Cap. 2 - Ariem

Durante um longo tempo Ivy ficou em silêncio, temendo que se dissesse alguma coisa, sua pena pudesse piorar. Para a sua sorte a carruagem era fechada, de maneira que os habitantes não conseguiriam ver quem estava sendo levada algemada para o castelo.

Isso seria um escândalo para o nome de sua família e mesmo que a tivessem abandonado, Ivy não queria prejudicá-los por expor negativamente seus nomes. Em determinado momento, quando já estavam quase chegando ao castelo, ela não conseguiu mais se conter e dirigiu a palavra ao príncipe.

— Por que não fez o que mandei?

— Acha mesmo que confiaria numa estranha? Que beberia uma poção mágica e aceitaria estar num cômodo enfeitado com magia negra? — O príncipe mantinha seu tom de voz calmo, mas era perceptível seu nervosismo.

— Eu não tenho a intenção de ferir a realeza. — Ivy se sentiu ofendida pelo que o príncipe dissera.

— Não se ofenda, Senhorita. Não bebi sua poção e nem segui seu plano porque já sabia que não daria certo.

— Agora Vossa Alteza prevê o futuro? — Zombou, mesmo sabendo que isso era possível em alguns dos reinos.

— Não. Mesmo que conseguisse me ocultar, os oficiais a levariam por estar na biblioteca no mesmo momento que eu e a tomariam como principal suspeita.

— E de que maneira sua aparição me ajudou?

— Teria ajudado se não tivesse trancado a porta do quarto e me atrasado. Eu teria chegado antes de sua mentira e eles não teriam motivos para acusá-la de nada.

— Ótimo. Agora a culpa é minha. — E revirou os olhos, tentando cruzar os braços em frente ao corpo, mas não conseguiu porque estava algemada ao príncipe. Esqueceu-se completamente das aulas de etiqueta e bufou, irritada.

— Não está se portando como uma dama. — O príncipe parecia achar graça embora sua postura ainda estivesse tensa.

Ela não teve tempo de responder, pois adentraram o castelo e logo a carruagem parou. Os guardas os retiraram agressivamente e os empurraram até a Sala de Recepções. O rei aguardava o filho com ódio no olhar, as mãos unidas apoiavam o queixo e a coroa pendia um pouco para frente, assim como sua postura. Ao ver Ivy e Aron entrando, o rei endireitou a postura rapidamente e seu olhar estava ainda mais irado.

— O que significa isso? — A voz do rei ecoou firme, sua fala era composta por pausas e muita raiva contida.

— Meu pai, posso explicar o que aconteceu.... — O príncipe se adiantou, mas o rei bateu firme o pé no chão. Aron retrocedeu e baixou a cabeça com o maxilar trincado.

— Não me chame de pai! Sou seu rei!

As banhas do soberano se agitavam quando ele batia os pés e balançava o cetro de ouro com raiva, a voz reverberando pelas pilastras de mármore negro.

— Você me desobedeceu pela última vez, garoto! O que acha que está fazendo saindo por aí desse jeito? Se eu ordeno que fique aqui, quem acha que é para me desobedecer? Não é porque tem o título de Príncipe que pode se achar no direito de não cumprir minhas ordens! E quem é essa garota?

— Perdão, Vossa Majestade. — Ivy fez uma reverência profunda e engoliu todo o seu orgulho ao fazer isso. — Seus guardas trataram seu filho muito mal....

— Quem a plebeia pensa que é para falar assim com seu governante? — O rei Antony se aproximou dela em sua postura mais imponente de porco gordo e se inclinou em sua direção.

Para a raiva de Ivy, o rei era bem mais alto que ela, com seus 1,60 de altura. O rei devia ter pelo menos uns trinta centímetros a mais e isso a deixava desconfortável. Aliás, só os anões da floresta de Gorbit eram consideravelmente mais baixos que ela.

— Sinto muito, Vossa Majestade, mas acreditei que não gostaria de saber que seu filho está sendo maltratado por seus próprios oficiais. E gostaria de acrescentar que não sou uma plebeia. Tenho muitas posses e riquezas.

