Cap. 11 - Lisandra

Cassian a estava arrastando pelo acampamento dos Ladrões e fazendo com que vários olhares se virassem na direção deles ao passar.

O lugar era realmente incrível. Era como um mundo dentro de outro mundo, e isso fez Ivy pensar se aquele lugar não teria sido criado com magia negra.

As mulheres, homens e crianças que viviam ali eram muito simples. Suas vestes eram até piores do que as dos camponeses, mas pelo menos eram mais higiênicos. Os camponeses não tinham tempo para pensar na higiene já que trabalhavam sem parar, folgando apenas aos domingos.

Do que viviam os ladrões além dos saques que faziam? Ivy passou a observar os arredores com mais atenção. Ela pôde notar um pomar um pouco mais ao longe e deduziu que também deveria ter uma horta por ali. A água pegavam no mesmo riacho onde se banhavam, e dormiam em camas de palha dentro de suas tendas.

Eram como os Saltimbancos. Até haviam alguns deles por ali fazendo apresentações de dança e malabarismo para os mais jovens e para os mais velhos.

- Chegamos. - A voz de Cassian fez com que saísse de seus devaneios.

Estavam entrando dentro do tronco de uma árvore oca. O local parecia uma pequena gruta. Por toda a parte era possível notar potes, bacias, prateleiras e os mais diversos utensílios. Havia, inclusive, um caldeirão, como o que Ivy mantinha escondido no porão de sua casa.

- Príncipe Kadi! A que devo a honra de sua visita? Não estaria ferido, estaria?

Uma velha senhora de cabelos grisalhos e pele morena se aproximou deles assim que entraram em sua toca. Seus olhos estavam cobertos por uma venda escura e uma bengala a auxiliava a caminhar.

- Ela... - Ivy tentou perguntar o que estava em sua mente, mas a velha respondeu antes mesmo que terminasse de abrir a boca.

- Sim, conheço o segredo dele. Fui a primeira pessoa a ser resgatada por seu bondoso coração. - Um sorriso sereno tomou seus lábios enrugados como maracujá de gaveta.

- Ele a salvou? - Ivy não conseguia desviar o olhar da idosa, que continuava a sorrir.

- Sim. Eu era uma das conselheiras do Rei Antony. Tenho a habilidade de me comunicar com outras criaturas através de meu espírito...

- A Senhora também é médium? - Sem que percebesse a garota pronunciou o que estava em sua cabeça em voz alta e prendeu a respiração até ouvir a resposta para sua pergunta.

- Sim. E trabalhava para os três reis: Antony, Scarlet e Gordon. Sempre os ajudando a vencer guerras. Até que em um fatídico dia minha visão me enganou e os três reis decidiram me castigar...

- Meu pai e meus tios mandaram que a deixassem cega. - Finalmente Cassian se pronunciou e Ivy se lembrou de que ele também estava ali.

- Eu... sinto muito. - E pegou as mãos da anciã entre as suas.

- Não precisa sentir. Fico feliz que isso tenha me acontecido, pois assim aprendi a enxergar com o coração. Antes estava cega pela ambição, mas agora, mesmo sem enxergar, consigo ver os melhores caminhos e decisões a tomar.

Ivy estava tão surpresa com a explicação da senhora que mal sabia o que dizer. Nem se lembrava mais de que estava ali para tratar de seus pés feridos.

- Mas vamos parar de importunar essas jovens cabecinhas. - O sorriso da velha se tornou preocupado. - O que os traz aqui, Kadi?

- Kadi? - Ivy dirigiu seu olhar a Cassian. - Esse é seu verdadeiro nome? Como o seu irmão, Adrian?

- Bingo! - Cassian, ou melhor, Kadi, sorriu para ela meio em deboche. - Como chegou a essa conclusão, Sherlock?

- Sher... o que?

- Sherlock. Nunca leu os livros do famoso detetive que vive numa realidade diferente da nossa onde não existe magia e todos são "normais"?

- Ainda não...

- Devia ler.

- Já chega pombinhos, e me digam o que vieram fazer aqui. - Lisandra os interrompeu, impaciente.

- Não somos um casal. - Responderam ao mesmo tempo, o que os deixou constrangidos.

- Os pés dela estão machucados. - Cassian/Kadi foi o primeiro a falar.

- É. Pode me ajudar?

