♪Duetos & Sonatas

"Se não fosse pela música, não haveria mais razão para dar em louco."

—Tchaikovsky.

♪♪♪

Dedos machucados. Que absurdo! Ser obrigada a não tocar piano durante um dia inteiro... Em outros lugares isto seria chamado de tortura, mas para o Senhor Perfeccionista não era nada demais. Este professor desalmado deveria permitir que praticasse no mínimo peças simples, é doloroso ouvir outras pessoas tocando e expressando todos os sentimentos enquanto estou fadada a esperar horas para fazer o mesmo.

Os corredores estavam silenciosos, provavelmente porque a maioria dos alunos estava assistindo ao ensaio da orquestra. E os entendo, afinal, não é todo dia que um renomado maestro dá as caras em um não tão conhecido Conservatório. Era tedioso ficar sozinha, ouvindo apenas o som dos meus sapatos ecoando.

Inconscientemente comecei a andar em ritmo de valsa, e devo confessar, não foi uma boa ideia muito inteligente. Até porque qualquer idiota poderia aparecer e me ver nesta vergonhosa situação.

E não, não foi isso que aconteceu.

Para grande surpresa de muitos, ninguém me viu neste momento constrangedor. E devo dizer que o motivo não tenha um nome, mas sim um apelido.

Senhor Capriccioso atacava novamente. Com seu arco e violino implacáveis, com a leveza de uma tarde de primavera e o sentimento de uma noite de inverno. Poética, lírica, melódica, calma, precisa e inalcançável.

Porém desta vez não estava sozinho, um piano o acompanhava durante a forte entrada do primeiro movimento da Sonata para Violino em Mi Menor de Edward Elgar.

Os instrumentos brigavam entre si, cada um pedindo mais espaço para mostrar seu verdadeiro brilho. Dois solistas em um dueto. Diferente da maioria dos duetos que conhecia, os dois se destacavam. Era um milagre o violino não encobrir o piano. Uma boa peça para mostrar o que os dois eram capazes.

A tempestade de guerra terminou dando inicio a uma calmaria onde tudo estava em conjunto. Respeitavam o espaço um do outro e mesmo assim conseguiam se sobressair Mas a serenidade foi se esvaindo aos poucos voltando ao agito de antes.

Essa bipolaridade não acabava. Oras a agressividade, oras a brandura. E foi assim até a última nota.

Enquanto procurava desesperadamente a direção na qual o som vinha, virando em cada corredor. Encontrei uma sala escura, era de lá que vinha o som, tinha certeza absoluta. Aproximei-me da pequena janela que havia na porta e consegui identificar duas silhuetas. O violinista parecia usar um sobretudo e uma boina, ironicamente lhe caiam bem a imagem de caprichoso, porém não conseguia ver seu rosto, ele estava de costas para mim e as sombras impossibilitavam de enxergar qualquer outra característica física dele. Já a acompanhante usava um vestido longo que não pude identificar a cor, e os cabelos estavam presos em um coque bem feito.

Quem serias tu, misterioso Capriccioso? Que mesmo vendo-te ainda escondes tua face.

Talvez se ficasse encarando-o ele viraria para a minha direção? Não... Isso faria parecer que sou uma maluca, o que não seria uma boa primeira impressão. Porém a curiosidade me remoia por dentro e todas as vezes que este violinista fazia sua música ressoar me causava essa necessidade de descobrir quem seria o famigerado originador do som. E mesmo estando tão próximo parecia tão longe...

Levei a mão à maçaneta e tentei girá-la, mas estava trancada, a mulher ao seu lado olhou instantaneamente para a direção da porta, porém ele sequer se mexeu. A jovem respondeu algo ao musicista, entretanto não era possível escutar suas vozes, provavelmente estavam sussurrando.

Estava fadada a continuar na expectativa de descobrir a identidade deste caprichoso homem.


  ♪♪♪  


Ao me aproximar da rua de casa notei que as luzes da sala estavam acesas. Será que as deixei ligadas por acidente quando sai? Ou pior, será que alguém estava roubando minha casa?