— A camponesa é muito petulante.... — O rei apertou os olhos e comprimiu os lábios rosados e finos até quase fazê-los desaparecer. — Quero um quarto de sua riqueza como pagamento por seu mau comportamento e, se está aqui, é por que antes já cometeu outro delito. O que ela fez, Leônio?

— Mentiu para nós. — O guarda mais baixo, um dos que entraram na casa de Ivy, se pronunciou primeiro.

— QUE AUDÁCIA!

O rei berrou na cara de Ivy e respingos de sua saliva nojenta voaram na direção dela, que deu um pulo para trás para desviar, o que só fez com que a ponta de uma espada fosse pressionada na metade de suas costas. O príncipe estava cada vez mais tenso e parecia lutar contra si mesmo para não dizer ou fazer nada.

— Não escapará do castigo físico dessa vez, sua....

— Chega de ofensas, Vossa Majestade.

Ao ouvir a voz do príncipe, Ivy não pôde deixar de olhar diretamente para ele, seu rosto estava erguido e virado na direção do pai, que o fitava surpreso, sem acreditar no que ouvia.

— A garota não merece castigo físico por sustentar a mentira que eu a fiz dizer com meus poderes. Ela não tem culpa se sua mente estava sendo controlada!

— Já basta! Está falando demais. Falando bobagens! Guardas! Cumpram minhas ordens. — O rei estava de costas para Ivy e os demais, Aron o encarava com raiva, mas ele já era incapaz de ver isso. — Já que o príncipe quer tanto proteger essa plebeia, deixe-os trancados nas masmorras do subnível quatro pelo restante da noite. Veremos se ainda vai querer proteger os pobres depois disso.

— NÃO! PAI, VOCÊ NÃO PODE JOGÁ-LA LÁ! A CULPA NÃO FOI DELA...! — O rei se virou e Ivy apenas teve tempo de se encolher quando ele ergueu a mão gorda e bateu com força na cara do filho.

O príncipe não parecia sentir nada, mas com certeza estava com raiva por ser tratado assim na frente dos guardas e de uma súdita. Os guardas os arrastaram porta afora e os guiaram sem piedade até a escadaria que os levaria aos níveis abaixo do solo, onde ficavam as masmorras. Antes de entrarem pela porta do penúltimo nível, os guardas lhes entregaram uma espada e um escudo, os mais simples possíveis, e se despediram dos dois com risos maldosos, após trancarem a porta da masmorra.

— E agora? – Ivy sussurrou sem conseguir enxergar nada. Não parecia uma cela comum... onde estavam? Para que serviam a espada e o escudo? Teriam que lutar até a morte para poderem sair?

— Começará em cinco minutos. Prepare-se para correr. — A voz do príncipe soava sombria.

— O que vai começar em cinco minutos? Por que preciso correr?

— A caçada. Precisa correr se não quiser morrer, a menos que saiba lutar.

— Conheço alguns feitiços de batalha.

— Magia negra de novo?

— Sim.

— Ótimo. Não há regras aqui.

— "Aqui"?

— É um dos sub-reinos do rei Antony e ele nos planta neles por meio de magia negra. Sim, o rei usa magia negra mais do que você pode imaginar. Permanecemos nesse reino até de madrugada, quando a magia se acaba e o portal aparece para nos trazer de volta.

— Não parece tão ruim.

— Já ouviu falar do sub-reino Ariem?

— Não.

— É um lugar de guerras, lutas e bárbaros. "Lute ou morra" é a frase favorita deles, uma das poucas que sabem dizer. Em sua maioria se comunicam por meio de grunhidos e sons estranhos que estamos longe de desvendar. Um lugar encantador, não?

Nesse momento Ivy conseguiu ver o rosto do príncipe, que exibia um sorriso irônico, isso só foi possível por causa da luz do portal que se abriu na frente deles e que os levaria ao sub-reino Ariem.

O príncipe segurou firme uma das mãos dela e a puxou com ele para o portal, quando a tontura passou e Ivy conseguiu enxergar as coisas nitidamente de novo, lembrou-se do conselho de Aron. Usou a espada para cortar o vestido na altura dos joelhos e começou a correr o mais rápido que suas pernas permitiam.

