♪Larghetto

    "O músico é talvez o mais modesto dos animais, mas também o mais orgulhoso."

 — Erik Satie.

♪♪♪


Edgar poderia facilmente ser confundido com um demônio dentro do Conservatório, principalmente quando um de seus alunos chegava fora do horário. Tínhamos medo do senhor Adagietto, mas sabíamos que o resultado de tê-lo como professor era bem mais que satisfatório do que seria com qualquer outro.

Já deveria ser a sétima vez que Edgar gritava comigo em um intervalo de quinze minutos. Estudávamos a mesma música de ontem e parecia que os defeitos aumentavam com o decorrer do tempo. Isso me assustava, não estava com tempo para brincadeiras, o dia de me apresentar para a banca se aproximava mais e mais e minha ansiedade não era um bom sinal. E o jeito exaltado de meu professor não ajudava em nada.

Por um momento, minha mente voltou para o almoço e a conversa que eu "educadamente e discretamente" ouvia. O jovem moreno que provavelmente seria um maestro tinha o dom de criticar sem machucar, e seria mentira se não admitisse que gostaria de tê-lo como professor neste momento. Delicadeza era isso que faltava.

A aula foi desgastante e meu psicológico estava exausto, não aguentava mais ouvir Chopin. Me desculpe, eu sei que provavelmente o senhor passou dias e dias ouvindo o mesmo compasso para concluir esta música mas não tenho condições de praticá-la novamente durante os próximos dias. Sinto muitíssimo por lhe informar, mas simplesmente cansei de suas músicas.

Antes de ir ensaiar com Ara decidi ir a um café próximo para recarregar as energias. Afinal, musicistas não são feitos de ferro, longe disso na verdade.

Entre todas as bebidas energéticas que já experimentei em toda minha vida a mais eficiente era o café, que além de ter o sabor dos deuses me dava disposição e vontade de estudar meu querido amante: o piano.

Voltei revigorada para a escola e até um pouco mais feliz, tinha esquecido as terríveis coisas que Edgar me dissera horas atrás, ponto positivo para minha produtividade.

Arabesque já estava praticando sozinha quando cheguei, mas parou quando me viu.

— Pensei que você não viria, Lyra! Demorou tanto que consegui repassar a música umas dez vezes! — exclamou, tirando o instrumento do ombro. — Por que demorou tanto?

— Uma palavra: Edgar — me sentei em frente ao piano logo em seguida.

Ara não perguntou mais nada, ela sabia do meu estado após uma aula com aquele gentil homem.

— Bom, não vamos mais perder tempo! Precisamos nos esforçar para que impressionemos a banca quando chegar a hora! — ela volta a posicionar o violino. — Você trouxe as partituras?

— Sim, mas quero tentar tocar sem elas — comentei com a voz mais baixa.

— Já decorou?! — Ara me olhou espantada enquanto eu apenas dei de ombros. — Não acredito!

Noites em claro lendo aquelas folhas provavelmente serviu para alguma coisa, certo cérebro? Espero que a resposta seja positiva.

Nos entreolhamos e contamos o ritmo uma vez antes de começarmos. Estávamos na metade da segunda folha e eu ainda não tinha errado nada, pelo visto reler algo centenas de vezes valia apena no fim das contas. Entretanto Ara parou subitamente, o que me deixou confusa. Por que havia parado? Ela encarava alguém que estava além do meu campo de visão, provavelmente a pessoa estava tampada pelo piano.

— Jean! Theo! O que estão fazendo aqui? — anunciou a loira.

— Ouvimos alguém tocando Love's Sorrow e você sabe que o Theo não se aguentou. Ele tem que dar seu palpite sobre a performance — era a mesma voz do homem do almoço.

Me levantei rapidamente e confirmei, eram os mesmos jovens de horas atrás. O violinista e a versão não maquiavélica de Edgar.

— Nos dê sua sabedoria, senhor Seoltóir — Ara fez uma sarcástica reverência, e uma muito mal feita, diga-se de passagem, antes de fitar os olhos cinza de Theodor.

— Era para ser um dueto, certo? — o moreno caminhou para perto do piano. — Porém o piano está engolindo o violino, ele está virando o principal, coisa que não era para acontecer — ele se voltou para mim. — Deduzo que a senhorita seja uma solista e não uma acompanhante, estou correto?

Era verdade que todas as minhas apresentações foram solos ou peças que destacavam o piano. Será que estava tão insegura a ponto de ter transparecido isso?

— Fica tão aparente? — murmurei, olhando para meu instrumento musical.

Ele afirmou com um aceno de cabeça e em seguida sorriu gentilmente, um sorriso pequeno, de canto.

— Apenas tente tocar um pouco mais suave, você é a dança enquanto Ara é a narradora. Você vê os fatos acontecerem, mas não os conta. É a trilha sonora da cena mais emocionante — ele se sentou em frente ao piano e começou a tocar, ele sequer olhava para as teclas, como se soubesse exatamente onde se encontravam. — É uma valsa senhorita, não se esqueça disso.

Theodor se levantou e foi apontar os erros de Arabesque em seguida. Mas não prestei atenção, estava mais ocupada encarando a parede com a boca aberta em um magnífico O.

— Estupefata? — o violinista me olhava com um sorriso divertido nos lábios.

— Um pouco, confesso. É uma crítica... Diferente — ainda estava um pouco atônita mas pelo menos não estava mais paralisada.

