem mentira, porque vou fazê-lo, amanhã.
Sinto-me imediatamente culpada, ele não merece que eu lhe minta, não merece que eu o engane desta maneira mas que escolha tenho eu ?
Ele não sabe o que eu e o seu irmão temos em comum, não percebe a ligação que possuímos. Ele nunca entenderia. Ele acredita que eu vou fazer o que disse que ia fazer, não duvida de mim, nem tem razões para tal, ele nunca pensaria que eu ia sair com o seu irmão. A sua simpatia só me faz sentir pior. Sinto que o estou a trair de certa forma.
E para me fazer sentir como se uma grande pedra me tivesse caído nas costas, está ele. Dentro do carro vermelho que faz demasiado barulho, procurando por todo o lado para me encontrar no meio de todos estes estudantes. Enquanto ando na sua direção confirmo que a Esme não está por perto, levei-a até ao carro que está no parque de estacionamento para os que andam nesta faculdade para ter a certeza que ela sairia primeiro que eu. Entro no carro de cabeça baixa e espero até ele conduzir para longe.
- Tens vergonha de mim monstrinha ? - Ele começa a conversa fazendo troça de mim.
- Não me chames isso.
- Oh vá lá.- Ele dá uma cotovelada no meu braço.- Não é isso que somos ? Monstros ?
- Sei lá o que somos.- Sussurro mas ele ouve-me, ouço a sua risada.
- Ok. Então conta-me o que fizeste até agora.- Olho para ele confusa. A sua barba foi cortada desde esta manhã, e veste outra roupa.- Tornaste-te no Justin, isso eu sei. E mais ?
- Bem...- Fecho os olhos lembrando-me dos momentos tristes e assustadores pelos quais passei. Não quero pensar neles.- Eu... mudei a cor dos olhos só, e um pouco do braço.
- Só isso ? - Ele olha-me de sobrancelha levantada.- Mais nada ? Não tentaste mudar ?
- Porque quereria mudar ? Foi tudo sem querer. Naquela noite em que me tentaste matar ia me tornando em ti mas consegui controlar-me. É tudo sem querer.- O Ty abana a cabeça, como se tentasse perceber tudo o que lhe digo.
- Ok então... Eu vou ajudar-te a mudar ok ? A controlar.
-Mas isso vai doer.- O meu corpo inteiro encolhe-se com o pensamento daquela manhã em que senti todo o meu interior mover-se. Foi agonizante e não sei porque é que alguém quereria passar por isso múltiplas vezes.
- Vai deixando de doer com o tempo. No inicio é horrível, passado um tempo melhora. Para além disso, já tens uma vantagem.
- O que queres dizer com isso ?
- Ninguém no seu inicio não sente a mudança. Tu não sentes durante a noite, e demoraste minutos a mudar de volta para o teu corpo. Na minha primeira vez passei horas a sofrer, horas...- As suas palavras arrastam-se e ele sente dor com a memória. Eu não sabia que o que eu passei podia ser pouco para outros.
- Lamento por isso... sei o quanto dói.- Baixo a cabeça, e ele abana a sua, como se estivesse a tentar apagar a imagem que lhe passou pela cabeça. Vendo que falar sobre isso o magoa decido mudar o assunto.- Então o que vamos fazer hoje ? - Ele aponta para o porta luvas, que eu abro.
- Tira essa caixa.- E é isso que eu faço, tiro a caixa de madeira e abro-a. Lá dentro tem pelos menos uns vinte cartões de identidade, todos diferentes, de crianças, homens e mulheres, até de idosos. Com uma mão no volante e a outra na caixa tira 3 dos cartões e entrega-mos.- Temos aí três pessoas. Escolhe uma.
- O que é isto ? Um jogo ?
- Podes pensar nisso como um jogo.- Ele ri.- Escolhe e depois vês.
- Não Ty, isto é roubo de identidade.- Pouso a caixa no meu colo, não posso escolher alguém para que ele se torne nessa pessoa, não é justo. Não gostava que fizessem isso comigo.
- Billie vai ser divertido, eu prometo. Nós temos esta capacidade incrível e tu não queres aproveitar por ser um roubo de identidade.- Ele bufa frustrado.- Ok. E se eu disser que todas essas pessoas são más ? - Ele tira um dos cartões da minha mão. Mostra um homem, nos seus trinta e muitos, talvez quarenta.- Ele bate na mulher.- Pega noutro que mostra uma mulher, não consigo identificar a sua idade, parece ter a cara estragada e a pele à volta dos seus olhos é mais escura.- Toxicodependente.- E por ultimo, um homem nos seus 60 anos.- Esse... não sei. Ele tem um jato privado e eu ainda não andei nele.- Olho para ele duvidando. Por muito más que as pessoas sejam não quer dizer que mereçam que alguém se faça passar por elas.
