Cap. 16 - Reconciliação
Kadi estava muito irritado, havia até mandado os três homens que atacaram Ivy para a guilhotina. Seriam executados nesta mesma noite. Mas além de estar irado, estava também com medo.
Sabia, ou melhor, sentia que Ivy ficaria bem, afinal, estava sendo cuidada pelas hábeis mãos de Lisandra. Nunca foi muito bom em curar as pessoas, mas desta vez fez questão de ajudar.
Deixou que Lisandra mandasse e desmandasse nele como nunca havia deixado antes. Jamais iria se perdoar se a garota ficasse com alguma ferida permanente. Já era demais que não tivesse conseguido cumprir a promessa de trazer os criados dela a salvo.
Kadi jamais admitiria isso para alguém, mas naquele momento sentiu-se um idiota completo. Quando a viu ser maltratada por seus homens não conseguiu controlar sua ira e os machucou muito. Não que não merecessem, mas agora teria que inventar uma boa mentira para os demais líderes sobre o motivo de ter machucado e agora ter mandado guilhotinar os três guardas por causa de uma "garota nobre inútil".
Não fazia ideia se Ivy conseguiria perdoá-lo por tudo o que estava fazendo, mas precisava da ajuda dela. Lisandra nunca se enganava sobre seus conselhos e por mais que Kadi detestasse admitir, sabia que Ivy era uma garota muito poderosa.
— Príncipe Kadi, preste atenção! – Lisandra o repreendeu ao ver que deixava a água vazar da vasilha.
— Sinto muito! – Kadi rapidamente se recuperou do susto e obedeceu às ordens de Lisandra, ajudando-a a limpar o corpo de Ivy para que pudessem passar outra camada do unguento mágico da curandeira.
— O que devo fazer agora, Lisandra? – O segundo ajudante perguntou, hesitante.
— Quem é você? – Kadi perguntou sem muita cerimônia.
— Sou Jefferson, o mordomo de Lady Ivy.
...
Adrian estava irado, mas por algum motivo sempre que tentava fugir ou pensava em uma maneira de matar o Rei, sentia uma dor forte na cabeça e acabava desmaiando.
Estava extremamente preocupado com Ivy e com todos os demais que havia ferido e até matado. Nunca perdoaria o pai pelo que fez a ele, mas duvidava inclusive de que conseguisse se perdoar um dia.
Sentia-se, mais do que nunca, um monstro. Por mais que soubesse estar sob os efeitos da magia negra de Argus, ainda assim era responsável por ter deixado que o capturassem.
Mal sabia ele que de acordo com os planos do pai e do feiticeiro não era nem para ele estar consciente de seus terríveis atos. De acordo com o plano era para ele estar como um fantoche, completamente sem vida. Um ser totalmente manipulado e sem vontade própria.
Não parava de pensar em Ivy e esperava que seu irmão estivesse cuidando bem dela. Sua memória estava vaga, mas se lembrava de ter visto o rosto dela no desastroso baile e isso o apavorava tanto que até se esquecia de se preocupar consigo mesmo. Tanto que não percebeu quando Argus entrou em seus aposentos, ou melhor, em sua cela.
— Olá, meu amigo. – Argus estava irreconhecível.
Vestia-se como o Rei Porco, roupas totalmente e exageradamente luxuosas. Inclusive, usava um manto negro com capuz no qual as bordas douradas pareciam, e talvez realmente fossem, costuradas com fios de ouro. Seus dedos estavam repletos de anéis e em seu pescoço pendia um enorme medalhão de prata com uma pedra enorme de rubi no centro, no formato de um coração.
— O que você quer aqui, traidor?
Adrian precisou se controlar muito para não tentar socar a cara dele ou congelar seu coração, mas mesmo que perdesse o controle não conseguiria atacar. Era frustrante estar sendo controlado por alguém.
— Traidor...? – Argus estreitou os olhos. — É isso que Vossa Majestade pensa de mim?
— Não. É isso que o Príncipe de Gelo pensa de você! – Adrian praticamente cuspiu as palavras.
— O quê?!? – Argus pareceu perder o fôlego por alguns segundos, mas logo se recuperou. — Então sua força interior é maior do que pensei.
O príncipe gritou para que saísse dali e Argus obedeceu, mas não conseguia parar de pensar que deveria dobrar a dosagem do encantamento caso Adrian assumisse demais o controle sobre si. E com isso foi procurar o Rei Porco.
Adrian, por sua vez, foi até a janela trancada por barras mágicas de energia e fitou o dia lá fora. Estava quase escurecendo e ele precisava arrumar um jeito de mandar uma mensagem ao irmão e à Lady Ivy. Mas como faria isso? Talvez fosse hora de pedir ajuda ao Espanta Pombos novamente.
...
Antony estava sentado em sua sala de jantar particular acompanhado por suas damas da corte e por um banquete que serviria como válvula de escape para toda a raiva e frustração que estava sentindo com as recentes descobertas.
