Cap. 3 - O Quarto Secreto

Aron carregava Ivy insistentemente e a garota não tinha ideia de para onde estavam seguindo, parecia o esqueleto do que antes fora um bosque bonito, mas agora apenas havia umas poucas árvores queimadas. Não havia onde se esconder ali, por que Aron a trouxe para este lugar?

Foi quando sentiu a energia fora do comum e os dois ultrapassaram a barreira mágica, entrando em uma espécie de vilarejo da idade média. Ela observava tudo atentamente, enquanto tentava se recuperar para andar com suas próprias pernas. 

Ao que parecia, ali havia vegetação viva e alimento, também havia barris de água ao lado das casinhas simples com paredes de pedra e telhados de palha. As pessoas dali eram muito pobres e sujas, o que a fez pensar que a água ali era tão escassa que as pessoas só a utilizavam para beber e talvez cozinhar.

— Aron? Acho que estou melhor. Ponha-me no chão, por favor.

— Espere mais um pouco.

O príncipe continuou a carrega-la até chegarem a uma das maiores casinhas dali, Aron entrou carregando-a nos braços e sussurrou para que fingisse estar doente. Um velho homem magrelo e desdentado veio atendê-los com expressão curiosa, perguntou o que desejavam e como iriam pagar.

— Ouro. Preciso de um quarto para mim e minha esposa. Ela está muito doente e pretendo tratar dela. — Ele falava de maneira firme como se desse uma ordem ao idoso. Ivy compreendeu que a esposa era ela e seguiu sua atuação resmungando como se sentisse dor.

— Pague. — O velho banguela foi curto e grosso, estendendo a mão calejada e suja na direção dos dois.

Aron pegou uma pequena bolsa que estava presa ao cinto e jogou na direção do homem, depois começou a caminhar para a direita, onde havia três portas, e parou em frente à porta do meio. Disse ao homem que queria água, comida e o melhor quarto de casal. O homem assentiu freneticamente e se retirou pela porta dos fundos, que deveria levar a algo como a cozinha. O príncipe seguiu com Ivy e chutou a porta para abri-la, entrou e após fechá-la com um pontapé, colocou a moça no chão.

— Obrigada. É melhor você descansar. — Ela sorriu suavemente e sentou em uma poltrona dura e desconfortável, deixando ao príncipe a cama que não parecia tão melhor assim.

— Não estou cansado. Pode deitar. — Ele fitava o pequeno buraco malfeito na parede, logo atrás da cama de madeira simples. Sua expressão não era das melhores, mas ao virar-se para fitar a garota seu rosto mudou e ele sorriu, quase imperceptivelmente. — Sinto muito por trazê-la aqui. O mínimo que poderia fazer era mantê-la viva.

— Não precisava, mas sua alma é boa. Sinto isso.

— Talvez. Ainda não está salva, precisamos sobreviver até o amanhecer e... — O príncipe fez uma pequena pausa, parecia sem graça. — Obrigado por salvar minha vida também.

— Às suas ordens, Alteza. — Ivy fingiu uma mesura e sorriu um pouco mais por causa da brincadeira. Aron também ampliou seu sorriso. — Mas diga-me, como sabia deste lugar?

— Eu o descobri ao ser mandado para cá pela décima vez. — O sorriso dele murchou ao supostamente recordar suas outras visitas. — Estava fugindo de uma tribo bárbara e acabei entrando aqui por acidente.

— Os bárbaros não conhecem esse lugar?

— Poucos conhecem.... — Seu olhar estava fixo na janelinha outra vez.

— Então... como se alimentam os demais? — Ela podia pensar na resposta, mas só por ter uma vaga ideia seu estômago já se revirava.

— Canibalismo. E bebem a água das poucas chuvas que ocorrem uma vez por semana. — Aron parou de sorrir e fechou os olhos. — Não gostaria de ter perguntado, não é?

— Por que seu pai o mandou para cá tantas vezes? — Ivy não conseguiu conter sua curiosidade.

— Desrespeitei suas ordens. — E deu de ombros.

— Já conheceu todos os níveis da masmorra?

