♪Não Existe Melodia Em Dias Tristes
"O meu desejo é que conseguisse eliminar todos os pensamentos que envenenam a minha felicidade, mas eu tiro uma espécie de prazer ao ser indulgente com eles."
— Chopin
♪♪♪
Tive que explicar o caminho para Edgar.
Parece que o pianista não sabia tudo sobre James. E está longe de saber. Mas eu também não o conhecia tão bem quanto queria.
Estávamos na frente de um casarão antigo de dois andares que não estava em seu melhor estado. O jardim da frente estava ressecado e as flores não existiam mais, nem mesmo a chuva que caía naquele momento seria capaz de restaurar aquelas plantas.
Observei Edgar, ele não se mexia e seu olhar estava cravado no volante. Parecia que travava uma batalha consigo mesmo. Entrei novamente no carro e toquei seu ombro.
— Não vai sair? — Perguntei.
Ele voltou a si e balançou a cabeça.
— Pode ir sozinha. — Seu tom de voz estava estranho.
— Edgar, está tudo bem?
— Claro, só não quero sair na chuva. — Deu de ombros.
— Vai estragar a sua chapinha? — Brinquei e ele revirou os olhos. — Vamos logo, você estava tão preocupado quanto eu.
Ele suspirou e acabou cedendo.
Andamos até a entrada e tocamos a campainha, o pouco tempo que esperamos foi suficiente para molhar metade do meu cabelo.
Uma senhora de sessenta anos nos atendeu, ela vestia um vestido no estilo dos anos 20 e sorriu.
— Lyra, que bom te ver! — Exclamou e me deu um rápido abraço. — Entrem! — Nós obedecemos. — E quem é esse rapaz bonito? Seu namorado?
Edgar foi o primeiro a gargalhar e eu o acompanhei.
— Ótima piada, dona Laura! — Continuei a rir. — Este é Edgar, um amigo de James. — Expliquei.
— Ah! Então você é o famigerado Edgar?! É um prazer conhecê-lo! — Ela o abraçou. — James não poupou elogios a seu respeito! — Em seguida abaixou a voz. — E devo dizer que não exagerou ao dizer que você era muito bonito.
— Obrigado... — Era engraçado ver Edgar desconfortável, uma cena rara de acontecer.
Fui boba de não tirar uma foto daquele momento memorável.
— James está aqui? — Perguntou.
— Ele está na sala conversando com alguns adolescentes.
Laura nos acompanhou até a sala e depois saiu.
James estava sentado em uma poltrona, carregava no colo uma menina que deveria ter no máximo dois anos. E sentados no chão a sua frente estavam dois garotos, deveriam ter entre dezesseis e dezessete anos.
— Eu só não te dou um soco porque essa criança está aqui — disse Edgar se aproximando.
— Seja mais educado! Eles vão ter uma imagem errada de você se continuar assim... — James brincou, mas seu olhar estava sério.
— Quanto tempo ela está aqui? — Perguntei observando a bebê.
— Vinte dias. — Ele fez carinho nela. — Os pais morreram em um assalto e nenhum parente queria cuidar da criança, então ela veio para cá. Seu nome é Elisa.
— Não vá me dizer que você sumiu do mapa só para cuidar dessa peste?! — Edgar, delicado como uma flor.
— Claro que não. — Ele deu a criança para um dos adolescentes. — Vamos conversar em outro lugar?
— Sim, aí poderei estragar esse seu olho sem remorso.
— Apenas admita que sentiu minha falta, Edgar. — James sorriu provocante e o professor apenas revirou os olhos.
— Onde você quer conversar? — Mudou de assunto.
Tive a impressão de estar sobrando naquele momento.
— Vamos ao Rebeniel, estou morto de fome.
Entrei no carro de James e esperei ele falar alguma coisa, mas nada.
— Com o Edgar você conversa e comigo fica calado. Eu também estava preocupada. — Murmurei.
Edgar foi com seu carro e me deixou sozinha com meu irmão.
— Desculpe, Lyra. — Ele não me olhava.
— O celular dele você atende. — Continuei.
— Já pedi desculpas, Lyra. — Seu tom de voz aumentou.
— Para ele você dá explicações.
— Sim, isso mesmo e qual o problema, Lyra?! — Exclamou, irritado.
— Por que você não me conta nada? Por que sempre ele quem sabe de tudo e eu sou a última a saber?
