Cap. 15 - O Conselho de Lisandra

Kadi saiu pela floresta em forma de fênix, sua metamorfose favorita, e voou pela tarde escura, por conta do mau tempo. Sua mente parecia explodir com informações, problemas e estratégias para resolver as coisas com seu irmão, o pai e o povo, que agora estava sob séria ameaça por conta do príncipe de gelo, mas não conseguia parar de pensar no que Ivy havia jogado em sua cara.

Sempre se achou muito forte e poderoso, invencível. Entretanto, durante a luta contra Adrian pôde perceber que de alguma forma o irmão o combatia com facilidade. Seria isso por conta da falta de treino?

Quando eram mais jovens, a situação era inversa: Kadi era o filho abertamente rebelde e Adrian, o filho bonzinho, aquele que obedecia cegamente tudo o que o pai pedia. Com isso, o príncipe de gelo sempre compareceu aos treinos, enquanto o príncipe de fogo fugia para a vila e brincava ou simplesmente passeava por lá.

A Fênix pousou no galho mais alto de uma das árvores da parte mais perigosa da Floresta do Norte, aquela que ganhava vida durante a noite, e observou ao redor. Muitas e muitas árvores escondiam criaturas perigosas durante a noite, mas vistas assim no final da tarde eram tão... bonitas. Traziam uma sensação de calma, uma paz interior.

A melhor parte da Floresta do Norte é que sua capacidade de recuperação era impressionantemente rápida. Ele podia queimá-la todinha agora no entardecer que na manhã seguinte já estaria inteira novamente. Era surreal.

A Fênix desceu até o chão graciosamente, apesar do seu tamanho um pouco fora do comum, e pousou no chão seco e sujo da floresta. Respirou fundo e se destransformou, seus olhos brilharam iluminando o que estava ao seu redor. Estendeu os braços em frente ao corpo e sentiu o calor do fogo queimá-lo por dentro, espalhando-se por seu corpo até chegar em suas mãos, onde concentrou seu poder.

Fechou os olhos e deixou o fogo se libertar. Suas labaredas se espalharam pela floresta de árvores negras queimando tudo em seu caminho. Sentiu seu poder se alimentando através das cinzas que deixava para trás. Sentiu a vida ser retirada de cada planta e de cada ser que vivia por ali. Sentiu...

Sentiu-se péssimo.

E não era só pelo fato de ter queimado a floresta. Sentia-se assim por ter permitido que levassem a garota para a prisão. Ela estava passando por um momento realmente difícil, era normal que explodisse da maneira como explodiu quando o ouviu conversando com Mallya.

Mallya era uma das subchefes dos ladrões, eles tinham algo como uma Távola Redonda. Kadi era o Líder Supremo deles, seu rei, e os demais eram como seus fiéis escudeiros. Mallya era muito esperta e tinha habilidades incríveis, mas seu temperamento era algo deplorável e o fato de achar que tinha algum valor romântico especial na vida dele a fazia ainda mais irritante.

E agora Ivy estava na mira dela por algum motivo. Talvez ciúmes. "Ridículo!" Pensou ele.

O Rei Antony não perdoaria ele, disso tinha absoluta certeza. Sabia que em breve o Rei Porco mandaria suas tropas atrás dele, de Ivy e dos ladrões. Precisava fazer alguma coisa. Precisava arrumar uma nova maneira de proteger a todos. Precisava...

Precisava dos conselhos de Lisandra.

...

A velha estava em sua cabana preparando uma de suas poções fedorentas de cura quando o príncipe entrou, já reclamando do cheiro. Sabia que era ele. Sentia sua energia instável e quente. Sentia que estava precisando da ajuda dela.

— Bom dia, meu filho.

Ela se referia assim a ele quando sentia que sua alma estava vulnerável por algum motivo. Ela sabia que Kadi e Adrian haviam crescido sem a presença materna por culpa de seu cruel pai.

— Aceita um chá?

— Sim, obrigado. – Kadi sentou-se em um dos tocos de madeira que serviam como cadeiras enquanto Lisandra preparava o chá. — Eu... preciso dos seus conselhos.