— Não gosto muito de falar sobre isso.

— Sinto muito...

— Mas.... — O sorriso dele estava de volta e ele a fitava.

— Mas?

— Se aceitar dividir a cama eu respondo algumas de suas perguntas. — Aron ergueu as sobrancelhas como se a desafiasse a aceitar.

Ivy não recusava desafios. Um de seus maiores defeitos.

— Está bem, mas se encostar em mim, arranco suas duas mãos com a espada. — Ela achou melhor fazer algum tipo de ameaça para intimidá-lo e mostrar que não era tão fraca quanto aparentava ser.

— Não acho que pareça fraca. — Ivy arregalou os olhos, surpresa, e se questionou sobre ter ou não dito isso em voz alta. 

Ele já se dirigia para a cama e ela desistiu de tentar tirar alguma conclusão. Juntou-se a ele o mais longe que podia e passou a fitar o teto, de onde pequenos pontos do céu apareciam entre os buracos na palha.

— Então... repito a mesma pergunta de antes. 

Ivy se achava no direito de perguntar isso novamente, afinal, ele pediu a ela algo desconfortável também, certo? Sua mente insistia em dizer que não era tão desconfortável assim quando o príncipe finalmente respondeu sua pergunta.

— Já. Já visitei todos os níveis. Próxima.

— Como é o quinto nível? Não consigo pensar em nada pior do que esse lugar.

— Só estive lá uma vez. Prefiro nem tentar recordar. Próxima.

— Por que foi mandado para lá?

— Próxima.

— Mas você não respondeu.

— Próxima! — A voz dele era firme e seu maxilar estava levemente contraído. 

Ivy demorou um longo tempo para pensar em outra pergunta, queria muito saber porque o rei mandou o próprio filho para a masmorra de nível cinco. E o que havia lá de tão ruim?

— Como conseguiu me carregar por tanto tempo sem se cansar?

— Tenho boa resistência.

— Treinamento?

— Nascença. — Ele estava com os braços erguidos, as mãos na nuca e ainda fitava o teto. — Próxima.

Alguém deu dois toques na porta e imediatamente Aron sentou-se e pegou a espada, que ficou ao lado da cama. A pessoa avisou que trouxera comida, mas o príncipe não relaxou a postura. Ivy não havia almoçado naquele dia e seu estômago reclamava de fome.

— Deixe-o entrar. — Pediu a garota, aflita.

— Entre. — Aron não relaxou em momento algum enquanto o velho homem trazia comida em um pedaço de madeira usado como bandeja. Ela já estendia a mão para o pedaço de carne quando o príncipe segurou seu pulso com força e lançou lhe um olhar de advertência.

— Envenenaram a comida. — Seus olhos agora estavam negros e sua expressão era de ira. 

Onde estavam as belas íris cor de mel? Ivy estava começando a se sentir mal perto do rapaz. O que fazia seus olhos mudarem de cor? Por que isso acontecia? 

— Não beba a água também. Já volto. Não durma enquanto eu não voltar. 

— Ela apenas assentiu enquanto o rapaz jogava a comida pela janela e pegava a espada ao lado da cama.

Meneou a cabeça levemente e ficou deitada olhando o teto, cogitando se teria alguma chance de fugir dali sem Aron, e sobreviver. Quando o príncipe retornou Ivy notou que sua espada estava suja com sangue novo, assim como suas vestes, já imundas com cinzas e sangue seco. Engoliu em seco e o ouviu dizer para que dormisse enquanto ele faria a vigília. 

Seu coração estava disparado e sua mente gritava para que saísse dali, mas ela já viu a velocidade do príncipe e dificilmente conseguiria escapar dele. Ele sentou-se ao lado dela na cama e Ivy achou melhor deitar virada de frente para ele, assim evitaria um ataque por trás. Duvidava que conseguiria dormir, mas de repente sentiu a mão livre de Aron em seus cabelos e em segundos caiu no sono.

Ao acordar, no dia seguinte, Ivy não conseguia acreditar no que estava vendo.

— ARON!! — A garota sentou-se na cama com o corpo trêmulo e o olhar assustado. 

