♪Musicalidade no Olhar
"As palavras estão cheias de falsidade ou de arte; o olhar é a linguagem do coração."
— William Shakespeare.
♪♪♪
— E você também não tem? — perguntei.
Edward encostou-se à batente e observou a neve cair, estava de costas, o que me fazia não enxergar seu rosto ou sequer imaginar a expressão que fazia e o que seus olhos demonstravam.
— O que dizer a ela, além de palavras ditas outrora? — Por fim respondeu, citando um trecho de seu livro. — As mesmas que, depois de tanto tempo, tornaram-se insignificantes? Do que adianta confessar aquilo que já fora dito, tantas vezes, pelo silêncio?
— Vai se arrepender se seguir o mesmo destino desse personagem, Edward. E você sabe disso — falei. — Só espero que perceba isso a tempo.
— O que preciso dizer a ela, Lyra? — Edward se virou. — Que é uma das pessoas mais importantes para mim? Ela sabe que sim, e também sabe que não sou o tipo de pessoa que demonstra com palavras.
Fiquei em silêncio por um tempo.
— Tudo bem, faça como quiser. Mas não venha dizer que não te avisei.
Edward soltou o ar pesada e lentamente, para manter a calma.
— Acho que está na hora de te contar uma história, Lyra. Talvez assim você entenda.
Arqueei a sobrancelha, porém não obtive nenhuma resposta.
Nós voltamos para a mesa e o jantar terminou tranquilamente, parecia que Edgar e Elisa tinham resolvido o que precisavam e a conversa fluía de maneira agradável. Porém, a todo o momento, meus olhos cruzavam com o de Edward expressando uma curiosidade que fazia-o sorrir, mas um sorriso que desaparecia logo em seguida. Perguntei-me se teria relação com a lembrança que precisaria reviver ou se apenas estava cansado de meus incessantes olhares curiosos.
— Schatz, você poderá sair para o Natal? — perguntou o escritor enquanto terminava de comer sua sobremesa.
— Preciso ver com o médico, mas provavelmente sim. — Ela sorriu. — Será bom passar essa data especial com vocês, afinal, são a minha família fora da Áustria. Mas é uma pena que não poderei vê-los...
— Por que não? — deixei a pergunta escapar de meus lábios.
— Não estou apta a viajar e meus pais não podem vir tão cedo para cá.
— Entendo... — murmurei, um pouco envergonhada por ter tocado em um assunto visivelmente delicado. — Desculpe ter perguntado.
— Não tem problema, Lyra. — Elisa me olhou com ternura. — Pode me perguntar o que quiser.
— Você não deveria ter dito isso, ela vai levar a sério e te encher de perguntas — disse Edgar.
Dei um risada sem graça.
— Mas é verdade — acrescentou Edward. — Você não sabe a capacidade que essa mulher tem de fazer perguntas impertinentes.
Olhei irritada para ele e ouvi Elisa rir.
— Vocês combinam — ela disse. — De uma maneira pouco convencional, mas combinam.
— O que isso quer dizer? — perguntei.
— Nunca imaginei que Edward namoraria alguém com uma personalidade tão diferente da dele.
— Eu também não — respondeu o escritor. — Irônico, não acha?
— Com certeza.
Ambos compartilharam um sorriso de lembranças passadas e, outra vez, me senti a par do assunto.
Edward se inclinou na minha direção, percebendo que eu o observava, e sussurrou:
— Se lembra daquela história que escrevi quando era um adolescente iludido? — Afirmei com a cabeça. — Elisa estava falando da menina daquela época.
— Quero ouvir mais sobre ela.
— Essa é uma história para outro dia. Hoje o foco é outro, a não ser que queira...
— Não ouse — o cortei.
— É disso que estou dizendo — voltou a dizer Elisa. — O modo como interagem é bem diferente do modo que você costuma agir, Schatz.
— Verdade — concordou Edgar. — Edward, no que você se transformou?
— Em tudo que ele mais criticava na época do colégio: uma pessoa sociável e que possui uma vida amorosa decente.
— Eu não diria que cheguei ao nível de ser chamado de "sociável", Elisa.
— De fato, não. Mas você sai de casa, já é um grande avanço.
Edward revirou os olhos e Elisa riu.
O clima continuou assim até o fim do jantar.
— Foi um prazer te conhecer, Lyra. Espero que possamos nos ver mais vezes, quero conhecê-la melhor.
— Compartilho do mesmo pensamento, Elisa.
