♪Bemol

"O mais velho, o mais verdadeiro e mais bonito órgão da música, cuja origem deve vir da nossa música é a voz humana."

— Richard Wagner.  

♪♪♪


— Na verdade — Edgar olhou de relance para James. — Eu deveria esperar te ver por aqui.

Ele adentrou o apartamento sem pedir permissão, foi para a cozinha, roubou uma das minhas panquecas e se sentou ao lado de meu irmão. Até parecia que ele era o dono da casa!

— Educação mandou lembranças, Edgar — revirei os olhos.

— Desculpe, senhora — ele bocejou e em seguida tirou um remédio do bolso.

— Quer dizer que o demônio também tem ressaca? — falei pasma e com um sorriso brincalhão dançando nos lábios.

— Quer dizer que a madame sabe incomodar? — respondeu. — Não precisamos dizer coisas óbvias, certo?

— Querem falar mais baixo, por favor? — James resmungou mais mal humorado do que nunca.

— Não tenho culpa se você exagerou na dose ontem — acusei. — Foi sua escolha passar da linha, agora arque com as consequências.

— Entendi, entendi — ele se levantou. — Vou para o meu quarto e não me incomodem.

Meu irmão foi em direção ao corredor e desapareceu. Ouvi Edgar suspirar profundamente.

— Edgar... — o chamei. — O que exatamente está fazendo aqui? — arqueei a sobrancelha.

— Vim verificar se James estava bem — deu de ombros. — Seu irmão não é um dos mais responsáveis quando se trata de bebida.

— Presumo que não seja a primeira vez que isso acontece...?

— Olha só! A moçoila sabe raciocinar quando quer!

— Agora que você já sabe que James está bem, pode ir embora — apontei para a porta, um pedido nada discreto para que saísse.

— E você vai fazer o quê, Lyra? Enxotar-me para fora? Duvido muito! — debochou.

Ele terminou de comer as que deveriam ser minhas panquecas e abriu a geladeira.

— É sério, Edgar! Sua mãe não lhe deu educação, por acaso?! — chamei sua atenção o repreendendo.

—Veja só... Ela acha que pode me repreender só porque não estamos em horário de aula! — ele riu. — Que gracinha a sua inocência, Lyra...

— Seu filho da...

— É feio xingar as pessoas, Lyra. Principalmente seu maravilhoso professor — Edgar ria da situação de um jeito debochado, como sempre fazia.

— Você é realmente o Diabo em pessoa, Edgar! — exclamei. — Por que não volta do inferno de onde veio?

— Porque o verdadeiro Diabo se sentiu ameaçado pela minha "crueldade" e com medo de alguém roubar o seu cargo, me jogou aqui na Terra para que eu infernizasse as vidas alheias. Uma bela história, não acha? — brincou. — Mas não se preocupe, serão apenas mais três anos que precisará conviver comigo e mais uns setenta na sua vida pessoal...

— O melhor amigo do meu irmão é um demônio com toda a certeza do mundo!

— Que ideia interessante — disse pensativo, provavelmente tramando alguma estratégia para ferrar a vida de um ser humano. — Acho que vou sugerir isso para Edward, já o imagino escrevendo um romance sobrenatural erótico péssimo sobre um demônio e uma colegial.

Cai na gargalhada junto com Edgar, imaginando a cena. Não conhecia o escritor muito bem, mas me parecia que um clichê daquele nível não era muito seu estilo.

— Me diz, há quanto tempo vocês dois moram juntos? — a pergunta escapou dos meus lábios sem que tivesse a menor chance de impedi-la.

— Acho que faz cerca de nove anos... Um pouco mais, um pouco menos, não tenho como dizer com precisão.

— Por quê? Digo, vocês são totalmente diferentes e ele odeia a sua profissão! Não entendo como isso funcionaria! — exclamei, sentando-me em frente à mesa.

— Lyra, você gostava de morar com seus pais?

— Teve uma época que não — na época em que eu era uma adolescente bem irritante, diga-se de passagem...

— Mas você continuava lá. Por quê?

— Conveniência financeira, eu não tinha idade para começar uma vida sozinha e muito menos maturidade — dei de ombros. — A única opção era continuar morando por lá, mas não me parece a mesma coisa que aconteceu com vocês...

— Na época nós dois procurávamos por um lugar para morar, então decidimos dividir os custos. Conveniência financeira.

— Mas deve ter sido difícil no começo, não?

— Ironicamente, no começo foi muito mais simples.

— Por que foi mais fácil?