Olho para cada cartão, sei que é errado mas o Ty tem a sua razão, o meu único poder nesta terra é poder transformar-me em quem eu quiser, e não posso aproveitar a única vantagem que eu tenho na vida ?
Talvez não faça mal, afinal, é só uma vez.
Olho para aquelas caras à minha frente, os dois homens e a mulher. Não sei o que escolher e sinto-me mal por ter que o fazer, por isso baralho os três cartões com os olhos fechados, pouso no meu colo, e de olhos fechados pego no primeiro em que a minha mão toca.
Quando os meus olhos se abrem encontro-me com o homem de olhos pretos e cabelo castanho, que me fita arrogante e que pelo que o Ty diz... maltrata a mulher. Estou analisando a sua face quando o seu cartão me é retirado da mão.
- Boa escolha. Já me diverti muito com este.- A sua risada alta deixa-me desconcertada, há quanto tempo ele faz isto ? E não se sente minimamente culpado?
- E como é que isto funciona ?
- Hoje vamos fazer algo simples, vamos só... relaxar.- O caminho é um pouco longo, saímos do centro, deixamos de ver as casas e prédios e começamos a ver os campos enormes e as casas solitárias rodeando-os. O Ty estaciona num terreno onde ainda não vi nenhum carro passar, à beira da estrada.- Ok. Está na hora.- Transmite-me um sorriso perfeito e em vez de sair do carro e passar para os bancos de trás, passa pelo meio do carro, meio desajeitado e cai nos assentos de passageiro. Pega numa mala preta e de lá tira um saco do lixo e roupas.
- Vais mudar aqui ?
- Ninguém nos vai ver. É rápido.- Ele dá de ombros enquanto abre o saco do lixo preto.- Eu levo-te pelo processo ok ? - Abano com a cabeça mas continuo confusa. Como é que ele me pode explicar uma coisa que eu só saberei fazer quando sentir ? Não posso só seguir regras ou maneiras de fazer e de repente saber controlar. O Ty fecha os olhos por uns segundos e quando os abre eles estão completamente negros.- Vês ? Fácil. Basta visualizar. Quer tentar ? - Os seus olhos profundos me fitam expectantes.- Não tenhas medo. São só os olhos, só tens que pensar numa cor e ela vai aparecer.- Ele parece ter tanta confiança em mim, mais do que eu tenho em mim mesma. Todas as vezes que mudei foram acidentes, foram momentos em que me deixei levar por emoções, como é que eu posso controlar isto através dos meus sentimentos.
Concordo e fecho os olhos. Sinto um arrepio percorrer-me a espinha e fico insegura. Não quero sentir dor, quero apenas mudar os olhos, nada mais.
Decido concentrar-me numa só cor, a cor castanha, a cor dos olhos do Justin. Se eu me deixar levar pelas minhas emoções talvez funcione. As vibrações do meu corpo intensificam há medida que me concentro mais e mais nos olhos do Justin, e apenas nos seus olhos. Quando os abro novamente para encarar o Ty sei que consegui, mesmo que não consiga me ver.
Ele parece surpreso em ver a cor mudada, mas não diz nada, apenas abana a cabeça, orgulhoso.
Ele tira a camisola que usa e encolhe-se, os seus pelos eriçam-se. De olhos fechados começa com gemidos pequenos que aumentam até eu ver a sua pele escorrer para cima do couro dos assentos. Não parece colar, parece apenas deslizar do seu corpo. Um pedaço de pele cai, ele agarra nela e põe-a no lixo. Deve estar tão habituado à dor... é incrível.
Quando ele tira as calças desvio o olhar e ouço-o rir baixo no meio dos gemidos de dor. Sem puder ver os sons são ainda mais arrepiantes, os dentes e a pele caindo, os ossos esticando e encolhendo. Não sei como é que ele pode querer passar por isto.
Quando olho para trás um novo homem está à minha frente. Ele é mais velho que o Ty, tem o cabelo castanho mas já tem várias madeixas brancas, tem um nariz exagerado, os olhos penetrantes e uma expressão que diz que é o rei deste planeta.
Observo-o enquanto ele se senta ao meio lado e começa a conduzir de novo, ele não está vestido como o Ty estava, usa uma camisa branca com riscas azuis para dentro das calças e uns sapatos que parecem extremamente caros.
A mansão onde entro não pode ser real, parece ser tudo um sonho. Nunca vi uma casa tão grande. Tivemos que entrar por um portão e para chegar realmente à casa foram precisos pelo menos 2 minutos de carro. O homem é rico, é mais do que rico, ele poderia comprar tudo o que quisesse, tudo o que nos rodeia é tão extraordinariamente luxuoso que por momentos longos sinto inveja das suas riquezas.
Em frente à casa tem uma piscina gigante com um escorrega, uma fonte e ainda um jacuzzi. E a casa... oh a casa... mobilada perfeitamente, com vários andares e salas que saem da minha conta.
- Onde é que o verdadeiro...- Olho para o cartão.- Charles... está ?