Nós trocamos sorrisos e ela, juntamente de Edgar, seguiu para a direção oposta a minha e de Edward.
— Podemos ir para a sua casa desta vez? — perguntou Edward. — A simples ideia de Edgar atrapalhar algo me incomoda...
Sorri com malícia para o escritor.
— Não nesse sentido. Apenas não quero estar contando coisas pessoais e ouvir Edgar fazendo piadas. — Revirou os olhos, porém seu olhar mudou drasticamente para algo mais indecente. — A senhorita tem uma mente muito maliciosa. Não acredito que me envolvi com uma mente tão impura quanto a sua!
— Como se a sua fosse pura — retruquei.
— Pode ter certeza que é.
Dei alguns passos, até ficar a quase um palmo de distância de Edward. Ergui-me na ponta dos pés e sussurrei em seu ouvido:
— Duvido que permaneça pura por muito tempo, Edward. — Deixei seu nome derreter na boca, demorando-me em cada sílaba.
— A senhorita quer me corromper, é isso? — O escritor sussurrou com a voz rouca, segurando-me pela cintura.
— Longe de mim querer corrompê-lo. Um anjo como o senhor não precisa da minha ajuda para cair em tentação...
— Pelo contrário, — Edward aproximou os lábios do meu ouvido, quase o tocando. — Você é a minha maior tentação.
Arrepiei-me.
O escritor se afastou com um sorriso, parecia satisfeito com a reação que me causara. Andou em direção ao carro e entrou, demorei alguns instantes para segui-lo.
A expressão que Edward fez quando entrou em minha casa foi impagável. Tentava esconder o desconforto e os olhares críticos, mas não conseguia esconder a indignação:
— Como você é capaz de viver em um cubículo como este, Lyra?!
— Respeite minha toca, Siwen! — o repreendi. — Se estiver incomodado pode voltar para a sua enorme casa.
— Desculpe, falei o que não deveria.
— Que bom que percebeu. — Dei um sorriso amarelo, porém logo mudei de postura. — Você pode se redimir contando o que deveria...
— Tão discreta... — respondeu, sorrindo de canto. — Me diga, tem algum lugar onde podemos sentar para conversar?
O levei até meu quarto.
Os olhos de Edward observavam todos os cantos do cômodo, todos os detalhes e tentava gravá-los na memória. Sempre me divertia com este olhar.
Me sentei na cama e encostei o travesseiro na parede para que ficássemos mais confortáveis, também arrumei o cobertor, para caso ficássemos com frio. Edward se sentou ao meu lado segundos depois, meus olhos concentrados nos seus.
— Você é incapaz de esconder sua curiosidade, não é? — comentou, esboçando um pequeno sorriso.
— Me conheces tão bem...
Edward enrolava uma mecha do meu cabelo no dedo, parecia distraído, ou apenas em busca das palavras certas. Em um momento, suspirou, como se tivesse desistido.
— Não sei como começar... — A frustração era nítida em sua voz.
— Comece com o porquê decidiu tocar violino.
— Está bem.
Edward respirou lentamente, colocando os pensamentos em ordem, e começou a contar:
— Eu comecei a aprender violino por causa da... — Ele soltou o ar pesadamente antes de dizer. — Por causa da minha mãe — disse de uma vez só.
— Sua mãe?
— No caso, minha mãe biológica — respondeu. — Mas ela não merece ser chamada de mãe.
Observei Edward, mas seus olhos estavam focados em seu colo.
— Assim que deu a luz, ela me deu para um casal que queria muito ter filhos. — Deu uma pausa. — Ela sequer teve a coragem de me segurar no colo quando nasci.
Segurei suas mãos com carinho e me surpreendi ao senti-las tremer, talvez por ódio, talvez por tristeza. Era difícil dizer.
— Enfim, — Edward tentou se recompor. — Durante a adolescência, pedi para meus pais me contarem quem eram meus pais biológicos. Foi assim que descobri que minha mãe era uma violinista renomada do ramo.
O observei, com o olhar questionador.
— Viola d'Accord — ele disse o nome e fui incapaz de esconder minha surpresa.
Diria que Viola não era a pessoa que imaginei ser capaz de fazer uma coisa dessas.
— As pessoas são diferentes longe dos holofotes... — comentei.
— Sim, muito — respondeu. — Na época, não me contaram porque Viola havia me deixado, e na minha cabeça, acabei criando uma versão bela, onde ela se arrependia e etc. E foi por causa dela que comecei a aprender violino, queria ter a chance de encontrá-la, e o melhor jeito que encontrei foi este.