Pelo quarto havia quatro corpos caídos, e de um deles escorria uma poça enorme de sangue. O cheiro enjoativo de ferro embrulhava seu estômago vazio.

— Está tudo bem. — Ela sentiu a mão fria dele antes de conseguir se virar para fitá-lo.

— Mas o que...? — E pigarreou para tentar deixar a voz menos trêmula.

— Tentaram nos matar enquanto você dormia. — E deu de ombros.

— Por que só um deles está sangrando? Como matou os outros três? — Ivy não queria saber a resposta, mas a pergunta veio sem autorização. A expressão do príncipe ficou um pouco tensa, porém logo se suavizou.

— Tenho meus métodos. — Aron murmurou. 

Ela pôde notar que o rosto dele não estava mais ferido, nem os braços e as pernas, na verdade. Como ele se curou? Está bem que eram apenas cortes rasos e hematomas, mas ela ainda estava ferida.

— O portal já apareceu? — Ivy esfregou os olhos e tentou se concentrar no cheiro de qualquer outra coisa além do sangue.

— Já deve ter aparecido. Levante. Vamos procurá-lo. — Aron saiu da cama, pegou a espada e o escudo e entregou à Ivy.

Os dois saíram do quarto driblando os corpos caídos, a garota achou melhor não voltar a olhá-los, pois não queria gravar os detalhes disso. Caminharam pelo refúgio e encontraram o círculo ondulante brilhando logo acima da superfície de um poço de pedra.

— Pronta para pular? — O príncipe sorria de leve.

Ambos subiram nas pedras e saltaram para dentro do portal. Ivy mal teve tempo de se recuperar da tontura quando dois guardas se adiantaram e começaram a puxá-la pelo corredor, de volta ao piso principal do castelo. Aron também estava sendo arrastado e não parecia muito contente com isso. Os dois foram levados à companhia do rei, que os analisou com certa surpresa antes de se recompor.

— Ora, ora, ora... então o príncipe Aron decidiu salvar a plebeia? A troco de que? — O governante abriu um sorriso maldoso que sugeria algo, estava bem na frente de Ivy e se os guardas não estivessem segurando-a, com certeza teria dado um tapa na cara do soberano. O que provavelmente a levaria ao sub-nível cinco....

— Na verdade, Pai, foi a Senhorita Ivy quem me salvou. — Aron sorriu sombriamente e Ivy se sentiu estremecer.

— Então meu filho é um fracote?!?

— Não. Ele apenas não notou o ataque que vinha pelas costas. — Ela se pronunciou antes que o rei tentasse bater no filho novamente. 

O homem olhou para ela, os guardas e o príncipe também. Todos surpresos. O Rei Antony chegou mais perto e passou a analisar friamente a expressão de Ivy, a garota tentou não abaixar a cabeça e se manteve firme.

— Não pense que vamos agradecê-la. Já mandei buscar o valor que me devia. — O sorriso do rei era feio, tinha dois dentes de ouro e expressão de cobiça e maldade. 

Ele estendeu a mão gorda para segurar o rosto dela com força, então se aproximou mais e pressionou os lábios nos dela. Ivy tentou virar o rosto, mas não conseguiu. Tentou se debater e os guardas a apertaram mais. Aron estava gritando de raiva e ela o espiou pelo canto do olho. Ele estava lutando contra os guardas e... Vencendo? Desarmado e vencendo?

Assim que a garota sentiu os guardas que a prendiam soltarem-na, deu um tapa na mão do rei e se afastou cambaleando e limpando a boca com expressão de nojo. O príncipe segurava seus ombros. O rei tinha um olhar perverso e sua gargalhada ecoou pelo enorme salão, enquanto Aron tirava Ivy dali e a levava para seu quarto secreto, o único local seguro que o rei não conhecia.

O quarto ficava no alto de uma das torres mais velhas, o chão por ali era coberto de poeira e os quadros na parede estavam cobertos por enormes tapeçarias desbotadas. O príncipe a arrastava com ele, sua postura era decidida e sua expressão demonstrava raiva.