O lugar a sua volta parecia uma grande floresta devastada por causa de alguma queimada, o ar cheirava a fumaça e podridão, os sons que o preenchiam eram o de metais colidindo e o de gritos de dor e agonia. Parecia o cenário de um pesadelo. A paisagem era colorida pelo tom de vermelho do sol poente, o que não ajudava muito a deixar o lugar acolhedor.

— ARON? — Ivy chamou em meio ao pânico que começava a tomar conta de si.

Esqueceu-se completamente das formalidades e não importava mais chamá-lo de alteza, príncipe ou o que quer que fosse. Ela não havia notado quando o rapaz desapareceu e soltou sua mão, tudo que sabia agora é que estava sozinha.

Correndo sem parar por entre as cinzas, Ivy via diversos corpos caídos e sem vida, ossos e até esqueletos completos estavam espalhados pelo chão, ou pendurados nos galhos negros e retorcidos das poucas árvores que restavam. Onde as pessoas desse lugar conseguiam alimento? Será que comiam uns aos outros? Um arrepio correu sua coluna e ela acelerou ainda mais o passo.

Lágrimas de desespero turvavam sua visão e ela se obrigou a parar de chorar, não conseguia ver ninguém vivo a sua frente, mas não sabia se isso era bom ou ruim. As pilhas de corpos aumentavam cada vez mais e se tornavam mais altas, o cheiro de podridão e fumaça estava cada vez mais sufocante e Ivy se sentia tonta. Como viera parar ali?

Suas pernas já não aguentavam mais correr e seus joelhos começaram a vacilar. A garota tropeçou em uma perna sem vida e acabou caindo de cara em uma pilha de cinzas. A espada e o escudo que carregava até agora sem perceber, tombaram de suas mãos sujas e cansadas e ela pensou que fosse morrer ao ouvir um grito, vindo de algum lugar que não conseguia mais identificar em meio a tontura que a levaria logo a um desmaio.

Fechou os olhos e pensou que não os abriria novamente, mas, após incontáveis segundos, sentiu um líquido frio descer por sua garganta e isso pareceu acordá-la. Abriu os olhos e quando sua visão focalizou, viu o rosto de Aron parado logo acima do seu com uma expressão de preocupação tomando conta de seu olhar.

— Ivy? Pode me ouvir? Está bem? — A voz dele parecia até etérea em meio aos gritos de dor que ainda era capaz de ouvir.

Ela conseguiu erguer o corpo e sentou-se no chão. Com muita agonia percebeu que não havia acordado daquele pesadelo ainda e ao olhar logo atrás de Aron viu uma figura se projetar e pular em cima deles com a espada em punho.

A moça não pensou duas vezes, empurrou o príncipe para o lado e pegou a espada que caíra ao lado dela ao desmaiar, com a outra mão apanhou o escudo e usou-o para se defender. A espada do inimigo atingiu o escudo e o rachou, mas não acertou Ivy, que revidou com a espada e atravessou o corpo de seu agressor.

A cena toda aconteceu muito rápido, a garota começou a tremer ao notar o que tinha feito e lágrimas escorreram pelo seu rosto, não conseguia parar de fitar os olhos abertos e parados do homem que os atacara e seu corpo não a obedecia mais.

— Precisamos sair daqui. Conheço um lugar em que podemos nos esconder. — O príncipe tentava em vão fazê-la se mexer e tirá-la do estado de choque.

Até que desistiu, pegou a espada dela e a prendeu no cinto da calça que usava, prendeu o escudo que ainda estava inteiro nas costas, jogou a garota por sobre o ombro e empunhou sua própria espada com a mão livre. Então, começou a correr em uma velocidade um pouco acima do normal em direção ao horizonte, onde o sol vermelho ainda se punha.

Parecia que o tempo não havia passado desde que chegaram ali. Ivy ainda não conseguia ter forças para protestar e pedir que o rapaz a soltasse, por isso apenas deixou que a carregasse sem se preocupar se ficaria exausto logo, e então não haveria mais como fugir ou lutar....

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