— Eu sei. – Lisandra estava atenta ao barulho da água na chaleira, percebeu que Kadi estava acelerando o processo de aquecimento com seus poderes e sorriu de leve, ainda de costas para ele. — Já lhe disse que algumas coisas devemos deixar acontecer como a natureza planejou.

— Está falando do chá? Desculpe. – E encolheu os ombros, uma atitude rara nele. A velha sentiu sua energia oscilando, sabia que estava confuso.

— Você deve tirar ela de lá. – E virou-se para servir-lhe o chá.

— De quem está falando?

— Você sabe de quem. – Lisandra sentou-se à sua frente. — Ela será sua grande aliada, Príncipe Kadi. Deve reconquistar a confiança dela, e mantê-la na prisão não é a melhor forma de fazer isso.

— Ela pediu por isso.

— Nem você mesmo acredita na besteira que acabou de dizer. Precisa rever suas escolhas, meu filho, ou vai acabar perdendo não só uma batalha, mas toda a guerra. — Lisandra estendeu a mão e tocou a dele por sobre a mesa.

Um longo silêncio pairou pela cabana de Lisandra enquanto Kadi pensava no que a curandeira havia dito. Sentiu o peso de suas palavras e bem lá no fundo sabia, e odiava admitir isso, que ela estava certa.

— Como posso fazer para que ela me perdoe?

— Pode começar tirando-a da prisão e tentando consolá-la de sua perda recente.

— Que perda...?

De repente lembrou-se do surto da garota no castelo. Aquele surto de poder fora derivado de sentimentos muito fortes. Tristeza, ódio, sensação de impotência. Ela havia perdido alguém que amava muito... e ele não havia conseguido manter a promessa que fez a Lady Ivy.

Kadi assentiu em silêncio. Lisandra soltou sua mão e o rapaz se levantou. Sabia que seria uma conversa difícil. Seguiu para a prisão que construíram junto ao acampamento e ordenou aos guardas que o levassem até Ivy. Quando notou a hesitação dos mesmos e as trocas de olhares, percebeu que havia algo muito errado acontecendo.

Empurrou os guardas com força, cansado de sua lerdeza, e se adiantou. Ouviu gritos e o som de uma luta. Parou em frente à cela, chocado. Ficou alguns segundos sem reação, então começou a gritar e a bater no primeiro guarda que passou perto dele.

...

Ivy havia ficado sentada sozinha na prisão fria por um longo tempo. A ausência de móveis e a pouca iluminação faziam-na se sentir claustrofóbica. Parecia que a qualquer momento o teto desabaria ou as paredes se fechariam e a esmagariam.

E ao mesmo tempo que se sentia assim, também sentia um enorme vazio dentro de si. Perdera Marilyn e Jefferson, que eram como seus pais, e agora estava completamente sozinha novamente. Por mais que sua família de sangue estivesse viva, ela sabia que não davam qualquer importância para ela.

Talvez até dariam, agora que havia se tornado uma fugitiva da coroa, uma aliada dos ladrões, uma conspiradora.... A realidade a atingiu como uma enorme rocha e lágrimas turvaram sua visão. Mesmo que estivesse com os ladrões, eles jamais a tratariam como uma igual, pois sabiam que ela havia nascido nobre.

Por mais que estivesse cercada por muitas pessoas, nenhuma delas a tratariam como um membro da família. Nenhuma dessas pessoas seria como Marylin e Jefferson. A falta que sentia deles era insuportável, fazia crescer um buraco negro em seu coração, que sugava todo e qualquer sentimento bom.

Tudo o que restava agora eram sentimentos podres: a mágoa, a raiva, a tristeza, a decepção, a solidão. Sentia que estava caindo num poço sem fim e que continuaria caindo e caindo, até que sua vida fosse tirada de si. Não tinha vontade de fazer mais nada, a não ser arrancar fora a cabeça do Rei Porco. Isso era o que a mantinha viva.

Estava começando a cochilar, cantarolando a música de Lisandra, quando ouviu a pedra se mover um pouco e três homens entraram segurando cordas, canivetes e um chicote. Sentiu-se desperta no mesmo instante e se ergueu da melhor maneira possível, já que seus braços ainda estavam amarrados e dormentes.

— Então o rouxinol estava cantando? – Um dos homens se aproximou mais dela com o canivete. Ivy se encolheu e se afastou instintivamente. — Mostre seus braços.

