♪Pausa de Semifusa

"A música oferece às paixões o meio de obter prazer delas."

—Friedrich Nietzsche

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Passei um tempo muito agradável com todo aquele grupo de músicos loucos, mas fui embora antes de todos devido à dor de cabeça que aumentava por causa do barulho.

Já era noite quando cheguei em casa, então decidi apenas tomar um banho e ir dormir. Um bom descanso melhoraria minhas dores.


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Acordei sentindo o tédio de domingo já tomando conta de todo o meu ser. Havia ficado tão obsecada com as audições que vivi apenas para isso durante todo o mês de outubro. E como resultado, não tinha nada para fazer nesta manhã ensolarada de novembro.

Peguei meu celular para ver se alguém havia mandado uma mensagem, mas a única coisa que apareceu foram bolas de feno rolando no meu papel de parede de tão deserto que estava.

Sai de casa e andei sem rumo, não queria ficar trancafiada dentro do quarto, acompanhada apenas pela solidão. E convidar alguém para fazer qualquer coisa que fosse também não era uma opção.

Um sentimento estranho se instalava em meu peito, não tinha vontade de conversar com ninguém naquele momento. Algo parecia diferente, só não conseguia decifrar o que seria. Sentia meu coração vacilar, em todos os sentidos da palavra. Era como se um vazio subisse pela minha espinha e se alastrasse por todo o meu corpo, deixando nada além de perguntas na minha cabeça.

O final do ano chegou, meu quarto semestre do curso de piano acabara e a única coisa que faltava era ver a lista de aprovados. Não tinha nada a se fazer, as férias sempre foram chatas para quem não tem como passar o tempo.

No ano anterior havia o piano, mas minha vontade de tocá-lo havia diminuído. Eu o encarava em minha sala e aquela sensação de refúgio não existia mais, a única coisa que sentia era tristeza e certa decepção. Parecia que o motivo do meu desapontamento vinha apenas de uma pessoa.

O famigerado Senhor Capriccioso ainda me lembrava de uma imagem de alguém apaixonado pela música e não o escritor arrogante e rancoroso que Edward era. Parecia irônico que fosse ele a razão de me desanimar no mundo da música e não meus pais, que por anos e anos tentaram.

Tirei todos esses pensamentos da cabeça e continuei a caminhar sem rumo pela cidade.

Já estava longe do bairro que morava, as ruas começavam a ficar mais belas, as árvores eram maiores e alaranjadas, projetavam sombras enormes para as pessoas que andavam por lá. As ruas mais limpas e movimentadas. A mesma cidade com tantas diferenças encontradas apenas virando a esquina.

Fui até uma lanchonete em frente a uma praça e pedi um suco de laranja e algo para beliscar, e enquanto esperava, observei algumas crianças brincando. Um dos grupinhos estava jogando a bola um para o outro em uma versão bem simplificada de vôlei e o outro estava feliz com suas bonecas e carrinhos.


Elas me lembravam das vezes que fui a orfanatos com meus pais, mesmo que essas visitas fossem apenas para trazerem o status de gentis e bondosos para a família Scherzo, era agradável o tempo que passava me divertindo com aqueles pequenos.

A realidade deles era tão fria, talvez fosse por isso que adoravam brincar e imaginar um lugar melhor.

Talvez seja algo que todos fazemos.

Meu pedido havia chegado sem que tivesse percebido. Estava um pouco avoada, perdida em lembranças enquanto comia minhas panquecas e bebia suco.

Era estranho não ter uma xícara de café ao meu lado, principalmente naquele horário do dia. Fiquei tentada a cumprir a rotina e beber minha dose diária de cafeína, mas me contive.


Aquele domingo pacato me deixava desconfiada, estava diferente demais do normal. Nada havia acontecido, e talvez isso me aborrecesse.

A tarde passou tediosa igual, ou até mais, do que a manhã. E quando voltei para casa o sentimento desconhecido continuava dentro de mim.


Talvez fosse apenas um domingo vazio que me fez sentir deste jeito. Provavelmente na manhã seguinte tudo voltaria ao normal e essa sensação esquisita iria embora.


    ♪♪♪   


Acordei com o rugido do vento, o canto soturno da chuva e com alguns pingos d'água caindo em minha bochecha. Que ótimo lugar para aparecer uma goteira.

