♪Rondo Capriccioso
"Põe toda a tua alma nisso, toca da maneira como sentes a música!"
— Frederick Chopin
♪♪♪
Passei uma noite péssima. Daquelas que você fica mais tempo rolando de um lado para o outro na cama do que realmente dormindo. Estava ansiosa demais, preocupada demais, com mais medo de não conseguir do que queria admitir.
Tirei meu vestido de gala do armário e o coloquei dentro da mala com cuidado para não amassar, junto deixei minha bolsinha repleta de maquiagens. Poderia estar morrendo por dentro, mas não precisava aparentar uma defunta na frente dos juízes.
Terminei de organizar todas as minhas coisas e sai de casa.
O frio aumentava gradativamente com o passar dos dias e fui obrigada a levar um casaco para que não morresse congelada.
Decidi ir ao café próximo ao Conservatório para não correr o risco de me atrasar.
Havia vários alunos fazendo sua refeição matinal e o clima estava leve, com muitos conversando. A maioria, tranquilos, pois suas audições já tinham terminado.
Pedi uma xícara imensa de café, talvez a maior xícara que já vi na vida, e um bolinho. Enquanto uns ingerem álcool para não pensar em seus problemas, eu afogava minhas mágoas na boa e velha cafeína.
— Ansiosa para ver a reação da banca? — Olhei para o lado e deparei-me com Edgar, que segurava uma xícara de chocolate quente nas mãos.
— Não —respondi, bebendo metade do café que tinha no recipiente. — Queria uma irmã gêmea para fazer a prova por mim, apenas para não passar por todo esse stress — suspirei.
— Se você ensaiou não terá problemas — ele deu de ombros.
— Não está ajudando, Edgar — revirei os olhos.
—Não vou dizer o que você quer ouvir, senhorita Scherzo. Se você não confia em seu próprio talento, ninguém confiará.
Ele terminou sua bebida, deixou uma quantia de dinheiro no balcão e foi embora.
Talvez Edgar fosse um fã de teatro e adorava fazer entradas e saídas dramáticas, ou apenas era um pouco sem noção. As duas opções são validas.
Terminei meu bolinho e o café e fui para o Conservatório.
Diferente do café, o clima tenso dos corredores intimidava qualquer um que ousasse passar pela entrada. Os alunos andavam todos para a mesma direção: o teatro.
Fui até a ordem das apresentações que estava em um cartaz próximo a porta do teatro, pela ordem as provas de piano aconteceriam pela manhã toda, a tarde seria a vez dos regentes sofrerem nas mãos dos juízes.
Encontrei alguns colegas nas coxias, mas não conversei com nenhum deles, apenas deixei minhas coisas em um canto e fui direto para a primeira sala vazia para ensaiar.
Não podia perder meu precioso tempo ouvindo outros estudantes mostrarem seus talentos.
No caminho avistei Theodor em uma das salas ensaiando a Sinfonia que apresentaria.
Ele segurava a batuta com uma mão e a outra se mexia ao mesmo tempo. O som pelo que notei vinha de uma caixa de som.
Fiquei um tempo observando-o, e imaginei uma orquestra atrás de si. Os violinos do lado oposto aos contrabaixo e violoncelos, as violas ao centro e logo atrás as flautas e oboés. E bem ao fundo trombetes, tubas e trombones. Era agradável vê-lo se esforçar, seu jeito lírico e delicado permanecia e parecia um pouco divertido. Dava-me vontade de participar de uma orquestra, coisa que nunca aconteceria, apenas em solos.
—Estou ansiosa para ver sua apresentação, Senhor Lirismo — comentei com os braços cruzados.
Theo deu um salto, assustado com uma súbita convidada.
— Desculpe, não vi você chegar... — ele passou a mão no cabelo, claramente constrangido.
— Você estava tão concentrado, vê-lo daquela maneira era algo deveras... Interessante. Você tem naturalidade, tenho certeza que será um grande maestro.
— Obrigado... E você? Veio para esse lado do prédio para ensaiar, presumo?
— Acertou em cheio!
— O terceiro movimento ainda vem lhe causando problemas?
—Sim... — suspirei. — Estou desesperada, não sei o que fazer...
—Ensaie um pouco, se quiser deixo esta sala para você e vou para outro lugar.