Lisandra apenas assentiu e indicou uma cadeira para que Ivy se sentasse enquanto preparava uma de suas poções curativas. Kadi saiu da toca assim que a anciã começou a cozinhar e um cheiro muito forte de enxofre ganhou o ar.

Os olhos de Ivy estavam lacrimejando e Lisandra deu a ela um pano úmido para cobrir o rosto. Enquanto cozinhava a senhora cantava uma música bem baixinho. Uma música que Ivy se lembrava de ter ouvido em algum lugar.

"As estrelas brilham no céu

E a Lua veste a noite com seu véu

Uma criança brinca de contar

Mas se perde ao tentar e tentar..."

- Conhece essa música?

- Ah. Acho... acho que sim. - Ivy teve um pequeno sobressalto com a pergunta feita tão de repente. - Ouvi uma vez em algum lugar...

- Pode me acompanhar no restante?

- E-eu não canto.

- Só estamos nós aqui. Por que não tentar?

- Está bem. - Soltou um suspiro e tentou lembrar-se da letra.

"Você pode tocar o céu, pequena criança

Se em seu coração viver a esperança

E quando sentir-se triste e sozinha

Estarei lá em cima para segurar sua mãozinha...

Mesmo se eu de repente partir

Continue sempre a sorrir

Haverá sempre um anjo, meu amor,

Que em terra e sem asas tirará sua dor."

Os olhos de Ivy estavam cheios de lágrimas, seu coração se comprimia no peito enquanto a curandeira continuava a murmurar o ritmo da música repetidas vezes.

Não compreendia porquê se sentia assim. A música era triste, mas ela não costumava se sentir mal por conta de músicas tristes. E a intrigava não saber de onde já havia escutado essa canção.

- Já terminaram o show de talentos? - Kadi havia acabado de voltar. Lisandra estava aos pés de Ivy cuidando para passar a poção melequenta nos lugares certos.

- Cassian! - Ivy o olhou um pouco sem graça. - Você estava nos ouvindo escondido?

- Estava e espero não ouvir mais. Odeio essa música idiota. É completamente sem sentido.

O príncipe estava agindo como uma criança birrenta aos olhos de Ivy, mas ela preferiu se calar dessa vez. Talvez ele tivesse seus motivos para não gostar da música.

- Aqui, junto com os ladrões, prefiro que me chame de Kadi.

- Está bem... Kadi. - Ela testou o nome em sua boca pela primeira vez e soou um pouco estranho, mas teria que se acostumar enquanto estivesse ali.

Lisandra estava terminando de passar a poção, logo seus pés estariam melhores e com sorte Cassian, ou melhor, Kadi, a liberaria para voltar para casa.

...

O rei Antony já estava com tudo preparado, mas não estava nem um pouco feliz por seu outro filho não estar ali. Onde Cassian teria se metido? Ele não era de sair assim sem avisar. Geralmente era bem mais responsável que o irmão.

- Aquele inútil deveria estar aqui...

- Será que estou ouvindo direito? O Rei Antony está chamando seu filho de ouro de inútil? - Aron não pôde deixar essa oportunidade passar.

Ele sabia que em breve não seria mais ele mesmo, por isso tinha que aproveitar ao máximo para importunar seu pai enquanto ainda estava são.

- Cale a boca, seu imprestável! - As banhas do soberano de agitaram com seu movimento súbito para dar um soco na cara do filho.

Aron recebeu o golpe sem resmungar, pois quando fez o comentário sabia o que viria em seguida. A preocupação o queimava por dentro, mas ele não queria que seu pai notasse isso. Saber que estava preocupado só deixaria o Rei Porco ainda mais satisfeito.

O príncipe temia o que estava prestes a acontecer, mas não tinha medo por ele, tinha receio de que o pai o usasse como uma arma, assim como fazia com Cassian de vez em quando.

O Rei Porco se divertia queimando vilas e matando inocentes, mas nunca sujava suas mãos com esse tipo de coisa. Geralmente mandava seus guerreiros de ébano, cavaleiros armados com armaduras de metal banhado em Ônix líquido.

Esses guerreiros eram temidos por todo o povo. Mas, algumas vezes, quando estava bem mais irado, enviava o próprio filho, o príncipe de fogo, para atear suas labaredas em vilas, florestas ou plantações distantes. Para incinerar as vidas de pessoas inocentes. Cassian fazia um trabalho tão bom que não sobravam nem as cinzas para contar a história.