Ainda era madrugada, mas sabia que passaria o resto da noite procurando por baldes para evitar que a casa inteira ficasse molhada.

Ao entrar na sala parecia que alguém havia derramado lágrimas em cima do piano. Talvez o próprio instrumento estivesse triste pelo meu desânimo repentino, ou talvez seja apenas uma viagem da minha cabeça.

Fui até a cozinha e peguei todos os baldes que tinha disponível e fui colocando onde caia água, isso resultou em três em cima da minha cama, cinco no piano e em média dez no chão.

Quem sabe eu deva me mudar desta espelunca e procurar um lugar mais decente? Se bem que aqui não tenho muitos custos... Quando terminar os estudos penso em me mudar, por enquanto não compensaria o gasto.

Como esperado, passei boa parte do tempo trocando os baldes de lugar e procurando mais alguns quando outra goteira aparecia.

O dia amanheceu e a chuva não cessava, o ritmo continuava o mesmo e parecia impossível sair de casa.

Mais um dia entediante que seria obrigada a cuidar de baldes. Acho que tomar conta de um bêbado em uma casa com TV a cabo me parecia mais negócio.

É claro que havia meu piano, mas minha vontade de praticar continuava abaixo de zero. Não havia sequer um vinho para me divertir durante algum tempo e cozinhar... Bom, para quê? Têm arroz na geladeira que vai acabar estragando se não for digerido logo...





Passei outro dia fazendo altos nadas e pedindo para que no dia seguinte a chuva cessasse, ou pelo menos as goteiras parassem porque eu precisava dormir.

Por sorte a chuva parou no meio da madrugada e me deixou dormir durante algumas poucas horas, mas no começo da manhã fui acordada pela ligação de Ara.

— Bom dia minha linda! — exclamou com sua voz aguda.

— Oi, Ara — respondi desanimada.

— O que aconteceu? — perguntou rapidamente.

— Dormi muito pouco nesses últimos dois dias — suspirei. — Acho que dormi três horas esta noite.

— Eu te acordei Lyra?! Me desculpe! Eu não queria te atrapalhar, mas o resultado dos aprovados está disponível, quer ir comigo ver?

— Obrigada pelo convite, Ara, mas acho que vou descansar mais um pouco e te encontro lá. Minha cara passou de uma morta-viva para uma fantasma! — ouvi a violinista gargalhar na outra linha.

— Está tão ruim?

— Pode apostar que sim...

— Bom, não vou ocupar mais o seu tempo! Nos vemos no Conservatório! — ela desligou logo em seguida.

Deixei o celular na cômoda e me ajeitei na cama, poucos minutos depois estava dormindo novamente.

E talvez eu tenha me arrependido desse cochilo.

Ter os olhos de uma adolescente novamente não era algo que eu gostaria. Voltar para a casa de meus pais, descer às escadas e encontrá-los na mesa de jantar com um olhar severo, dizendo-me todas aquelas coisas não era algo que queria sentir outra vez. Um pesadelo que há muito tempo não me assombrava chegou em um momento deveras inoportuno.

Levantei, sem vontade de voltar ao passado através de sonhos e tomei um banho quente.

Enquanto lavava o cabelo notei que suas pontas estavam lamentáveis, precisava fazer uma visita ao cabeleireiro urgentemente. E é bom mudar o estilo de vez em quando.

Vesti uma saia rodada laranja e uma camiseta branca, peguei um casaco caso esfriasse e um guarda-chuva.


O dia estava nublado e o café de Henri estava bem movimentado devido ao horário. Deveria ter acordado mais cedo para ter tempo de conversar com o loirinho.

Uma garotinha me atendeu, provavelmente era uma barista nova. Devo dizer que ela sabia fazer um expresso tão bom quanto o de Henrique.

O Conservatório estava cheio de pessoas com expressões faciais distintas, algumas estavam tristes e outras pulavam de felicidade.

Fui até o fim do corredor e observei a lista de aprovados, normalmente colocavam em ordem do melhor para o pior de cada ano, fui direto para a segunda coluna e procurei pelo meu nome.

Nome atrás de nome, posição atrás de posição, mas nada de encontrar Lyra Scherzo escrito ali.