Quando Argus entrou mal foi notado e precisou pigarrear para que o rei prestasse atenção nele. Enquanto isso o feiticeiro não conseguia se decidir se tinha mais nojo das damas esqueléticas que fingiam amar um homem tão podre ou do próprio rei saboreando sua comida.
Em uma das mãos segurava uma coxa de frango toda gordurosa, que sujava sua barba comprida, e na outra a cintura magrela da dama que estava sentada em seu colo. Argus foi obrigado a engolir novamente a bile que subiu para sua garganta.
— O que você quer, Argus? Estou ocupado. Fale logo! – Antony empurrou a garota com tanta força que ela caiu de lado no chão, mas isso não pareceu incomodá-la.
— Sinto muito, Majestade, mas estivesse com o Príncipe Aron e acredito que terei que dobrar o efeito do encantamento. – Argus havia se curvado levemente para mostrar respeito.
— Seu inútil! Incompetente! Como pôde fazer os cálculos errados? É um idiota mesmo! – O soberano jogou sua coxa de frango na direção do feiticeiro, que desviou com agilidade.
— Peço minhas mais sinceras desculpas, Majestade, mas o príncipe tem mais força interior do que nós pensamos.
— Nós, não! Você! Eu nunca erro. – Antony socou a mesa e suas banhas balançaram com o impacto.
— Sim, Senhor. O erro foi totalmente meu. Peço mil perdões por isso, mas para corrigir precisarei dos ingredientes novamente.
— Tanto faz, Inútil. Pegue do estoque que preparamos para o príncipe Kadi. Por enquanto ele está fora de alcance mesmo.... – O rei precisou de muito esforço para controlar a raiva que ferveu seu sangue novamente ao lembrar-se do filho traidor.
— Sim, Senhor. – Argus fez uma mesura e pediu licença para sair.
Seguiu diretamente para os estoques reais, onde teria contato com tudo o que precisaria para controlar o príncipe e fazer o Rei Porco entregar todo o reino em suas mãos. Estava orgulhoso de seu plano brilhante e se pudesse teria dado um tapinha em seu próprio ombro como reconhecimento.
...
Era como se estivesse flutuando. Seu corpo parecia tão leve... tão leve... Só que alguma coisa veio perturbar a sua paz. Ivy ouviu uma voz distante chamar por ela. Não queria atender ao chamado, mas ao mesmo tempo sentia que precisava seguir essa voz.
O maravilhoso céu azul cheio de nuvens branquinhas e macias por onde flutuava desapareceu, em seu lugar veio a escuridão e a dor. Ivy ouviu a voz chamá-la mais e mais alto, mas conforme a ouvia sua dor aumentava e a escuridão parecia rodeá-la ainda mais.
Trincou o maxilar com a dor que se espalhava por seu corpo, principalmente da clavícula até a barriga. Sentiu suas bochechas arderem mais conforme as lágrimas escorriam e não conseguiu mais evitar soltar um grito desesperado.
A escuridão pareceu tremer perante seu grito de dor e aos poucos a luz começou a aparecer novamente. Agora Ivy era capaz de ouvir duas vozes e conseguia distingui-las. Sabia que as conhecia.
Seus olhos se abriram de repente e isso fez com que a luz inundasse sua visão. Tentou erguer o corpo com todas as suas forças, mas alguém a impediu gentilmente. A dor voltou mais forte do que antes e Ivy sentiu-se tonta. Foi obrigada a se deitar novamente e seus olhos percorreram a área ao seu redor enquanto alguém despejava um líquido azedo e frio por sua garganta.
Assim que o líquido chegou ao seu destino, já pôde sentir a melhora. Ainda sentia dor, mas não era mais tão insuportável. Sentia fome, frio e... um vazio enorme no peito. A realidade a atingiu como um soco no estômago e lágrimas turvaram sua visão novamente.
— Marilyn, Jeff... – Foi tudo que conseguiu sussurrar antes que os soluços tomassem conta de sua garganta.
— Infelizmente Marilyn se foi, Madame Ivy, mas eu ainda estou aqui. – Ivy sentiu uma mão apertar a sua e o vazio em seu peito pareceu amenizar um pouco.
— Jeff!
Um sorriso, que não combinava com as lágrimas que ainda banhavam o rosto da garota, ganhou seus lábios. Ela apertou a mão dele de volta e chorou. Chorou até sentir que todas as suas lágrimas haviam saído.
— Ah, Senhorita Ivy... – Jefferson a abraçou com delicadeza e acariciou seus cabelos sujos e bagunçados. — Sei como está se sentindo, mas temos que agradecer por ainda estarmos aqui.
— Como pode dizer isso? Não me sinto feliz! Devia ter sido eu! — Sua voz continuava embargada pelo choro, mas sua visão já havia voltado ao normal, com exceção dos olhos inchados.