— Edward não tinha nenhum problema com os musicistas naquele tempo, na verdade, ele era um excelente violinista. Amava a música mais do que tudo, parecido com você eu diria. As coisas complicaram quando ele voltou de viagem, anos atrás, com um rancor enorme no peito. Não faço ideia do motivo e sinceramente, não quero saber.

— Quer dizer então que ele era... parecido comigo? — falei um pouco hesitante.

— De certa forma, sim. A paixão desenfreada pela música, ele pelo violino e você pelo piano. O modo lírico de ver a vida também, mas no fim ele se tornou um melancólico que transforma suas dores em palavras, não em melodias. Começaram com o mesmo pensamento, mas vão terminar em direções totalmente opostas.

Edgar levantou e abriu a geladeira, em seguida pegou uma jarra de suco e se serviu.

— Você não é o dono da casa, pare de agir como se fosse!

— Eu tenho mais direito de abrir essa geladeira do que a senhorita — deu de ombros. — Diferente de você, eu o visito regularmente — falou em um tom inquisitivo.

— Está me acusando de algo, Edgar?!

— Talvez... Por que não tenta descobrir? — ele levantou as sobrancelhas e se sentou no lugar de antes. — A propósito, você deveria vestir algo mais decente — seu olhar desceu pelo meu corpo com um ar divertido e um sorriso pretensioso nos lábios.

Encarei-me no espelho, a camisola estava mais curta do que pensei quando a coloquei na noite passada. Se bem que com o estado que o álcool me deixara ontem, era possível que eu tenha visto um comprimento diferente. Senti meu rosto esquentar instantaneamente. Mais uma vergonha conquistada com sucesso.

— Constrangida? — ele achava graça da situação. — Não se preocupe, não tenho interesse em crianças.

— Eu não sei se fico aliviada ou irritada! — exclamei.

— Não me diga que você está interessada em mim, pequena Lyra — ele se divertia e gargalhava sem parar.

— Passo a minha vez, Edgar. Não me interesso por carrascos.

— Primeiro demônio, agora carrasco... Qual será o próximo?

— Não sei... Por que não tenta descobrir? — citei sua própria frase com um sorriso vitorioso.

— Passo minha vez, Lyra — ele revidou da mesma forma.

Não sabia muito bem o que responder e por sorte o toque do meu celular me salvou de criar uma resposta. O peguei da mesa e olhei o visor para ver quem me ligava.

— Bom dia melodia! — exclamou Ara pelo outro lado da linha. — Como está nossa pianista predileta?

— Um pouco de dor de cabeça, nada grave. E você?

— Estou ótima! — ela deu uma pausa, parecia que falava com alguém ao seu lado. — Eu te liguei para perguntar se estaria interessada em passear comigo, Theo, Jean e Cel? Para celebrarmos o término das audições?

Pensei em recusar, a última celebração resultou no meu irmão vomitando no corredor, mas seria bom passar um tempo com alguns amigos. Fazia muito tempo que não marcava um programa desses.

— Claro! Onde será?

— Nós vamos nos encontrar no Awamori no horário do almoço, tudo bem para você?

— Sim, é perto de onde estou. Daqui uma hora apareço ai — falei sorrindo. — Vai ser bom relaxar um pouco e curtir um tempo com vocês.

— Vai mesmo! Te vejo lá, Lyra! E não atrase! — ela encerrou a ligação.

— Como se eu fosse demorar a aparecer... — suspirei e deixei o celular encima da mesa.

— Pelos berros imagino que seja Arabesque? — James apareceu pela porta, coçando os olhos. Provavelmente acordou de um cochilo.

— Era sim — me aproximei dele. — Está melhor?

— É só uma ressaca, Lya — disse, rejeitando minha ajuda. — Não estou morrendo.

— Até porque ele saberia se estivesse chegando seu fim — brincou Edgar, mas nenhum de nós riu. — Sabe, ele é médico e...

— Nós entendemos, Edgar, a diferença é que não teve graça — respondi, um pouco seca talvez...

— Acho que o título de pior piadista não está mais comigo — meu irmão comentou e demos risada juntos enquanto Edgar apenas revirava os olhos. — Já sei o que você vai dizer "não tem graça, James" — ele imitou a voz do meu professor de um jeito muito convincente e me fez gargalhar ainda mais.

— Acho que você está bem melhor mesmo, senhor Hersenen. Isso quer dizer que já posso ir...

— Mas não ouse sair deste apartamento, Edgar Adagietto! Você irá cumprir com o que combinamos e ficará aqui!

— James, não tente ser o autoritário aqui. Já está óbvio que quem manda aqui sou eu — o professor demoníaco sorria do jeito pretensioso de sempre.