— Porque ele vem primeiro! Porque ele é mais importante! Você sempre soube que, se eu precisasse escolher, ficaria ao lado dele! — James gritou e acelerou o carro, fiquei até com medo de acontecer algum acidente por causa disso.
Fiquei em silêncio.
Eu sabia que era verdade, ele nunca me escondeu isso. Estava óbvio desde a primeira vez que o conheci.
O sinal ficou vermelho e o carro parou, notei pelo canto do olho que meu irmão me observava. O encarei de volta com um olhar questionador.
— Desculpe por ter gritado. Eu não devia ter falado aquilo, muito menos daquele jeito.
— Como você mesmo disse, eu sempre soube que você o escolheria, mas será que ele iria te escolher? — falei séria.
Foi sua vez de não responder.
— Não. — Afirmei. — Ele não vai. E você sempre soube disso.
Não trocamos nenhuma palavra durante o resto do percurso.
O clima estava tenso e não voltaria ao normal com facilidade.
O Rebeniel estava mais movimentado naquela noite.
Edgar pegara um atalho e chegara antes de nós dois. Ele reservara uma mesa no segundo andar próxima à janela e já se adiantara pedindo uma garrafa de vinho, que eu particularmente adoraria tomá-la sozinha naquele momento.
— Não degustaram da companhia um do outro? — Edgar provocou e ganhou dois pares de olhos o repreendendo. Ele suspirou e encheu duas taças e as entregou para nós. — Vinho sempre ajuda.
Tomei vários goles de uma vez e senti o líquido queimar minha garganta.
O garçom apareceu e anotou nossos pedidos, e nesse meio tempo eu já estava na metade da segunda taça.
— Acho que você nos deve algumas explicações, senhor Hersenen — disse Edgar terminando o conteúdo de sua taça.
O silêncio se alastrou rapidamente, os olhos de dois pianistas recaiam em James e esperavam sua resposta.
— Não teve um motivo que justifique. Eu fui antiprofissional ao me apegar a uma paciente. — Suspirou.
— James, eu sempre disse para você não transar com os seus pacientes. — Edgar brincou.
— Pare de falar besteiras, Edgar. — Revirou os olhos. — Era uma criança, uma menina de cinco anos que andava sempre radiante e com um sorriso no rosto. Ela era gentil e lidava tão bem com o seu problema de saúde, era mais forte que muitos adultos por ai, sabe? Ela fez uma cirurgia alguns meses atrás e sempre ia ao consultório para que eu acompanhasse sua recuperação, mas tudo piorou depois e ela estava entre a vida e a morte. Tivemos que fazer uma cirurgia de emergência, mas ela...
— Ela não aguentou. — Conclui.
— Eu sei que não fui profissional. Entretanto vocês não imaginam como foi contar aos pais que sua amada filha havia morrido porque você foi incompetente.
Suas mãos tremiam e sua voz falhava ao nos contar. Segurei a mão que estava mais próxima e entrelacei os dedos. Quando olhei para o outro lado, Edgar havia feito a mesma coisa.
— Isso me deixou com medo de ter filhos, eu não quero passar pela tristeza que aqueles pais passaram. Não sou forte o suficiente...
— Teve um dia que desabei em casa. Não apenas por causa da morte daquela criança, mas sabe quando pequenas coisas se juntam para formar uma grande pedra que fica tão grande que fica difícil de segurá-la e então ela desaba em cima de você, quebrando tudo ao seu redor.
— Eu queria me isolar de tudo, então tirei alguns dias de folga e passei os dias no orfanato, lá eu conseguia me acalmar e pensar em outra coisa. Voltei a trabalhar hoje e senti que estava na hora de responder a vocês.
— Não agi da melhor maneira e peço desculpas por ter ignorado vocês por tanto tempo e deixá-los preocupados.
Ficamos quietos por um tempo e eu me ocupei em prestar atenção na entrada que o garçom havia trazido.
— Depois dessa história mega comovente a minha vontade de te socar diminuiu em setenta por cento. — Edgar foi o primeiro a falar algo.
— Espera, ainda sobrou trinta por cento?! — James achou graça.
— Claro! Ninguém me ignora, James. Muito menos por duas semanas. Sabe quantas mensagens eu te mandei? Noventa e três. E ligações? Trinta e cinco. E sim, eu contei. Você sofrerá as punições por ter me ignorado.