— Fiquei anos praticando. Ganhei muitas competições antes de, finalmente, conhecer essa mulher.
— E o que aconteceu?
— Ela me humilhou — murmurou. — Na frente de toda uma orquestra, dizendo que nunca me quisera e que eu era um tolo por tê-la procurado. Foi uma das piores coisas que me aconteceram, eu me senti um lixo. — Ele apertou minha mão. — E me senti pior ainda por ter passado tanto tempo procurando uma aceitação daquela que nunca me quisera, que esqueci de dar valor aos dois homens que me criaram. Toda vez que os visito ainda me sinto arrependido e sempre imploro por perdão. Eles me perdoaram, é claro; mas sinto que uma parte deles ficou magoada por ter dado prioridade aquela mulher invés deles, que são meus verdadeiros pais.
— Eu não fazia ideia que o motivo era esse... — O envolvi em um abraço. — Agora entendo porque não queria contar, e desculpe por ter sido tão insistente. Desde a época em que éramos estranhos um para o outro, eu o enchia de perguntas que eram pessoais demais para serem respondidas.
— Está tudo bem, você não tinha como prever que era algo do gênero. E se não fosse sua curiosidade incessável, não estaríamos onde estamos. — Edward beijou minha testa.
— Você não estaria nesse cubículo, sentado em uma cama de solteiro...
— Ao lado de uma estonteante mulher — completou e fui incapaz de conter um sorriso.
Beijei seu rosto e encostei a cabeça em seu ombro.
— Obrigada por compartilhar uma história tão pessoal comigo. Sei que fez isso porque fui insistente...
— Na verdade, não. — Edward respondeu, um pouco pensativo. — Eu queria lhe contar isso, e acho que você tinha o direito de saber. Afinal, um relacionamento não existe se conhecermos apenas uma parcela do outro, é preciso conhecê-lo em todos os sentidos e ângulos. E essa, em minha opinião, é a melhor parte.
— Neste momento você se provou ser um escritor até fora do seu ambiente de trabalho.
Edward riu, deixou seus dedos percorrerem meu cabelo outra vez.
— Um artista é sempre um artista, independente de onde esteja.
— É verdade — concordei. — O caminho de um artista, mesmo que seja mais difícil, é o mais realizador, pois sempre encontramos realização no processo e não apenas no fim. — Dei uma pequena pausa. — É claro que, ouvir uma música tocada perfeitamente por você é algo incapaz de descrever, tamanho é nosso orgulho.
— O mesmo acontece com a escrita. Mesmo que eu ame o processo, o prazer de terminá-lo depois de meses, ou até anos, é... — Edward sorriu. — Como você disse, é impossível de pôr em palavras.
Ficamos um tempo em silêncio, trocando carinhos e apenas aproveitando a companhia um do outro. Era aconchegante estar em seus braços, trazia-me uma segurança e paz.
Em certo momento, Edward esticou o braço para pegar o livro que estava na mesa de cabeceira.
— Achei que tivesse terminado — comentou enquanto folheava-o.
— E terminei, mas o deixei ali. Gosto de vê-lo assim que acordo.
— Gosta do livro ou de quem o escreve? — Edward virou seu corpo em minha direção.
— A capa é muito bonita, gosto de admirá-la todas as manhãs. — Brinquei.
— Que absurdo, fui substituído pelo meu próprio livro! — exclamou. — O que será de mim agora? Terei que viver sozinho pelo resto da vida! — Sua voz excessivamente dramática me fez gargalhar, Edward acabou me acompanhando logo em seguida.
Ri muito, a ponto de faltar ar nos pulmões, e me senti tão leve.
— Bom — começou depois que conseguimos nos acalmar. — Já que a senhorita parece gostar tanto deste livro, por que não lê um trecho para mim? — Eu iria recusar, mas Edward abriu o livro em uma das páginas e repousou o rosto em meu ombro.
— Está parecendo uma criança mimada, Edward. — Toquei seus cabelos. — Mas tudo bem, lerei para você.
O escritor sorriu e se aconchegou mais no abraço.
Comecei a ler na página marcada, era um trecho um pouco cansativo de se ler nesta hora da noite e, após alguns parágrafos, meus bocejos se tornavam cada vez mais presentes.
Quando olhei para Edward, ele estava dormindo, sentia sua respiração lenta e regular. Abri um sorriso e o observei por um tempo.
Com um pouco de dificuldade, peguei o cobertor e o arrumei para que cobrisse a nós dois.
Não demorou muito para que eu também adormecesse.
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