Devo admitir que a segunda opção fosse bem improvável, não que o motivo seja morar em um bairro muito seguro ou algo do tipo. Na verdade, morava no bairro mais simples e barato que encontrei na época, e minha casa, arquitetonicamente falando, não chamava atenção por ser bonita ou grande. A entrada era apenas um portãozinho um pouco enferrujado, dos dois lados da porta de madeira sem graça tinha dois ramos de flores violetas que não fazia ideia de qual seria a espécie. Não é uma casa que chamaria a atenção de um ladrão.

Cuidadosamente entrei em casa e me senti aliviada por não ter ninguém na sala. Se bem que não haveria o que roubar na sala, além de meu estimadíssimo piano de cauda, mas duvido que um ladrão saiba o valor sentimental ou tenha força suficiente para roubar algo deste porte.

Deixei minha bolsa em cima do instrumento musical e tirei algumas partituras de dentro, aqui ninguém me obrigaria a ficar parada. Sentei-me em frente ao meu amigo inanimado e quando ia tocar a primeira tecla ouvi o barulho de panelas caindo na cozinha.

De fato havia alguém aqui. Mas quem no mundo roubaria suas coisas e de brinde faria uma bela refeição? Que tipo de ladrão seria esse? Será que a nova tendência dos assaltantes é retribuir o favor de ter roubado suas coisas cozinhando?

Procurei por algo que pudesse usar como arma, mas não havia nada na sala além do piano, e minha bolsa tinha apenas uma caneta. Não sou muito boa em tiro ao alvo, mas acho que consigo acertar alguma parte do corpo do ladrão caso precise.

E foi assim, armada com apenas uma caneta que fui combater o bandido.

Andei cautelosamente em direção à cozinha e me surpreendi quando vi, invés de um furtador estava lá meu querido irmão guardando as panelas que havia derrubado apressadamente.

Joguei a caneta na direção de James que se assustou e deixou uma frigideira cair novamente. Tive dificuldade de segurar o riso e acabei me denunciando.

— Não invada a casa dos outros, James. Seus pais não lhe deram educação? — Guardei a panela no armário e me virei para o homem ao meu lado.

— Tecnicamente eu não invadi já que tenho a cópia da chave. — Sorriu triunfante.

— O que faz aqui? — perguntei, cruzando os braços. — Você nunca me visita sem motivo, não importa onde seja — continuei. — E aquela vez que foi ao Conservatório completamente sem sequer avisar não foi apagada de minha memória.

— Está observadora demais senhorita Scherzo. Não sou uma partitura que precisa ser lida com cuidado, então pare de me olhar como se quisesse ver o fundo da minha alma. — ele se sentou em uma cadeira e apoiou o cotovelo na bancada.

— Não fuja do assunto, irmão. Diga-me o que veio me dizer.

Comecei a mexer os dedos em meu ombro, como se estivesse tocando em teclas invisíveis de um piano, um evidente sinal de ansiedade.

— Você sempre fica nervosa quando o assunto é a família... — Suspirou, encarando-me, porém desviei o olhar para o lado. — Eu entendo o motivo, mas está na hora de superar o passado, Lyra.

— Eu já superei... — comentei vagamente. — Mas isso não quer dizer que os tenha perdoado.

James ficou em silêncio, não parecia crer em minhas palavras. O que não era nenhuma novidade, sempre que tocava no assunto minha resposta era a mesma e sua falta de crença, também.

— O que acha de jantarmos fora desta vez? — cortou o silêncio. — Conversar sobre coisas trivias e rir na companhia de um bom vinho, não acha uma boa ideia?

Cogitei dizer não, porém minha curiosidade de descobrir o que meu irmão fazia no Conservatório alguns dias atrás era maior e acabei aceitando seu convite.


  ♪♪♪  


O bem frequentado restaurante francês Rebeniel era o predileto de James desde sempre.

A entrada luxuosa de portas duplas de madeira com detalhes em dourado e prata juntamente com as colunas de mármore branca deixavam claro o alto padrão das pessoas que o frequentavam.

Fazia anos desde a última vez que havia jantado neste lugar e não me imaginei voltando.

Deixamos o carro na frente do estabelecimento e meu irmão jogou as chaves para um dos funcionários enquanto outro abria a porta para nós, ao entrarmos dois jovens vestidos com casacas pretas e coletes brancos nos leva para o segundo piso do restaurante, que era mais reservado.