— Não vejo a hora... — James sorriu com malícia.
— Pare de pensar em sexo. Não ficará tão feliz quando descobrir o que é.
— E o que seria...?
— Duas semanas sem os chocolates.
James perdeu seu sorriso na hora e Edgar demonstrou o dele.
Eu juro que tentei segurar a risada, mas foi inevitável.
— Pare de rir, Lyra!
— Pare de rir, Scherzo!
Os dois falaram ao mesmo tempo.
— Que belo castigo para este bebê. Bom que você vai emagrecer, pense nisso. — Brinquei.
— Minha linda irmãzinha, eu posso comer quinhentos quilos de chocolates e vou continuar com este corpinho de deus grego. — Ele jogou o cabelo para o lado e mostrou o melhor sorriso galã que poderia ter.
— Convencido o senhor! — Exclamei rindo.
— É que você nunca viu as melhores partes, Lyra. — Ele piscou e começamos a rir.
— E também não estou interessada! Jogue seu charme em outra pessoa!
E ele seguiu o meu conselho:
— E aí, gato? Você vem sempre aqui? — Ele disse para o garçom que vinha com nossos pratos principais e mais uma garrafa de vinho.
James foi ignorado completamente pelo homem que ficou vermelho.
— Eu não acredito! — Comecei a rir.
— Ele podia ter aceitado. Faz tempo que não beijo um cara. — Ele riu sozinho e depois sorriu. — Sinto falta de um carinho. — Sorriu maliciosamente mais uma vez e depois me encarou. — Me diga irmãzinha, como anda sua vida amorosa?
— Acho que sequer existe. — Edgar comentou.
Soltei uma exclamação:
— Mas é claro que existe!
— Sério? Então me conte quem é o sortudo ou a sortuda... — James cruzou as mãos e apoiou seu rosto, com seu típico sorriso divertido.
— Vamos, Lyra. Conte. — Edgar estava com seu sorriso mais maquiavélico.
Fiquei em silêncio.
— Chegamos à conclusão que Lyra não tem nenhuma relação sexual ou amorosa desde que saiu do ensino médio — disse meu irmão.
— Ela já namorou? — Edgar me ignorou.
— Eu estou aqui, não precisa fazer a pergunta para James se eu posso muito bem responder.
— Então responda: a senhorita já namorou?
Pensei antes de dizer alguma coisa e James acabou contando:
— Ela nunca teve algo sério. Ou nunca me contou, coisa que acho difícil.
— Resumindo, Lyra virou uma santa depois que terminou o colegial? — Edgar deu risada.
— O que é uma pena. Tem uma mulher do curso de regência que olha... Ela sabe muito bem como tirar proveito de uma parte dura... Quero dizer, partitura. Mas a faculdade de medicina era melhor, tinha muita gente bonita, óbvio que eu ganhava de lavada no quesito beleza e inteligência. Mas todos tinham um objetivo em comum: aprender, na prática, anatomia.
— E você teve muitas aulas pelo que me lembro. — Edgar riu. — Se recorda de todos os alunos e professores que estudaram anatomia com você?
— Me lembro da cena, não dos nomes. — Riu. — Mas quem liga para nomes?
— Eu ligo. — Edgar murmurou.
— Que fofo, se bem que você deve ter transado apenas com uma pessoa. — A expressão de James ficou mais séria, mais profissional também, eu diria. — Falando nisso, como ela está?
— Como sempre. — O pianista deu de ombros, mas senti que estava um pouco cabisbaixo.
— Você sabe a minha opinião sobre isso. Ela é um amor, mas...
— Mas não vamos falar sobre isso aqui. — Edgar cortou o assunto e me olhou.
Senti que não deveria fazer parte desta conversa, porém James era quem me levaria para casa, e eu não tinha dinheiro suficiente para pagar o jantar e chamar um táxi.
— Edgar, posso passar na sua casa? Acho que esqueci algo lá... — James sorriu maliciosamente.
— A sua vergonha na cara? Eu percebi, mas ela está no seu apartamento.
E falando no apartamento de James...
A porta.
Edgar e eu trocamos um olhar que significava que James nos mataria.
— Na verdade, você esqueceu outra coisa em casa. — Edgar se adiantou.
— E o que seria? — Meu irmão se divertia.
