♪ Appassionato

"Os músicos utilizam de todas as liberdades que podem." 

    — Beethoven

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Não sei quanto tempo fiquei naquela sala tocando, a única coisa que sei foi que quando sai o céu já estava negro. Assim que comecei a andar pela calçada uma forte ventania me pegou de surpresa. Mesmo vestindo um casaco, não parecia suficiente. Era um frio cortante de uma noite sem fim, e eu provavelmente pegaria um resfriado por causa disso.

Entrei no primeiro estabelecimento que parecia ter aquecedor para me abrigar do frio. E isso me fez lembrar que era necessário arrumar o meu próprio aquecedor, afinal onde já se viu um pianista esquimó?

Quando entrei no mercado comecei a pensar no que comprar para o jantar e também para o resto da semana. Não queria passar pela mesma situação de não encontrar nada para comer duas vezes seguidas.

Passeei pelas prateleiras em busca de opções, mas não me veio nada na cabeça. Acabei comprando o básico para sobrevivência humana: macarrão, molho e vinho, muito vinho. Afinal, se você tem vinho e massa não lhe falta mais nada.

Paguei pelas minhas comprinhas e voltei para casa tomando alguns goles da bebida alcoólica para me esquentar um pouco. Mas quando dei por mim já estava na metade da garrafa de 1,5 litros, ao chegar em casa ela já tinha acabado.

Coloquei as sacolas em cima da mesa e tirei os ingredientes das mesmas. Fui em direção à cozinha e comecei a preparar meu jantar que seria acompanhado por água para não beber todas as garrafas que trouxe em uma única noite.

Confesso que não estava completamente lúcida naquele momento, não chegava a estar bêbada, mas também não estava no meu normal. Porém o álcool que circulava em minhas veias não me atrapalhou a finalizar meu prato, que no final das contas não estava ruim.

Depois de me alimentar e beber uma boa dose de... Água, tomei um banho quente e me deitei na cama. Peguei o livro que estava em cima da mesa de cabeceira e acendi o abajur, li algumas páginas das famigeradas cartas de Mozart e logo cai no sono.


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Desta vez ironicamente acordei antes do horário. E também de bom humor, coisa rara. Pois, diga-se de passagem, ninguém é feliz às seis da manhã.

Arrumei minhas coisas com calma, sai de casa e caminhei até a cafeteria de sempre.

Neste horário ela estava vazia, havia apenas um cara sentado no balcão, que conversava animadamente com Henrique. Aproximei-me e me sentei ao lado do jovem.

— Como você pode ser tão irritante, Anthony?! — Henri revirou os olhos enquanto suspirava. Ele estava de costas para mim, então acho que não percebeu que eu havia chegado, entretanto ele se virou para minha direção e me viu. — Bom dia, Lyra! Acordou cedo hoje!

— Bom dia, Henri! Como você está? — exclamei, com um sorriso alegre.

O suposto Anthony se mexeu na cadeira, parecia desconfortável com a súbita mudança de assunto. Interromper a conversa alheia não é uma coisa bacana... E eu apenas percebi que iria atrapalhá-los quando isto já acontecia. Muito inteligente da minha parte.

— Estou ótimo! Como vão as coisas com as partituras? — ele voltou para perto da máquina e começou a preparar o meu pedido, como sempre.

— Complicadas... — respirei profundamente. — Ara furou comigo ontem, e o professor Edgar me destruiu quando apresentei Chopin. Nada fora da rotina — dei uma risadinha que ele retribuiu.

— Bom — o cara ao meu lado se pronunciou. — Estou de saída, Henrique — ele pegou suas coisas e foi em direção à saída.

— Espere Anthony... — Henri o chamou, mas foi ignorado pelo bater da porta. O ouvi suspirar ao meu lado.

— Está tudo bem, Henri? — tentei perguntar da forma mais calma possível. — Ele é seu...

— Não, não, não, não! — ele me interrompeu, negando sem cessar. — Anthony é... — Henri começou a pensar e sua expressão era engraçada, um engraçado fofo. — É complicado.

— Vocês estão saindo?

— Não... — murmurou.

— Henri, você pode me contar as coisas. Lembre-se disso — segurei suas mãos gentilmente.

Ele olhou ao redor por um tempo para depois voltar a me encarar.

— Anthony e eu... — começou a falar, mas ele falava tão baixo que mais parecia um sussurro.

