♪A Piacere

"Enviar luz para escuridão, esse é o dever do artista."

— Robert Schumann

♪♪♪



Edgar tirou uma partitura de Tchaikovsky da estante, mesmo sem enxergar o título já imaginava qual peça seria. Ele abriu a boca diversas vezes, mas não disse nada.

— Ele está constrangido de pedir ajuda a uma aluna! Quem diria! — James caiu na gargalhada e pela primeira vez vi meu professor ficar constrangido. Provavelmente não estaria pedindo minha ajuda se houvesse outro jeito de solucionar o problema.

— O que acha de ir à cozinha buscar alguns petiscos, James? Isso aqui talvez demore um pouco.

Meu irmão entendeu as entrelinhas e saiu sem dizer mais nada, ele se divertia com tudo aquilo. Como sempre.

O silêncio desconfortável reinou por alguns instantes na sala até que Edgar começasse a falar:

— Você poderia... Tocar essa música de novo? — falou a contragosto.

— Por que eu faria isso? — arqueei a sobrancelha. — Você apenas ordena que eu faça isso e aquilo. Na sala de aula é compreensível, mas na vida real? Inaceitável. Não sou uma marionete a espera de ordens.

— Vocês — disse, e por algum motivo sabia que se referia a mim e James. — são sádicos. Gostam de ver alguém implorando, só assim fazem favores não é?

— Só estou pedindo gentileza e principalmente educação, o mínimo esperado por qualquer ser humano!

— Por gentileza, você poderia tocar o Concerto para Piano de Tchaikovsky se não for pedir muito?

Talvez não houvesse sarcasmo em sua voz, mas pelo modo que interpretei na hora havia.

— Não vai pedir para que me humilhe, ou vai? Pois saiba que nunca irei me rebaixar. Uma apresentação não vale este preço.

— Primeiro diga-me por que quer que eu toque esta peça?

Edgar inspirou lentamente:

— Existe uma passagem, na verdade uma página inteira, que por algum motivo que não faço ideal do qual, não está boa. Toquei centenas de vezes a mesma parte e nada. Não consigo encontrar a resposta.

— E o que isso tem a ver comigo? Onde me encaixo nessa história toda?

— Eu te ouvi tocar hoje mais cedo... Estava certo. Aquela parte estava do jeito que eu queria — ele fez uma pausa. — Por que você conseguiu e eu não?! Sou seu mentor, tenho anos de experiência à sua frente. Por que você, que tocou apenas uma vez aquela bendita música tocou perfeitamente e eu que estou me esforçando, praticando igual um condenado, não consigo os resultados que espero?! — Edgar andava de um lado para o outro apressadamente, fazendo gestos e bagunçando o cabelo. — O que eu estou fazendo de errado?!

Nunca havia visto meu professor naquele estado. Seus gestos exagerados eram caóticos, sua fala era apressada. Provavelmente estava com o orgulho ferido e não queria admitir para ninguém. Afinal, ele era o Senhor Perfeccionista, o impecável, nunca errava, seu histórico não havia uma peça mal tocada, uma performance mal feita. Era considerado perfeito, um virtuoso no piano. Seu ego era inflado quando o assunto era carreira musical, e infelizmente havia motivo para isso.

— O maestro... — Edgar não parecia falar comigo, apenas desabafava. Estava descontrolado. — Ele a ouviu tocar uma única vez. Uma aluna insignificante comparado à fama e experiência que carrego desde criança. Por que ele a prefere? Por que quase me substituiu para colocar você?! Eu deveria estar feliz que a aluna alcançou o tutor? Talvez, mas não estou. Tocar em orquestras, por que a única coisa que não realizei está sendo tirada de mim por uma garotinha?!

Conforme falava seu tom de voz aumentava drasticamente e me assustava um pouco. Já estava acostumada aos berros que Edgar vez ou outra dava durante as aulas, mas isso era diferente. Ele parecia estar com raiva de mim.

— "Garotinha"? — cruzei os braços e caminhei em direção ao professor. — Esta garotinha aqui, Senhor Perfeccionista, conseguiu agradar os ouvidos de um grande maestro enquanto você continua tentando, e fracassando, em encontrar um jeito de tocar perfeitamente. Você perdeu o essencial da música, senhor Adagietto. E não serei eu quem irá te mostrar como resolver seus problemas, você já é grande o suficiente para resolvê-los por conta própria.

Edgar me encarou e desviou o olhar logo depois.

O silêncio começava a surgir quando a porta foi escancarada e um homem apareceu, com uma cara não muito boa:

— Eu não ligo de ouvir o seu insuportável piano durante toda a noite, mas ouvir sobre sua vida pessoal está se tornando no meu novo tormento. Seus gritos estão desconcentrando minha escrita.