A lista chegava ao fim e meu desespero cresceu um pouco, até que, como última colocada estava meu nome, na quinquagésima colocação, mas pelo menos estava lá. Edgar comentou mesmo que eu passaria de raspão este ano e estava certo.

Fui para a lista dos aprovados na categoria do violino e procurei por nomes conhecidos, na décima sexta colocação do segundo ano estava Ara, era óbvio que essa garota passaria. Talentosa como era seria impossível reprovar.

Fui para a próxima coluna e encontrei Jean Leitmotiv em primeiro lugar do terceiro ano, seguido por Joseph Klavier. O ego de Klavier deve estar um pouco ferido devido a isso, o que eu compreendia.

Senti-me tentada a olhar quem estava em primeiro lugar no meu ano, seria alguém que conhecia? Ou um completo antissocial que aparecia apenas quando era necessário e ninguém fazia ideia de quem era esse ser humano?

Não era ninguém que eu conhecia, não que isso fosse difícil de acontecer, mas nunca havia ouvido falar sobre a pessoa que ficou em primeiro. Talvez fosse um gênio recém-descoberto? Provável.

Voltei a observar a lista dos violinistas e sem perceber, comecei a procurar por Edward em alguma coluna. Ele tocava muito bem violino, se fosse um estudante daqui conseguiria encontrar seu nome.

Ou era o que eu pensava.

Linha após linha, não encontrei o nome do Senhor Capriccioso em lugar algum.

Realmente, esse cara não quer ser conhecido no meio musical.

Ele odeia os músicos, mas é um deles. Não faz sentido!

Decidi por deixar o pensamento de lado, não deveria me preocupar com alguém tão contraditório.

Encontrei Ara conversando com Jean e Klavier, todos muito felizes e animados, com exceção de Joseph que mantinha uma cara um pouco mais fechada.

— Bom dia, Lyra! — Ara me cumprimentou de longe com um grito mais agudo do que o normal. — O grupo dos melhores músicos do Conservatório está quase completo agora!

— Na verdade está completo, Theodor não precisa estar aqui, eu tenho talento em dobro para substituí-lo! — como sempre, o Senhor Arrogante fez o que sabe fazer de melhor: ser arrogante.

Klavier revirou os olhos.

— Você está se achando demais só porque ficou em primeiro lugar, quero ver na Competição Nacional de Paganini se continuará com esse sorriso no rosto, Jean.

— Ele irá alargar, então não precisa se preocupar — Jean sorriu pretensiosamente. — Mas prevejo um belo mar de lágrimas da sua parte, Joseph.

— Esses dois não cansam de provocar um ao outro... — comentei rindo da pequena briga dos dois.

— É o divertimentos das nossas vidas essas discussões, Lyra! Não ouse estragá-las! — Arabesque me lançou um olhar ameaçador.

— Mil perdões, Majestade — fiz uma reverência desajeitada. — Prometo não atrapalhar suas diversões.


— É bom mesmo! — ela riu. — Sabe, estou feliz que vamos todos continuar aqui ano que vem... Seria estranho chegar ano que vem aqui e não encontrar vocês, não seria a mesma coisa.

— Sim, é bom manter o grupo unido... — comentei um pouco pensativa.

— Você está chateada com a sua colocação lá, Lyra? — perguntou Ara.

— Um pouco. Na verdade era esperado que eu passasse de raspão desta vez, — dei de ombros. — Mas mesmo assim é um soco no estômago do meu ego ficar em último. Vou ter que me esforçar muito ano que vem para recuperar tudo isso...

— Você vai conseguir, é muito talentosa e tem um futuro brilhante pela frente — algo acendeu em sua cabeça porque em seguida Ara começou a falar muito rápido, parecia até uma metralhadora. — Já até imagino seu nome em letras gigantes e douradas! Lyra Scherzo viajando o mundo e mostrando para todos o que é a verdadeira música! Os holofotes estarão todos em você! Tenho certeza disso!

— Seria meu sonho, Ara? — dei uma risada.

— Vai se tornar realidade, eu tenho certeza. Se até Edgar com aquela personalidade péssima dele conseguiu você também consegue!

— Isso é algo que o tempo dirá, Ara... Apenas o tempo... 

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