— A minha mão na sua cara. Enfim, Edward queria te mostrar algo uns dias atrás e me disse para te levar lá. — Deu de ombros.
— Se ele quiser mostrar a genitália dele eu vou.
Dei risada e notei Edgar chutar James.
— Você está muito carente. — Edgar revirou os olhos.
— Claro! Já que você não me dá atenção, preciso encontrar outra pessoa que faça isso.
— Se bem me lembro, foi você que me ignorou por duas semanas. — Revidou.
Eu me sentia um belo castiçal, um com doze velas para ser mais específica.
— Eu tive meus motivos! Você não vai ficar irritado com isso de novo, vai?
— Não, vou encontrar outra coisa para te atormentar.
O garçom, o mesmo que recebeu uma cantada de James, chegou com a conta na mesa.
— Eu não tenho nenhuma chance contigo, cara? — James perguntou pela segunda vez e foi ignorado de novo. — Não custa nada tentar. — Ele deu de ombros enquanto eu e Edgar ríamos.
— Dividimos a conta? — Perguntei, tirando minha carteira da bolsa.
— Hoje não, Lyra. Seu irmão vai pagar desta vez.
James não se importou e apenas colocou o dinheiro na mesa e se levantou.
Enquanto saíamos do restaurante, meu irmão perguntou:
— O que exatamente o Edward quer? Além do meu corpo nu, é claro.
Dei risada mais uma vez.
— Ele quer sua opinião sobre o rumo da história que ele está escrevendo. Edward te acha um bom exemplo de cupido, mesmo que eu te ache um fracassado.
— Quanto ódio no coração, Edgar. — Comentei.
— Como ousa me chamar de fracassado?! — James fingiu que estava ofendido. — Eu sou um deus grego, meu amor! A personificação da perfeição!
— Então por que você continua solteiro? — Perguntei.
— Não quero desiludir ninguém. Meus belos príncipes e princesas que se apaixonam pela minha bela imagem de homem perfeito! Se pensarem que estou em um relacionamento... — Ele fez uma pose dramática. — Isso os destruiria.
— Mas é claro. — Edgar revirou os olhos mais uma vez. — Enfim, vamos logo para minha casa.
— James vai me levar para casa primeiro, certo? — Perguntei esperançosa.
Queria minha cama e também estava cansada de bancar o castiçal.
— Eu só vou ajudar o Edwen e depois vou para casa também, não vai demorar muito.
— Vai demorar um pouco sim, James. É melhor você a levar primeiro.
— Não. Eu sou mais velho que vocês dois, me respeitem. E não está tão tarde, posso levar a Lyra depois que conversar com Edward.
Edgar suspirou.
— Tudo bem. Você vai sozinho desta vez, James. Preciso conversar com a sua irmã sobre algumas aulas.
Claro que meu irmão não caiu nessa, mas não impediu.
Entrei no carro de Edgar e esperei que ele começasse a dirigir:
— Você não quer que ele veja a porta quebrada, não é?
— Óbvio que não! Eu tenho amor à vida, sabia? Você conhece seu irmão, ele vai ficar revoltado porque invadimos a casa dele.
— Eu sei, mas o que você pretende fazer? Transar com James para que ele durma na sua casa?
— Claro, e por que você não se junta e fazemos um ménage? — Falou com sarcasmo. — Ou melhor, chamamos Edward para participar da brincadeira também! Nós quatro!
— Que coisa estúpida de se pensar, Lyra. — Ele revirou os olhos.
— Então me diga que plano o senhor tem.
— Dar um remédio para ele dormir? E de manhã chamo alguém para concertar a porta, tudo resolvido.
— Não dê remédios para ele! Encontre um jeito que não inclua medicamentos e violência, por favor.
— Então eu vou improvisar.
— E o senhor perfeccionista, que só segue a partitura a risca, conseguiria improvisar?
— Claro, senhorita Scherzo. Não me subestime. — Ele sorriu.
Ficamos um tempo em silêncio até que uma ideia passou pela minha cabeça:
— Edgar, como que eu voltarei para casa? Eu não sei dirigir!
— Depois pensamos nisso! Temos coisas mais importantes para pensar neste momento.
— A minha casa é uma coisa importante a se pensar!
— Eu te levo depois se for o caso, ou o Edward. Sei lá! A gente resolve isso depois, Lyra.
Bufei e fiquei quieta o resto do percurso.
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