Observei o homem que chegara agora. Ele estava com um livro em mãos, não havia nenhuma capa, apenas uma cor amarronzada. Vestia uma calça jeans escura e uma camisa social branca com a manga dobrada até o cotovelo, também era possível ver uma corrente em seu pescoço, porém o pingente estava escondido. Sua barba por fazer e seus cabelos negros se ressaltavam em sua pele pálida, os olhos estavam escondidos atrás de lentes de óculos, mas tinham uma cor acinzentada, lembrava-me um dia nublado, e ficavam em destaque graças aos círculos escuros em baixo deles, resultado de noites mal dormidas.

— Desculpe senhor "Aspirante a Escritor" — Edgar se encostou ao piano. — Mas se está tão incomodado basta tapar os ouvidos.

— Como se adiantasse. Era possível ouvir seus gritos do outro lado da rua, Edgar — o outro revirou os olhos. — Quantas vezes eu tenho que falar que a partir de dez horas barulho não é admitido?

— E quantas vezes eu tenho que falar que minha apresentação está chegando? Não posso perder tempo respeitando a lei do silêncio.

Eu que não posso perder tempo! O prazo com a editora está chegando e advinha quantos capítulos foram feitos até agora? Exatamente! Cinco!

A discussão de dois egocêntricos chegava a ser cômica. Ambos preocupados apenas com o próprio nariz, como se nada mais importasse. Eles continuavam falando e falando sobre os respectivos problemas. Narciso estaria orgulhoso desses dois homens.

Cogitei por alguns instantes fugir pela janela, mas desisti da ideia depois de ver a altura que estava. Não queria fraturar nenhum osso.

Sentei-me em uma cadeira qualquer e apreciei o show de dois egoístas brigando por coisas inúteis que facilmente se resolveria com diálogos.

Não sei quanto tempo se passou, mas a "conversa amigável" não cessava e meu tédio já havia passado dos limites aceitáveis. Procurei por algo para me entreter e me peguei observando o livro que o suposto escritor havia deixado em uma mesa próxima a mim. Ele estava aberto, porém a página estava incompleta, me inclinei um pouco mais para ler o que estava escrito:

Rosa se deitou junto às flores e observou o céu azul, as nuvens de algodão de formatos variados saindo e entrando de seu campo de visão. Não havia nada de especial naquela agradável tarde de primavera, mas ela se sentia tão leve, tão... Feliz. Sim, ela poderia expressar o que sentia com aquela palavra que mal utilizava, era engraçado que coisas tão banais a deixassem tão alegre e sorridente.

Abriu seu caderno e começou a desenhar a paisagem que via, anotando cada pequeno, e talvez insignificante, detalhe que aos seus olhos eram valiosos enquanto cantarolava a desconhecida música que ouvira mais cedo. Aquelas notas divertidas de violão não saiam de sua cabeça, mesmo que tenha gostado do que vivenciara, a noite na praia continuava sendo uma lembrança um pouco amarga que carregaria no peito por um bom tempo...

O livro foi fechado bruscamente e voltou para os braços do dono, que me repreendia com um olhar que claramente dizia que eu havia ultrapassado o limite de infinidade.

— Lyra, temos que ir — James estava encostado na batente da porta com uma expressão divertida no rosto. — Espero que já tenha resolvido tudo que queria Edgar.

— Não, mas duvido que chegaríamos a algum acordo. — Falei ao me levantar. — O Senhor Perfeccionista detesta admitir que alguém o superou — me virei para Edgar e lhe lancei um olhar sarcástico junto com um sorriso vitorioso.

— Quer dizer que agora teremos alguém para abaixar o ego desse homem? — meu irmão achou graça. — Estou orgulhoso de você, irmãzinha. — Balançou meus cabelos carinhosamente.

— Veremos se você conseguiu me superar, garota. Veremos. — O sorriso de Edgar estava convencido demais para o meu gosto e me deixou um pouco inquieta.

James e eu saímos da casa e fomos até o carro. Já era tarde da noite e eu sequer havia jantado. Tudo o que mais queria agora era uma refeição acompanhada de uma boa taça de vinho.

— O que aconteceu enquanto eu estava roubando alguns chocolates? — perguntou meu irmão.

— Edgar ficando histérico por causa de um trecho de uma peça e uma discussão entre dois narcisistas. Mas espera um minuto, você roubou o quê?!

— Chocolate — ele deu de ombros. — Se existe uma pessoa que sabe comprar chocolates maravilhosos de uma marca que eu nunca ouvi falar essa pessoa é Edward.

— Edward? — arqueei a sobrancelha.

— O mal-humorado que usava óculos, aquele que você leu um trecho do livro.

— O que quase me matou com o olhar?

— Esse mesmo!

— Aquele cara me parece um pouco... — comentei.

— Chato? Mal-humorado? Rude? Solitário? — afirmei com a cabeça. — Sim, ele é tudo isso, mas no fundo Edward apenas quer se isolar do mundo e não consegue por causa de seu professor.