— Henrique! — gritou seu chefe, cortando o clima de confissão. — Pare de conversar e volte ao trabalho! O café está começando a encher!

— Bom, eu preciso ir Lyra — ele voltou para trás da máquina.


  ♪♪♪  


Chegar quinze minutos antes da aula era estranho. Fazia décadas que isso não acontecia, e o vazio da sala de aula não parecia certo.

Esperei meus dois colegas aparecerem, o que parecia demorar uma eternidade. Enquanto os aguardava tirei minhas partituras da bolsa e as organizei, e esse tempo fora suficiente para que senhores Klavier e Keana dessem o ar de suas graças.

— Bom dia, Lyra! — gritou Keana alegre como sempre.

Vivo me perguntando como essa mulher era capaz de estar de bom humor às seis da manhã. Mas em contra partida Klavier parecia um cadáver, suas olheiras estavam maiores hoje e ele parecia ainda mais magro.

— E bom dia senhor morto-vivo — ela encarou nosso colega moribundo.

— Klavier, não me diga que passou mais de três dias sem comer de novo — falei encarando-o com seriedade.

— Claro que não... — ele fugiu de meu olhar entregando sua mentira, como sempre acontecia.

— Quantas vezes já lhe disse que você precisa se alimentar no mínimo três vezes por dia, dormir oito horas diárias...

— Desculpe mamãe — revirei os olhos quando o violoncelista me provocou. — Mas você também, Lyra... É a suja falando do mal lavado! Todos nós sabemos que quando uma competição se aproxima você se tranca no quarto e não come nem dorme, apenas toca piano.

Respirei profundamente, nossas conversas sempre começavam assim. Eu reclamando da sua falta de cuidado consigo mesmo, ele me chamando de "mãe" e dizendo que eu fazia as mesmas coisas.

A professora chegou no instante seguinte, carregando a floresta amazônica em forma de folhas de papel. Ela sempre foi muito atrapalhada e normalmente as partituras estavam sempre fora de ordem e davam mais trabalho ainda para os alunos e para si mesma. Mesmo assim, Alla era uma ótima professora e diferente de Edgar, uma pessoa simpática e que não queimaria no inferno por fazer seus estudantes sofrerem com palavras rudes.

Entretanto hoje ela não estava sozinha, e a pilha de papéis estava muito bem organizada nos braços de um jovem ao seu lado. Provavelmente ela havia deixado cair no meio de algum corredor e aquele homem a ajudou.

— Bom dia, queridos! — a professora nos cumprimentou com um largo sorriso em seu rosto redondo.

— Que surpresa te ver por aqui, Leitmotiv... — Klavier olhou para o homem friamente. — Pensei que estava participando de uma competição na Alemanha, mas você voltou muito cedo... Quer dizer que foi desclassificado logo nas preliminares? — ironizou.

— Não fique tão confiante, Klavier, na verdade, já ganhei a competição. Se quiser pode ver meu prêmio na sala dos troféus aqui da escola — retrucou arrogantemente.

Ele colocou as partituras em cima da mesa e foi embora se despedindo da professora com um aceno de cabeça. Pelo visto um jovem realmente "muito" educado.

Ouvi meu amigo bufar, mais mal-humorado do que antes. A professora pegou algumas folhas e nos entregou, calma como sempre.

— Pois bem, meus queridos! Hoje iremos revisar a op.1 no.1 de piano trio de Beethoven. Nem sei por que vou lhes entregar as partituras, depois de tantos ensaios vocês já devem ter decorado! — seu sorriso apareceu mais uma vez, iluminando aquele rosto rechonchudo.

Troquei olhares com Keana e Klavier, nós três estávamos na mesma situação: não lembrávamos uma nota sequer. O que não era surpresa nenhuma, afinal nessa época do ano estávamos sobrecarregados e não tínhamos tempo sequer para comer. O famigerado período das trevas.

Era fácil perceber quando esse tempo chegava, a maioria dos alunos andavam como se fossem zumbis. Para alguém de fora poderia até ser divertido de observar o desespero de todos os musicistas, mas viver isso na pele era uma história completamente diferente.

Nós sentíamos a dor, o sacrifício e os problemas que a música causava em nosso físico, entretanto não conseguimos parar de querer essa dor, pois junto a ela está a realização de um ser humano, a forma mais antiga e abstrata de felicidade. No fim, somos apenas masoquistas inconscientes, onde o sofrimento gera contentamento. Escravos da música, sem nenhuma possibilidade de escapar.