— Não vou te atrapalhar, Theo! Fique ai, irei encontrar um cômodo — falei me dirigindo à saída.
— Ah, Lyra — chamou-me, virei instantaneamente quando o ouvi. — Boa sorte.
—Obrigada —sorri.
Voltei a praticar a Marcha Fúnebre, mas o resultado continuava o mesmo. Apenas um milagre o deixaria bom.
Foi então que o som ensurdecedor do meu celular me interrompeu, noticiando que alguém muito insistente me ligava.
— Alô?
— Bom dia minha querida pianista! — a voz agradável de James era transmitida pelo celular. — Como está?
— Um poço sem fundo de medo e ansiedade — suspirei.
— Não fique assim, Lyra... — conseguia sentir seu toque carinhoso em minha bochecha. — Se acalme, respire como um bebê. Ajuda bastante. — Comecei a rir, não acreditava que respirar com a língua no céu da boca fosse me ajudar, mas mesmo assim tentei. — E aí?
— Devo admitir que me acalma um pouco...
— Isso ajuda a oxigenar o cérebro — explicou. — Se sente preparada para a audição?
— Eu preciso mesmo responder? — ouvi sua risada ao fundo.
— Recado recebido — falou com uma voz robótica.
— Queria que você estivesse aqui, meu nervosismo sumiria completamente.
— Eu bem que queria, mas já tinha uma cirurgia marcada para esta manhã. Na verdade estou apenas esperando o paciente aparecer para começarmos — senti uma preocupação subir, ele estava com medo.
— É grave? — James não disse nada, a resposta estava clara. — Vamos, irmão! Acalme-se! Respire como um bebê, vai ver irá ajudar!
Naquele momento sabia que ele havia esboçado um sorriso.
— Tenho que desligar. Pegue leve com a banca, não deixe os juízes sem ar por causa de seu talento! — revirei os olhos e desliguei.
Desta vez, estava mais calma.
Encarei meu reflexo, procurando algum amassado ou defeito no vestido, mas estava impecável. Sua cor verde-água combinava com a cor de meus cabelos que estavam presos em um coque e deixava a mostra o pingente de coração e o cristal incrustado, tinha mangas cumpridas e algumas rendas no busto, nada muito chamativo. O que precisava impressionar era minha música, não meu traje.
Retoquei a maquiagem e caminhei pelo corredor indo em direção ao teatro. Tudo estava silencioso e o barulho de meu salto ecoava a cada passada.
Enquanto andava observei a paisagem pela janela, as últimas folhas caíam das árvores e decoravam o chão com o marrom, laranja e amarelo.
Estava distraída demais e demorei a ouvir a presença de um violino. Desta vez tocava Rondo Capriccioso sozinho e as pausas para o piano mostrar sem brilho eram apenas vácuos, mas conseguia ouvir a melodia em minha cabeça.
Respirei fundo e retomei meu rumo, não tinha tempo de brincar com um violinista misterioso, e sequer queria.
Detestava admitir que a sensação de descobrir que meu querido Capriccioso poderia ser um arrogante e prepotente musicista e que talvez não carregasse a paixão devida pela música, e isso me incomodavam.
As palavras de Edward estavam impregnadas em meu cérebro, não queriam sair de jeito nenhum. Era um lembrete de uma realidade que talvez existisse, e que eu poderia ser a única que não a enxergava.
Enquanto andava, o som aumentava como se estivesse me perseguindo, como se estivesse chegando mais perto. Em um momento a música parecia estar literamente ao meu lado.
Olhei para a direção do som e encontrei a porta aberta. Foi um pouco descuidado, Senhor Capriccioso...
Entrei silenciosamente. Sabia que precisava correr para o teatro, mas minha curiosidade clamou mais alto.
A sala estava com todas as janelas fechadas, o que deixava o ambiente mais quente e escuro, havia apenas uma fresta de luz que vinha da única janela entreaberta. Mesmo assim era difícil identificar quem seria o violinista.
Ele tocou os últimos acordes, não tinha percebido a minha presença até agora. E então se virou e a luz iluminou seu rosto, seus olhos cinza estavam arregalados e me encaravam ao mesmo tempo queriam fugir para outro lugar.
Fiquei um tempo paralisada, tentando armazenar a informação que acabara de ver. Tempo suficiente para que ele saísse pela porta como um furacão.