- Chegou a hora, meu filho, de você se tornar tão cruel quanto seu pai! Finalmente Argus encontrou um jeito de manipular uma criatura como você! - Os olhos do rei brilhavam com a perspectiva de que em breve controlaria o poder de seu filho rebelde, o príncipe de gelo.

Aron encarava o bruxo, Argus, antes seu melhor amigo, parceiro de tantos planos e tramoias para ajudar os camponeses. Agora não passava de um traidor. E o pior era que esse traidor o encarava como se pedisse desculpas pelo que estava prestes a acontecer.

...

Kadi a havia carregado de volta para sua tenda, a noite havia caído no acampamento dos Ladrões e os Saltimbancos faziam apresentações com fogo e lança-chamas para encantar e distrair os demais enquanto o jantar não ficava pronto.

Os pés de Ivy já estavam começando a melhorar e em breve poderia voltar para sua casa. Pelo menos, era o que ela desejava. Não gostava de deixar Marilyn e Jefferson preocupados embora fizesse isso quase o tempo todo.

- Obrigada pela ajuda, mas por que decidiu me trazer com vocês? Não poderia ter me deixado na vila? - Essa pergunta não havia ocorrido a ela ainda, mas de repente achou necessário saber.

- Iriam desconfiar de mim se eu a deixasse ficar. Não costumo perdoar os nobres. - Mas Kadi cometeu um erro ao hesitar em responder.

- Está mentindo. - Ivy conseguia ler em sua aura que o que dizia era mentira. Quando a pessoa mentia sua aura tornava-se trêmula e de um tom feio de verde. - Conte-me a verdade. Tenho o direito de saber.

- Achei que gostaria de conhecer nosso modo de vida. - Kadi deu de ombros, sem dar muita importância. - Meu irmão disse que você é curiosa.

- Você disse que não costuma perdoar os nobres... Então o que faz com os que captura?

Kadi começou a andar pelo quarto, impaciente. Tentava pensar em uma desculpa, mas a garota sabia quando estava mentindo. Respirou fundo e seguiu até a cama onde ela estava sentada, sentou-se ao lado dela e a encarou com seriedade.

- Não vai gostar de saber.

- Não importa. Eu quero saber.

Seu coração estava pesando no peito. Que tipo de crueldades eles faziam? Será que torturavam os nobres? Que tipo de senso de justiça era esse?

- Nós os manipulamos. Fazemos com que nos entreguem boa parte de suas riquezas e então apagamos suas memórias e os deixamos ir.

Antes que Ivy pudesse perguntar qualquer coisa, um dos Ladrões entrou pela tenda após se anunciar e entregou uma carta ao príncipe. Kadi dispensou o rapaz e começou a ler depois de quebrar o selo. Sua expressão tornou-se cada vez mais sombria e incrédula. Ivy teve a impressão de que seu rosto empalideceu.

- Kadi? O que houve?

- Você não vai poder voltar à vila, Lady Ivy. - E então fez com que o papel se tornasse apenas um monte de cinzas.

- O quê? Por quê? O que dizia essa carta?

- Essa carta era de um dos meus aliados do castelo. Um dos guardas que trabalha exclusivamente para mim.

- E o que dizia?

- Que o Rei Porco fará um baile no castelo amanhã e que todos os nobres estão convidados. Ele pretende finalmente expor seus filhos para o povo.

- E o que isso quer dizer? Por que não posso voltar para a vila?

- Por que se voltar terá que ir ao baile e meu pai está atrás de você. Ele não sabe do seu segredo, mas sabe que esconde um e por isso está disposto a capturá-la e torturá-la até descobrir.

- E o baile é para me atrair até o castelo?

- Talvez. Você é da nobreza, não poderá faltar.

- É um baile comum?

- Não. É um baile de máscaras e todos receberão uma antes de entrar. Menos os príncipes.

- Mas aí ficará mais difícil de me encontrar.

- Não se o guarda que te der a máscara avisar ao meu pai quem é.

- Tudo bem, mas que desculpa darei para não ir?

- Não dará nenhuma desculpa. A essa altura ele já deve saber onde você mora e que não está lá, por isso fez o convite. É uma maneira de te levar até o castelo já que... já que está com sua ama e seu mordomo em sua posse, nas masmorras.