— Nós estamos aqui e assim podemos fazer algo para que a morte de Marilyn não tenha sido em vão. Nós podemos lutar contra o terrível Rei Antony e assim impedir que tire a vida de mais inocentes.
As palavras do mordomo, que era mais como um pai para ela, a atingiram em cheio e fizeram com que tomasse uma decisão: por mais que se sentisse vazia, por mais que sentisse dor, por mais que estivesse correndo perigo e arriscando sua vida, ela lutaria contra Antony...
E venceria.
— Vou buscar uma sopa para você, Senhorita. – Jefferson beijou a testa dela e saiu da cabana para buscar comida.
Ivy começou a observar as coisas ao seu redor, sentiu os cheiros de diversas plantas e temperos, ouviu o som de água correndo ali perto e percebeu que estava na cabana de Lisandra. Isso confirmava que seu palpite estava correto e que o príncipe simplesmente a havia deixado nas mãos da curandeira, sumindo logo em seguida sem se importar com o estado dela.
Talvez até desejasse que estivesse morta para evitar mais conflitos com os ladrões.
— Vai continuar fingindo que não estou aqui?
A voz tirou-a de seus devaneios e sentiu-se estranha, não sabia explicar se aquele calor que tomava conta do seu peito era fruto do calor que o príncipe de fogo emanava ou se era algo diferente. Talvez raiva pelo que havia feito com ela.
— Você está melhor? – Kadi se aproximou da cama hesitante e a observou por inteiro. Ivy olhou em outra direção, não queria ver a cara dele de jeito nenhum. — É. Parece que as poções funcionaram.
A garota o estava observando apenas de canto de olho, mas foi suficiente para notar o sorriso leve que tomou conta do rosto dele ao perceber que ela estava melhor.
O príncipe estendeu a mão para tocá-la, mas parou no meio do caminho, hesitou por alguns instantes e deixou que o braço descansasse ao lado do corpo novamente. Soltou um suspiro pesado e fitou o chão, outro gesto incomum para ele.
— Então não vai falar mesmo comigo? – O silêncio seguiu, Kadi desistiu de continuar e saiu da cabana sentindo-se péssimo, mas antes deixou a ela um aviso. — Aqueles homens que a atacaram... eles estão mortos agora.
Ivy o observou sair e foi a vez dela de suspirar. Queria falar com ele, mas seu orgulho não deixava. Queria mostrar que estava com muita raiva, embora sua raiva não fosse direcionada somente a ele. Não conseguia entender as ações dele e isso a incomodava.
— Kadi esteve aqui com você o tempo todo. – A voz de Lisandra assustou Ivy, que sentiu o coração disparar. — Ele a trouxe para cá, mandou guilhotinar os homens que a atacaram e me ajudou a cuidar de você.
— Do que está falando? Onde você está? Apareça, Lisandra!
Ivy não queria gritar, não queria descontar sua frustração na curandeira, mas foi inevitável. A mulher apareceu ao seu lado e tomou suas mãos. Seus olhos estavam fechados, mas direcionados a ela, e era como se pudesse ver sua alma.
— Nunca o vi tão descontrolado, menina. Mandou guilhotinar os homens na mesma hora e os que tentaram se opor ouviram palavras não muito bonitas. Ele arriscou perder seu título como Líder dos Ladrões, mas por algum motivo não o tiraram do poder.
— Ele jamais perderia o...!
— Ouça, menina! Kadi contou a todos o que houve no castelo e como você o salvou. Ele fez uma declaração formal tornando você um dos membros oficiais do bando e convenceu todos a te aceitarem. Menos Mallya, que teve uma briga feia com ele. – Lisandra fez uma pausa, mas logo continuou. — Ele cuidou de você, menina, por todo esse tempo enquanto esteve inconsciente.
— Isso não importa... – Foi obrigada a engolir as lágrimas e desviar o olhar. — Isso não apaga o que ele fez.
— Não mesmo? Seu coração é nobre, Lady Ivy, e não por suas riquezas materiais. Sei que é capaz de pensar sobre isso, de medir tudo o que aconteceu e de tomar a decisão correta. – Lisandra soltou suas mãos e desapareceu da cabana outra fez, no mesmo instante em que Jefferson entrou com a comida dela.
Seu coração começou a discutir com seu cérebro e já não sabia mais o que fazer. Estava magoada, estava com raiva, mas também estava precisando de ajuda. Precisava de um amigo. Seria Kadi esse amigo? Ela nunca havia pensado nele como aliado quando visitava o castelo por causa de suas visões. Adrian era muito mais adequado, mas agora... agora estava servindo ao rei e o tabuleiro havia mudado.
Tinha tomado uma decisão, por mais difícil que fosse. Teria que engolir seu orgulho para perdoar Kadi e assim conseguir sua ajuda para lutar contra Antony e vingar a morte de Marilyn.
Teria que confiar novamente no Príncipe de Fogo.
...
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