- Viagem de negócios. Investiguei bem para ter a certeza que ele, ou qualquer um dos cartões que escolhesses, estaria longe.- Aquela cara estranha fita-me com um sorriso enorme. Ele guia-me pelo que penso ser o quarto principal, que é maior que a minha casa.- Podes fazer o que quiseres, comer, ir à piscina, ver um filme na sala de cinema, ou divertires-te na sala de jogos. Escolhe.- Ele dirige-se a uma cómoda e faz força para a empurrar.
- O que estás a fazer ? - Quando a cómoda se move vejo um cofre na parede. O Ty digita uns números e de repente, o cofre abre.- Como é que sabes...- Ele olha para mim confuso. Claro que ele sabe, ele não está só na sua pele mas sim na sua cabeça. Depois de uma risada alta tira algumas notas e mete-as ao bolso.- Ele não vai notar a diferença ?
- Ando a fazer isto há meses, nunca tiro muito, e ele nunca percebeu. Uma das regalias de ser rico, não tens que contar os trocos.- Ele ri mais uma vez.
- Isso não é certo.- Digo o óbvio e vejo-o rolar os olhos. Mas é verdade, não é correto fazer isto ás pessoas por muito más ou ricas que sejam.
- Vive um pouco Billie. Não é como se ele sentisse a falta.- Abro a boca para falar mas ele me corta.- As câmeras estão desligadas, não há qualquer empregado hoje, ninguém saberá de nada. Aproveita.
- Mas...
- Billie ! - A sua voz sai alta e grossa, dou um pulo com a subida de tom.- O que importa ? Se ninguém saberá, o que importa ? Eu é que tenho que passar pela dor, quero dar-te um dia agradável, queria mostrar o que gente como nós pode fazer...- Ele aproxima-se.
- É isto que podemos fazer ? Fazer de conta que temos outras vidas ?
- A única coisa que podemos fazer ! Falas como se nunca tivesses pensado nisso.- Outro passo na minha direção, o meu corpo sente o mesmo medo que teve quando ele me assustou na casa de banho e me magoou. Encolho-me.- O que foi ? Tens medo de mim? - Os seus dedos apertam-me os ombros com força.
- Ty, estás a magoar-me.
- Tens que entender que és uma de nós agora. É isto que fazemos ! - O meu corpo é levantado.
- Ty! - Grito mas ele parece não me ouvir.
- Eu trouxe-te aqui de livre vontade ! - Sou atirada e caio de rabo no chão. Bato com as costas na parede.- Tu não dás valor a nada sua filha da puta ! - Ele anda até mim de novo. Cubro o meu corpo com os meus braços e preparo-me para o impacto.
Mas ele não vem.
Em vez disso ele está de joelhos à minha frente. Tapando a cara com as mãos, soluçando.
- Ty ? - Mesmo sabendo o que ele pode fazer afasto os seus braços e espero que ele olhe para mim. Quando os seus olhos caem nos meus já não são os negros do tal Charles, são os verdes, os seus olhos brilhantes.
- É ele Billie.- Ele passa as mãos pelos meus braços lentamente.- É este gajo, a minha cabeça junta-se com a dele.
Olho-o confusa, ele torna-se violento porque o homem também o é. Eu entendo esse conceito mas nunca o levei tão longe, eu tive memórias do Justin, e senti uma ligação. Mas ele fundiu-se com o Charles, adotou,nem que seja por uns segundos, a sua personalidade. Isso é horrível, eu não quero ter as personalidades das pessoas em quem me tornar dentro de mim, quero ser eu.
- Então para.- Murmuro afastando-me do seu aperto.- Volta ao Ty. Eu não quero este homem comigo.
- Isto faz parte Billie.- Ele ri, ainda com a expressão de tristeza estampada na cara.- Nós mudamos a pele e adquirimos pensamentos... memórias... Com o tempo esquecemo-nos de quem somos.
- Eu não quero isso.
- É inevitável. Nós, a nossa espécie, vive aproveitando-se dos outros. Não temos outra escolha.- Abano com a cabeça negativamente, não é a vida que quero para mim.
O Ty começa a gemer de novo, e logo a pele clara é substituída pela pele morena. Ele volta ao normal e deixa aquele homem agressivo escorrer ate ao chão.
- Se calhar é melhor ir embora.- Ele concorda enquanto acaba de se vestir novamente. Ainda estou de joelhos quando sinto um arrepio por todo o meu corpo, a minha cabeça grita para correr para longe, os meus músculos ficam eléctricos. Olho para o Ty confusa e vejo que ele sentiu o mesmo, as suas mãos tremem.- Ty, o que se passa ?
- Ele está aqui.- Murmura numa voz rouca.- Ele encontrou-nos.
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Olá pessoal, espero que tenham gostado deste capítulo !
Deixem uma estrelinha sim?? Incentiva-me bastante !
Beijo!
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