  ♪♪♪  


A aula de Alla durou mais do que o previsto, ela nos corrigia a todo o momento, e quando um instrumento acertava o outro parecia errar. Uma bagunça de sons. Mas no fim estávamos tocando, nas palavras da professora, consideravelmente bem.

O horário livre que tinha para almoçar já estava quase acabando, e meu estômago clamava por comida. Caminhei até a lanchonete da escola, mas a fila estava grande demais e minha fome não conseguia esperar por mais nenhum segundo. Decidi almoçar em um restaurante próximo, mesmo que me atrasasse para a aula com Edgar.

Parei em frente a uma porta de madeira simples que normalmente passava despercebida aos olhos de qualquer pedestre, a abri e desci os poucos degraus de escada e logo fui invadida pelo jazz que tocava no lugar. Sentei-me em uma das mesas e olhei para o cardápio, mesmo que não fosse necessário, afinal já sabia qual seria meu prato, depois de tantas idas ao bistrô já tinha minhas preferências.

A garçonete anotou meu pedido e foi logo para trás do balcão. Aproveitei do tempo que teria e tirei a partitura de Love's Sorrow da mochila e comecei a ler. Arabesque me prometera que iríamos ensaiar hoje sem falta, e espero que dessa vez não ocorra nenhum empecilho.

Entretanto meus olhos passeavam sobre as paredes de tijolos decoradas com coisas de diversas tribos urbanas e principalmente para a parte que tinha dezenas de discos de vinil. Foi quando ouvi o sino, avisando que alguém entrara. Algo raro, normalmente sempre que vinha almoçar aqui estava vazio, diziam que este lugar só lotava à noite e que este horário em que frequentava poucas pessoas apareciam.

Voltei meus olhos para os dois homens que acabaram de chegar. O moreno de olhos cinza usava roupas mais casuais que seu colega, apenas uma calça jeans e uma camiseta social. Já o loiro de olhos escuros amendoados vestia-se elegantemente com um terno e calça social, ambos de cor azul-marinho, e o detalhe mais importante: carregava consigo um violino.

O misterioso Sr. Capriccioso me deixou intrigada com seu violino noite passada. Não era um violino qualquer, o som que aquele estranho tocara eu nunca havia ouvido antes. Confesso que estava curiosa para saber quem era.

Eles se sentaram em uma mesa próxima a minha e não pude deixar de ouvir o que eles dissertavam.

— Leu as partituras que lhe mandei Theodor? — perguntou o loiro e seu colega confirmou. — Saberia dizer onde errei naquele dia?

Sua voz lembrava-me alguém, entretanto não conseguia dizer quem...

— Você quer a lista em ordem alfabética ou cronológica? — o suposto Theodor arqueou a sobrancelha e levou a taça de vinho à boca. O outro mexeu os ombros, como se não importasse a ordem. — Primeiramente, você chama aquilo que você tocou de música? Não me parecia em nada Saint-Saëns, suas composições são organizadas e seu violino estava caótico, desgovernado, fora do padrão pedido. Você precisa entender que para cada compositor existe um jeito diferente para interpretar. Não podemos tocar Debussy com mãos de Mozart, assim como não podemos tocar Rachimaninoff com mãos de Wagner. Consegue entender? Sua interpretação está bagunçada, você está confundindo as coisas, Jean Leitmotiv — ele falava com uma gentileza que não pensei ser possível. Se Edgar falasse como ele todos os seus alunos estariam apaixonados, ele seria o melhor professor de toda a escola.

— Que cruel, Theo! — choramingou o loiro. — Você deveria ser mais amável com o seu futuro spalla!

— Do jeito que você está tocando atualmente nunca chegará perto de entrar para a minha orquestra.

— Diz isso agora! Quando nos formarmos você verá! Ficarei tão bom que irá me implorar para participar da sua orquestra!

O moreno olhou na minha direção, seus olhos cinza pareciam lâminas, provavelmente percebeu que eu estava a par de sua pequena conversa. Voltei a ler minha partitura e terminei meu almoço rapidamente.






Spalla: nome dado ao primeiro violino de uma orquestra, sendo o responsável pela afinação da mesma. É também o responsável pela execução de solos e atua como regente substituto, repassando aos outros músicos as determinações do maestro. 

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