- O quê? - O sangue fugiu das faces da garota, fazendo com que ficasse com uma aparência cadavérica. - Mas como ele sabe que me importo com meus criados a ponto de ir salvá-los?

- Adrian contou a ele. - O olhar de Kadi era desprovido de qualquer emoção ao fitar a expressão da jovem ao ouvir mais essa notícia.

- Seu irmão é um traidor! É um sujo, imundo, estúpido traidor! E como ele próprio sabia sobre minha relação com meus criados? - A raiva fazia o sangue dela ferver.

- Provavelmente Argus usou algum feitiço nele. Argus é um bruxo poderoso, Adrian acreditava que eram amigos, mas aparentemente ele o traiu. Pelo menos é o que dizia a carta.

- Então...

- É. Tecnicamente ele não traiu você. Ainda.

- Ainda?

- Tenho um mau pressentimento sobre esse baile de amanhã. Sinto que algo muito ruim vai acontecer.

- Eu preciso sair daqui! Você vai me tirar daqui e eu vou até o castelo para libertar Marilyn e Jefferson! - A voz de Ivy saiu com mais convicção do que ela realmente sentia, mas isso não pareceu impressionar o príncipe.

- Você não vai. - E quando a garota estava prestes a questionar, Kadi completou. - Eu vou.

- Você? Por que faria isso? - A incredulidade e a dúvida nos olhos da garota divertiram Kadi.

- Tenho que ir de qualquer jeito. Sou um dos príncipes, lembra? - Um sorriso irônico tomou conta de seus lábios. - Vou dar um jeito de libertar seus criados, mas isso não sairá barato. Vou trazer todos os demais empregados da sua casa para cá e cada um deles levará o máximo de objetos de valor que conseguirem.

- Tudo bem, mas não fará mal a eles, não é?

- Não. Estarei fazendo um favor a eles... A eles e a você também. Sinto que as coisas na vila ficarão bem ruins a partir de amanhã à noite.

- E você sugere que passemos a nos esconder aqui?

- Por que não? - E arqueou as sobrancelhas de modo provocativo.

- Você disse que só protege os marginalizados. Nem eu, nem meus criados somos marginalizados.

- Seus criados talvez não, mas em breve você será considerada uma fugitiva. Já se esqueceu de que meu irmão a ajudou a fugir do castelo?

- Mas ele disse que seu pai não tem boa memória e que logo iria esquecer...

- Opa! Acho que o bom menino mentiu para você de novo. - E com essa última frase Kadi deixou a tenda para organizar as coisas para o dia seguinte.

Precisava de seus melhores homens e mulheres se quisesse mesmo fazer com que os criados de Lady Ivy escapassem do castelo com vida. E precisaria ainda de muita sorte para ele próprio conseguir sair de lá sem desobedecer claramente às ordens de seu pai.

Kadi sabia o que estava prestes a acontecer. Já ouviu seu pai falar sobre esse dia outras vezes com Argus. Ambos estavam procurando uma maneira de fazer com que Adrian cedesse à sua verdadeira natureza e se tornasse tão cruel e tirano quanto Antony e o próprio Kadi.

Queriam que fosse mais parecido com o "irmão mau". Tolos! Idiotas! Estúpidos! Mal sabiam das coisas que Kadi fazia pelas costas de todos para ajudar os que mais necessitavam.

Embora se julgasse uma má pessoa por obedecer ao pai, no fundo Kadi sabia que se fizesse diferente jamais seria capaz de fazer as boas ações que fazia. E que diferença faria se as pessoas soubessem? Iriam idolatrá-lo como faziam com o irmão, Adrian, mesmo sem conhecê-lo de verdade?

Ele não precisava dessa idolatria ridícula e inútil. Não precisava que os outros o vissem como uma vítima. Antes fosse temido e respeitado, para que assim pudesse enganar a todos com mais facilidade.

Ainda assim, Kadi se perguntava constantemente durante os últimos dias porquê havia consentido em ajudar Lady Ivy, uma típica garota da nobreza. Pelas coisas que ele sabia sobre ela, contadas pelo irmão e por alguns informantes, ela era exatamente como Adrian: ajudava os camponeses por julgar que precisavam mais de sua ajuda, mas se esquecia completamente dos condenados.

E ele teimava em se convencer de que a estava ajudando por conta de sua nova condição de fugitiva, mas no fundo, bem no fundo, sabia que a achava interessante.

...

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