— Meio lírico, não é? — comentou, e concordei com o que Jean dissera. — Ao contrário dos professores que dizem teoricamente o problema, Theo prefere metáforas para não soar rude. É até um pouco engraçado quando não sou eu que estou sendo criticado — ele soltou uma risada sem graça.

— Sinceramente, prefiro a forma metafórica dele aos gritos de Edgar — me arrepiei apenas de lembrar sobre as situações que passei com meu famigerado professor.

— Não me diga que Edgar é seu professor?! — perguntou e em resposta assenti. — Como você ainda está viva?!

— Me faço essa pergunta todos os dias...

Por algum motivo, nós dois começamos a rir e só paramos quando Ara disse para voltarmos a ensaiar.

Repassamos a música centena de vezes, e no começo Theodor sempre apontava o que precisávamos melhorar, mas com o tempo acabou que ele não dizia mais nada, apenas nos analisava.

Ficamos uma eternidade naquela salinha e não percebemos que era tão tarde, as horas haviam passado rápido demais e já era madrugada. Só restávamos nós duas, Jean e seu colega foram embora já fazia alguns minutos.

— Meu Deus! Precisamos ir para casa logo, Lyra! — Ara exclamou guardando as partituras e seu violino na capa. — Falando nisso você quer que eu te leve de carro até sua casa?

— Não precisa, Ara, vou ficar mais um pouco para organizar algumas partituras que deixei na sala do Edgar — dei meu sorriso mais gentil e tranquilizador para que ela não insistisse.

— Não demore, esse horário é perigoso — Ara se despediu e saiu, deixando-me sozinha. Apenas eu e o piano.

Tirei algumas partituras da bolsa e comecei a praticar novamente.

Sonata para piano No. 8 Op. 13 em C menor, mais conhecida como Sonata Patética, uma peça dedicada ao príncipe Karl Lichnowsky, um amigo de Beethoven.

O início lento, porém forte. As nuances são muito sutis, fazem todos que a estão ouvindo começarem a formar um cenário quase que de fantasia, é uma introdução para o allegro que virá em seguida.

O primeiro movimento funciona como um tremolo e cria uma tensão quase palpável. A energia não se dissipa com o decorrer dos compassos. Minha mão direita desliza sob o piano dançando a melodia enquanto a esquerda a acompanha. A tensão vai aumentando e um crescendo intenso surge, utilizando todos os extremos do piano.

O segundo movimento representa uma das páginas mais belas já escritas na música. A suave, acompanhada pelas que somente poderiam ter saído da pena de Beethoven criam uma atmosfera de tranquilidade e calma impressionante. O movimento se desenvolve baseado na técnica de variação onde o tema permanece ali, quase imutável, mas com o se modificando a cada vez.

O terceiro, e último, movimento, o rondó é uma prova de que Beethoven não compunha um rondó meia boca, todos eram fenomenais e esse não podia ser diferente. É uma forma nova, uma junção do rondó e da sonata.

Ao tocar a última nota senti uma leveza, como se tivesse descarregado todo o cansaço que sentia durante aquela sonata. Tocar algo apenas por diversão é, com toda a certeza, o melhor jeito de tocar e se expressar com a música. Afinal, se não for por diversão não será verdadeiro e se alguém toca falsamente acaba não sendo música, apenas ruído.

Não se pode fazer nada sem paixão, se não ama o que faz então por que continua? Vivemos apenas uma vez, nós só temos uma única chance de trabalhar com o que realmente nos satisfaz, então por que tantas pessoas jogam essa chance no lixo? Será mesmo que uma boa vida financeira compensa a angústia de ser infeliz? Não compensa trabalhar com o que gosta e ter uma vida razoável? Afinal, felicidade não é o mais importante?


  ♪♪♪ 

 

Organizei minhas coisas e sai da sala. Assim que abri a porta meus ouvidos detectaram o som de um violino.

O senhor Sebastian Bach era provavelmente um dos meus compositores prediletos. Não apenas por ser o responsável pela minha entrada no Conservatório, mas também por suas apaixonantes composições que fazem meus olhos brilharem.

Violino Partita No. 2 em D menor, um dos solos de violino mais belos em minha humilde opinião. E estava ainda mais deslumbrante. Havia ouvido aquele violino apenas uma vez, mas já sabia reconhecê-lo.

Senhor Capriccioso era reconhecível em qualquer lugar. Sua música era diferente das outras, ele tocava com leveza e força, com elegância e divertimento. Trazia forma mais pura de uma peça e nos hipnotizava com sua melodia. Ele não era um simples violinista, era alguém que respirava música, que tinha paixão pelo que fazia e não se importava com o resto, a forma mais pura e verdadeira de um musicista.

Esse estranho que tanto me causava curiosidade e que fazia-me sonhar apenas com um movimento de arco. Quem seria esse tão sonhador e caprichoso violinista?





Allegro: é um andamento musical leve e ligeiro. No metrônomo costuma situar-se entre 120 e 134 batidas por minuto.

Tremolo: repetição rápida de uma ou uma alternância rápida entre duas ou mais notas musicais.

Rondó: aquela que introduz um tema - chamamos de (A) -, após o fim de "A", apresenta um novo tema - (B) -, e após seu término retorna ao tema original (A) e após o término de "A", novamente introduz um novo tema - (C) -, e assim por diante sempre apresentando um novo tema após a repetição do tema principal (A). A Forma rondó é vista: A-B-A-C-A-D-A etc.

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