Sai da sala com o máximo de rapidez que meus saltos permitiam. Ele não estava tão longe. Tive que correr o risco de torcer o pé para apressar o passo e agarrar seu braço, obrigando-o a me encarar:
— Por quê? — questionei, tentando com todas as forças entender. — Entre todas as pessoas deste mundo... Por que você, que odeia os músicos, na verdade é um deles?
Ele se soltou com facilidade e voltou a andar sem me responder.
— Me diga! Por favor! — tentei alcançá-lo. — Por que você, que revela tanto ódio, é capaz das mais belas melodias? Por que tinha que ser você?
Ele se virou um pouco para me encarar:
— Porque o destino é cruel, minha cara — a voz de Edward ecoou e ele voltou a andar cada vez mais rápido.
— Responda-me! — gritei, mas continuava parada enquanto o via se afastar.
Arrependo-me de ter sido curiosa. A fantasia era muito bela e a realidade, muito triste.
Ouvi as badaladas do relógio anunciando que mais uma hora havia se passado e meus pensamentos voltaram-se todos para a minha audição que aconteceria em poucos minutos.
Corri até os bastidores do teatro e observei uma jovem terminando sua apresentação, era uma sonata de Beethoven pelo que pude notar.
Não tive tempo para me preparar psicologicamente e meu nome foi pronunciado e fui obrigada a entrar.
O teatro estava relativamente vazio, cerca de cento e vinte alunos estavam sentados. Era incomum ver todos os lugares preenchidos quando se tratava apenas de uma prova prática, os únicos que compareciam eram os que precisavam se apresentar ou colegas de alguém.
Enquanto caminhava até o meio do palco avistei Arabesque, Theodor e Jean em um canto, Klavier e Keana no lado oposto e meu professor que assistia tudo do acento mais afastado do palco.
Inspirei profundamente e olhei para os juízes. O primeiro parecia-me um homem de meia-idade, tinha uma expressão rígida e parecia cansado de avaliar peças de piano. A outra era uma mulher jovem, tinha a idade de Edgar provavelmente, e parecia entediada, mexia em seus cabelos loiros como se isso fosse mais interessante que o piano. Já a última era uma senhora que já chegara na casa dos sessenta anos, ela era a única que parecia verdadeiramente animada pelas apresentações. Reconheci a última juíza como sendo a fundadora do Conservatório, ela raramente aparecia por causa de seus problemas de saúde, mas era sempre uma honra vê-la.
Sentei-me diante do grande piano e contei alguns segundos antes de deixar minha mão esquerda cair ao fim do piano, seguida depois da direita.
A tensão que aquele começo criava não durava muito tempo, logo uma melodia mais calma surgia e depois de alguns compassos dava espaço para algo mais rápido e intenso. O primeiro movimento era cheio dessas idas e vindas inusitadas.
O Scherzo começa com contraste. Enquanto o primeiro movimento termina com intensidade, o seu sucessor começa calmo e ritmado, acordes alegres.
E como Chopin sempre foi um compositor um tanto quanto previsível, as notas rápidas voltavam em uma lógica que só fazia sentido para o próprio criador. Esses altos e baixos acompanhavam o segundo movimento.
E em seu fim uma longa pausa se iniciou.
Inspirei profundamente, com medo de como sairia a célebre Marcha Fúnebre.
Fechei os olhos e toquei o primeiro acorde, tentei me prender a algo que remetesse à dor e frustração.
Comecei a pensar no passado, mas não causava o resultado que queria. Minha mente se desesperou e segurou na primeira corda que avistou.
Olhos cinza tempestuosos. Um violino que mentia sobre a identidade de seu dono.
Deixei que meus pensamentos viajassem na ilusão que formei sobre o Senhor Capriccioso.
Os acordes melancólicos sorriam para mim, eu podia contar as minhas mágoas através do triste piano.
Permiti que a Marcha me conduzisse durante todo o seu movimento, abri meus olhos apenas quando o quarto, e último, se iniciou. Ele era corrido, dançava por todo o piano, subia e descia com agilidade e finaliza com um acorde de si em fortíssimo.
No fim, entendi o que era a famigerada Marcha Fúnebre.
Era o pesar, a frustração, a tristeza que a movia e a fazia tão bela perante os ouvidos alheios.
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