— Que gracinha vê-lo se iludir... — James se inclinou para frente com um sorriso provocador nos lábios.

Eles provavelmente esqueceram a minha presença e eu tinha a sensação que aquela conversa não era algo no qual eu estava interessada em ouvir.

Fui até o quarto que havia dormido, peguei uma muda de roupas e fui para o banheiro.


Algo que eu invejava muito no lar de James era a banheira. A ideia de ter um banheiro espaçoso se perdera no tempo e agora era apenas na casa de meu irmão que poderia desfrutar de regalias como essa. Afinal, meu banheiro era menor do que a bondade de Edgar, ou seja, minúsculo.

Imergi minha cabeça por completo e fiquei um tempo debaixo d'água, os pensamentos correndo, todos desconexos e que não me levavam a lugar nenhum. Algo me deixava inquieta, deixava meu coração ansioso, mas não fazia ideia do que poderia ser isso.

Emergi da água e encarei a parede branca com ornamentos dourados, os desenhos elegantes que não saberia especificar como se pareciam, me ajudavam a distrair meus pensamentos difusos.

Sai da banheira e me sequei. Em seguida vesti um vestido cor vinho de mangas compridas. Observei meu rosto que refletia no espelho, meus cabelos molhados caíam em meus ombros, com nós difíceis de tirar e que demorariam um tempo para deixar meu cabelo apresentável.

Depois de pronta sai do banheiro e a casa parecia vazia, estava silenciosa demais. Onde será que James estava?

Procurei pelos cômodos, mas realmente não havia ninguém. No fim, sai do apartamento e deixei a chave embaixo do tapete para que James a encontrasse quando voltasse.


  ♪♪♪  


Como era de se esperar, o Awamori estava lotado. Não era possível encontrar uma cadeira vazia, exceto por uma ao lado de Ara.

A violinista acenava freneticamente e gritava para chamar minha atenção, e a de metade das pessoas que estavam lá também. Acabei sorrindo e acenando de volta para que ela parasse de passar vergonha, mesmo a loira não ligando.

Aproximei-me da mesa em que o nosso pequeno grupo se encontrava, e eu provavelmente era a única que estava com uma cara de quem teve uma noite difícil. Os outros estavam tranquilos e conversavam alegremente.

— Boa tarde, Lyra! — Arabesque me cumprimentou. — Como você demorava, acabamos pedindo alguns minutos atrás...

— Não tem problema, Ara. Como vocês estão? — me dirigi aos outros.

— Vou muito bem, afinal eu arrasei com meu violino! — Jean brincou, fazendo uma jogada de franja, que ao voltar o deixou com uma aparência ridícula que fez todos a mesa rirem.

— Falando nas apresentações, você se saiu muito bem — me dirigi a Theo que estava sentado ao meu lado.

— Está meio atrasada com os cumprimentos, Lyra. A maioria me disse isso ontem — falou ele, fingindo braveza. — Esperava mais de você, senhorita.

— Perdoe-me lorde Seoltóir, prometo que este erro não acontecerá novamente — entrei na brincadeira.

— Acho bom ou as consequências virão — ele deu uma risada maléfica.

— Já descobrimos que além de um excelente maestro, Theo é um ótimo ator. Lyra você perdeu as pérolas de ontem! — Ara se pronunciou.

— É verdade! Foi hilário! — Celesta concordou, rindo provavelmente do que havia ocorrido.

— O que foi que o Theodor aprontou? — perguntou Jean que pegou o meu papel de curiosa em ação.

— Elas estão aumentando a história, não foi nada extraordinário, vocês nem deveriam se interessar... — Theo deu de ombros, desinteressado.

— Pare de ser modesto, Theodor! Você nos preocupou de verdade ontem!

— O que aconteceu?! — eu e Jean falamos em uníssono, incapazes de nos controlar.

— Nada demais, já disse...

— Vocês se lembram do cara que apresentou a mesma música que o Theo, mas que foi péssimo? Então, esse moço foi debochar do Theo e ele começou a fingir que estava passando mal, eu e a Cel pensamos que era de verdade, mas o pior foi o cara que entrou em desespero e começou a se desculpar e dizer que ele era horrível na música e etc. E então, o Theo voltou a normal e falou: eu sei disso. E saiu andando como se nada tivesse acontecido! — Ara contou tudo, parecia uma metralhadora narrando a história e fazendo barulhos engraçados para deixar tudo mais intenso.

— Ele faz isso o tempo todo — Jean deu de ombros, frustrado. — Não deveriam estar surpresas, e vão ver que isso se torna uma chatice depois de um tempo. Pelo menos o vício por teatro dele diminuiu...

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