— Os dois não parecem gostar um do outro, afinal, para brigar por algo tão estúpido...

— É a época do ano. Pelo que sei, a editora deu a Edward um prazo muito curto para concluir seu livro e Edgar pelo que percebi está com problemas com a música da orquestra... Eles estão em uma pilha de nervos, mas é compreensível. Eu espero.

O silêncio surgiu depois desses breves diálogos e ficamos quietos boa parte do percurso, ouvindo apenas uma música popular que tocava na rádio que não fazia ideia de qual era, o que não era difícil. Sempre fui conectada ao mundo erudito, porém a música popular estava longe de ser muito conhecido por mim. Fui criada desde muito nova a apreciar grandes concertos de cordas e metais e a não me interessar muito pelas batidas frenéticas que tocavam nas boates em geral.

— Sabe Lyra — chamou-me James. — Estive pensando...

— Pensando sobre o que exatamente?

— Se devo me casar...

Provavelmente se houvesse qualquer líquido na minha boca, teria engasgado.

— Você? Se casar? — falei com descrença. — Só pode estar de brincadeira! James, você é a última pessoa no mundo que se casaria com alguém. Seu lema sempre foi curtir e nunca se apegar, o que aconteceu agora? Aquela briga de dois narcisistas fez você pensar que talvez seja divertido ter uma mulher em casa? — achei graça de meu comentário e fiquei feliz que meu irmão também tenha dado um sorriso.

— Não é isso, Lyra. Mas já estou ficando velho, e quero uma família para cuidar... — começou, mas eu o interrompi.

— Você já tem uma família para cuidar! Você tem a mim! — pulei no banco e o encarei. — Não está pensando em me trocar, está?

Eu o fitava sem parar, procurando alguma resposta em seus olhos. Podia estar agindo com exagero, mas não conseguia evitar.

— Por que ficou quieto? — ele não me respondeu. — Você vai realmente me deixar, não é? O que está tramando James? Por que estou com essa sensação que vou ficar para trás? Por que...

— Lyra — ele inspirou profundamente. — Não seja tão insegura, você sabe muito bem que não vou te abandonar. — Ele começou a me fazer cócegas. — Sempre estarei aqui te irritando com minhas piadas bestas, então não se preocupe — ele deu uma pausa. — Mas gostaria de ter um filho... Acordar e ter uma mulher que realmente conheço ao meu lado na cama, e não apenas mais uma que conheci em uma boate qualquer. Acho que chegou a hora de levar a vida mais a sério — James sorriu com ternura, olhava para frente, mas seus pensamentos estavam longe, relembrando algo.

— Aconteceu alguma coisa ultimamente?

Meu irmão demorou um pouco para falar, estava refletindo se deveria ou não.

— Minha última cirurgia foi em uma menina — começou. — Você deveria ter visto o jeito sereno com que veio para o hospital, o sorriso no rosto que tinha durante toda a cirurgia e o quão radiante estava quando acordou. A felicidade genuína dos pais era tão bonita de se ver... Eu quero vivenciar isso, Lyra. Quero ficar ansioso durante o parto e feliz quando puder carregar meu filho pela primeira vez nos braços. Você nunca sentiu isso? — seus olhos brilhavam enquanto contava, ele falava sério sobre ter uma criança.

Nunca quis ter um filho... A ideia de carregar um ser humano dentro de mim por nove meses não era nenhum pouco agradável aos meus olhos. E a responsabilidade de criar e educar, não me imaginava sendo mãe.

— Nunca teve vontade de tratar seus filhos de um jeito completamente diferente aos que seus pais trataram você?

— Para ser sincera, não acho que seria uma boa mãe — dei de ombros. — Não quero essa responsabilidade para mim. Talvez, daqui alguns anos eu mude de ideia, mas hoje não seria capaz de educar uma criança.

— Uma boa mãe eu já não sei, mas tenho certeza que será uma boa tia para os seus sobrinhos — ele sorriu carinhosamente e fui incapaz de não retribuir.

O caminho até minha casa foi tranquilo, conversamos sobre coisas banais o resto do percurso e me diverti bastante. Esses momentos com James eram sempre muito agradáveis, e tinha medo que um dia isso tivesse um fim. Igual aconteceu com todas as outras coisas boas que tive.

Ao chegar, a primeira coisa que fiz foi esquentar a última coisa que havia cozinhado no dia anterior e abrir uma garrafa de vinho.

Estava um pouco distraída, pensando nos acontecimentos do dia. Vejamos, tive um ensaio com Arabesque e Celesta, atrapalhei Theodor por causa de uma partitura, vi Edgar se descontrolar por causa de uma mísera peça, presenciei uma briga de egocêntricos, li um livro interminado e descobri que meu irmão quer ter um filho. Mais um dia normal na vida de Lyra Scherzo.  

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top