— O que? – Sua voz saiu trêmula e lançou ao homem um olhar confuso.

— Mostre os braços. – Rosnou e a puxou pelo tecido do vestido, virou-a de costas e antes mesmo que pudesse protestar, cortou as cordas que a prendiam.

— Por que me soltou? – E fitou-o com desconfiança. — Foi o idiota do seu líder quem mandou?

— Não.

Um sorriso maldoso passou rapidamente pelo rosto do homem enquanto mais um deles se aproximava. Ivy arregalou os olhos ao ver mais de perto o chicote. Então era isso? Iriam castigá-la?

— Saiam de perto de mim! – Ivy aproveitou suas mãos livres e deu um bom soco na cara do homem que estava mais próximo.

Então saltou para trás quando o chicote estalou no ar, quase a acertando. Concentrou o que restava de sua energia, o que não era muito já que não havia ainda feito um feitiço de recuperação, e tentou lançar uma esfera de luz no homem do chicote.

O terceiro, que era bem narigudo, se aproximou também, tentando acertar Ivy com uma faca. O primeiro se recuperou do soco e revidou, lançando Ivy contra uma das paredes. Os três a cercaram enquanto se levantada, estavam com expressões de pura raiva.

— Você vai pagar por sua estupidez! – O narigudo e o cara do chicote a seguraram enquanto o homem que havia a soltado agora rasgava suas vestes com o canivete.

— Parem! Vocês são quem vão se arrepender amargamente se encostarem em mim!

Ela juntou todas as forças que ainda tinha para tentar se defender, mas foi inútil. Não tinha mais energia para usar feitiços e seu corpo estava fraco para uma luta física.

Deixaram-na com o vestido branco parecido com uma camisola, que as damas nobres usavam por debaixo dos vestidos normais para disfarçar a falta de curvas ou para cobrir ainda mais seus corpos.

O narigudo amarrou os braços dela abertos e enroscou as cordas em pequenos aros de ferro que ficavam nas paredes. Deixaram seus pés um pouco acima do solo e ficaram novamente na frente dela.

— Podemos começar? – O cara do chicote sorria maliciosamente.

Os outros dois assentiram e ele desceu o chicote suavemente, cortando a pele da garota superficialmente. Os gritos de dor de Ivy ganharam os corredores da prisão e logo os demais presos estavam gritando e socando as paredes para que deixassem a garota em paz.

Como se não bastasse a tortura, usaram a faca e o canivete para fazer cortes em seu rosto e em seus braços. Estava começando a perder a consciência quando ouviu passos apressados e um grito de ódio.

Seus olhos se abriram novamente e viu de forma bem vaga a figura do príncipe de fogo. Seu rosto estava contorcido pela raiva e lutava sozinho contra os dois guardas que tentavam impedi-lo de atacar os três homens que haviam maltratado Ivy sem as ordens do líder.

Ivy perdeu a consciência por alguns minutos e só voltou a abrir os olhos quando a luta já havia acabado. Sentiu que alguém a carregava e ergueu o olhar devagar, ainda sentia muita dor. Tentou balbuciar alguma coisa, mas suas palavras não chegaram à sua boca.

— Shhh. Fique quieta. – Ouviu a voz de Kadi falar baixinho. — Lisandra vai cuidar de você.

Ivy tentou se mexer. Não queria que ele a carregasse, estava com raiva dele, mas a dor era forte demais e estava sentindo-se muito fraca. Precisava se recuperar de alguma forma. Sabia que ele a deixaria com Lisandra e então desapareceria como se seu dever já estivesse cumprido.

Fechou os olhos, mas se recusou a dormir. Sentiu quando seu corpo dolorido foi colocado numa cama não tão macia quanto seria necessário. Ouviu três vozes, duas masculinas e uma feminina, discutirem entre si apressadamente. Estavam aflitos.

Algum tempo se passou enquanto ouvia apenas o som de potes de barro, água fervendo, tecidos rasgando e um martelo batendo alguma coisa. Quando o primeiro tecido foi colocado sobre seu ferimento a dor foi demais e por não conseguir se mexer ou gritar, acabou desmaiado novamente.

...

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