As paredes estavam decoradas com papéis de parede bege com detalhes sutis em branco, o ambiente era iluminado por candelabros e um lustre pendurado no centro, as lâmpadas com tons amarelados deixavam o ambiente mais aconchegante. As mesas estavam cobertas até o chão com um tecido aveludado azul e com outra toalha branca em cima, os talheres postos em estilo europeu, as cadeiras de veludo creme combinavam perfeitamente com o resto da decoração.

O garçom logo trouxe o menu e começamos a avaliar as opções, mas no final tínhamos consciência que os pratos seriam os mesmo da última vez. Éramos previsíveis. Fizemos nossos pedidos e fomos deixados sozinhos.

— Como anda os estudos? — perguntou ele deixando o cardápio de lado.

— Estressantes — dei de ombros. — A apresentação para a banca está se aproximando e para piorar terei que encarar não apenas os meus juízes e sim os de violino — suspirei.

— Por que os de violino? — James cruzou as mãos e encaixou seu queixo em cima delas. — Não me diga que agora a caridade vem em forma de música — riu da própria piada ruim.

— Claro que não. — Revirei os olhos. — Estou apenas ajudando Arabesque que não tinha encontrado um acompanhante. Agora estou fadada a aprender Love's Sorrow juntamente com a sonata de Chopin, e céus! Frederick era um sadista com certeza!

Meu irmão me olhou achando graça do que falei.

— Você realmente está fazendo caridade... — ele deu um sorriso de canto. — Este seu jeito nunca mudará, sempre foi assim e sempre será. Lembro-me da sua visita ao orfanato quinze anos atrás, guardo boas lembranças deste dia... — sua expressão sonhadora era como se estivesse voltado ao passado e revivesse todos aqueles acontecimentos em poucos segundos.

James não parecia ter trinta e seis anos em momentos como esse. O olhar distante e bobo com brilho nos olhos lembrava uma criança que sonhava com seu próximo presente de aniversário. Mesmo sendo mais nova, em situações como essa sentia como se fosse a mais velha.

— Como anda as cirurgias? — mudei de assunto, tomando um pouco de vinho.

— Estão bem, a última que fiz foi na hipófise e foi bem sucedida. Senti-me aliviado quando vi os resultados positivos. Ser responsável pela vida de alguém é muita responsabilidade — fez uma pausa. — Mas não me arrependo de ter escolhido esta profissão, gosto muito do que faço.

— Um verdadeiro membro da família Scherzo — falei tentando soar engraçada, porém meu sorriso amarelo me denunciava.

James não respondeu, apenas continuou sua refeição ignorando meu comentário. E foi melhor assim.

Ficamos em silêncio por um bom tempo até que decido quebrá-lo:

— O que foi fazer no Conservatório dias atrás?

— Ah sim! Ainda não lhe contei — falou animadamente. — Conversei com Edgar, perguntei como estava o seu rendimento e se você estaria apta para se apresentar em um evento qualquer. Ele disse que não teria problema contanto que não atrapalhe seus estudos para o teste final.

— O que quer dizer com "me apresentar"? — Arqueei a sobrancelha, duvidosa de sua resposta.

— Haverá um evento beneficente na próxima semana e fui encarregado de te convidar a participar. Você precisaria tocar apenas uma peça, nada muito longo. — Minha sobrancelha se arqueou mais do que pensei ser possível, descrendo de tudo que ouvia. — É uma boa oportunidade de ganhar um pouco de reconhecimento, mesmo que pouco...

— Afinal, sejamos sinceros a maioria não liga para a música erudita — o interrompi.

— Talvez isso seja verdade. Mas gostaria muito que aceitasse a oferta. Haverá alguns musicistas por lá, e seu maestro favorito no qual não me lembro do nome estará presente também.

Comecei a refletir sobre a proposta recebida. Não era ruim, entretanto não tinha tempo para ensaiar outra peça, estava ocupada demais. E o evento seria em meros sete dias, meu tempo estava se tornando precioso demais e não sei se conseguiria conciliar todos os meus estudos. Porém era uma boa oportunidade para ser reconhecida por alguém famoso na área...

Minha cabeça entrava em dilema, não sabia o que fazer e quanto mais pensava menos encontrava uma resposta.

Decidi não refletir mais sobre o assunto e apenas responder:

— Tudo bem, irei participar — suspirei.

Será que fiz uma boa escolha aceitando? Acho que isso só o tempo me dirá.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top