Chegaram ao alto da torre e ele abriu uma grossa porta de madeira descascada para que ela entrasse no cômodo. Ao contrário do que pensou, o quarto secreto do príncipe era limpo e bem organizado. Duas prateleiras enormes cobriam as paredes da esquerda e direita, havia uma cama de casal realmente grande logo em frente, e atrás dela estava uma janela grande, coberta por uma cortina grossa cor de vinho. Um guarda roupa estava disposto em um canto do quarto, entre uma escrivaninha repleta de papéis e uma outra porta de madeira descascada.

— Ali é o banheiro. — Aron apontou a portinha ao lado do guarda roupa e trancou a porta atrás de si ao entrar.

Ivy apenas assentiu com a cabeça enquanto seu olhar vagava pelos títulos dos livros nas estantes. Seus dedos, sem que percebesse, passaram a dedilhar as lombadas dos livros. Ela sentiu o olhar do príncipe em suas costas e um arrepio correu sua coluna. Virou-se devagar para encará-lo.

— Gosta de ler? — Ela não pôde deixar de fazer essa pergunta. O príncipe deu de ombros.

— Às vezes somos obrigados a gostar de algumas coisas.

— Entendi.

— Sinta-se à vontade para pegar o livro que quiser.

— Eu agradeço a gentileza, mas pretendo ir embora.

— É melhor ficar aqui por pelo umas duas horas. Meu pai não vai ficar contente por a Senhorita ter dado um tapa em sua mão, mesmo que ele tenha merecido muito mais.

— Sinto muito. — Ao pronunciar as palavras Ivy percebeu que de fato sentia muito pelo príncipe, por ser obrigado a aturar um pai como o Rei Antony. O olhar dele fitou o dela, confuso.

— Você... Perdão. A Senhorita sente muito? Não é a Senhorita quem tem que sentir, é o rei! Peço as mais sinceras desculpas por seu comportamento indigno.

— A culpa não é sua, Aron. — O rosto de Ivy corou no mesmo instante. — Perdão. Vossa Alteza.

— Prefiro quando usa meu nome. — O sorriso do príncipe era sedutor e isso causou arrepios em Ivy.

— Deseja que eu o chame de Príncipe Aron?

— Não. — Seu sorriso se ampliou mais. — Desejo que use meu verdadeiro nome.

— Como? Verdadeiro nome?

— Adrian. Príncipe Adrian.

— Por que o rei...?

— Por que eu e meu irmão somos adotados e o rei decidiu mudar nossos nomes para encobrir a adoção. Nem somos irmãos de verdade. Viemos de famílias diferentes. — Adrian deu de ombros e o sorriso deixou seu rosto.

— Vocês chegaram a conhecer suas famílias?

— Não. Só sabemos que fomos abandonados assim que nascemos.

— Minha família também me abandonou.

— Chegou a conhecê-los? — O príncipe tinha um ar triste e Ivy sentiu-se compelida a se aproximar para tentar fazê-lo se sentir melhor de alguma forma.

— Sim. Na verdade, apenas se afastaram de mim ao descobrir que.... — E mordeu a própria língua ao perceber que quase entregou seu segredo a ele.

— Descobriram o que?

— Que eu não poderia ter filhos. Desistiram de encontrar casamento para mim e me largaram na mansão da família.

— Também não posso ter filhos. — O príncipe deu de ombros com ar indiferente. — Eu não dispensaria uma mulher por um motivo tolo como este. 

Ivy engoliu em seco ao notar o olhar do príncipe para ela e novamente sentiu as maçãs de seu rosto esquentarem, mas logo se recompôs.

— É. Nem todos pensam como você. — Ela tentou dar de ombros e parecer descontraída, mas percebeu que falhou quando o príncipe começou a rir dela.

— O que acha de um passeio? — Adrian ofereceu o braço a ela, que não conseguiu imaginar uma maneira de recusar.

— Está bem, mas você vai me contar por que sua pele é tão fria.

— Certo. E você me contará como soube do problema com os Trolls.

— Fechado. — Ivy não se importou de aceitar o acordo, já que poderia mentir. Além do mais, o príncipe nunca acreditaria na verdade por trás das descobertas dela.

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