Questões Familiares

Já passava das três da manhã, o único som audível eram dos carros e alguns transeuntes que ainda preenchiam as ruas do distrito de Shibuya. A cidade era considerada uma das mais movimentadas do Japão, o distrito que nunca dormia e que estava o tempo todo sendo movido por eventos e festas que preenchiam as ruas quase todos os dias do ano.

Não era bem o tipo de lugar que Nara gostava, na verdade, ela sempre havia preferido a calmaria de Musutafu, mas ela se recusava a continuar morando na mesma cidade onde nasceu, ainda mais sabendo que lá, ela nunca conseguiria se esconder de Endeavor, não importa o que fizesse. Diferente de Shibuya, que por ser agitada demais, seria o último lugar onde seu pai a procuraria.

Sentada no chão da sacada, com as costas apoiadas na grade de proteção, ela encarava a tela de seu celular, depois de ter lido todas as milhares de mensagens que seu pai havia lhe deixado e que ela ignorou assim como fez com as outras. Mesmo que ela deixasse bem claro que não queria falar com ele, o atual herói número um conseguia ser bem insistente. Mas no fundo, talvez, ela realmente fosse como ele. Porque tinha a opção de bloquear o número, mas nunca o fez. Algo em seu interior ao qual ela desconhecia, não permitia que ela realmente o bloqueasse de sua vida. Talvez fosse seu subconsciente a torturando e lhe lembrando que não importava o quanto ela fugisse, ela ainda era a filha daquele homem. E era tão parecida com ele, do que seus outros irmãos.

Apertou o aparelho contra o peito e se encolheu, abraçando seus próprios joelhos.

Também estava tentando entender o que havia feito ela se levantar da cama a uma hora da manhã e se arrastar até a sacada. Estava tentando se convencer de que também não estava esperando pela visita de Hawks, por mais que ela estivesse ciente de que talvez ele fosse aparecer. Mas só haviam sido duas madrugadas seguidas, mesmo que ele tivesse dado a entender que voltaria, não era como se tivesse lhe feito uma promessa.

Então por que diabos ela havia deixado um prato de comida pra ele sobre a bancada? Por que estava sentada lá fora, sentindo a brisa gelada da madrugada começar a fazer a ponta de seus dedos doerem e seu nariz começar a escorrer?

Não, ela não estava esperando por ele. Balançou sua cabeça rapidamente, tentando afastar aquele tipo de pensamento e se apegar ao fato de que ela só estava tendo mais uma noite de insônia, isso sempre acontecia, logo após ela ter tido uma noite de pesadelos. E por mais que ter passado o dia inteiro com seu ex professor e seus melhores amigos tenha sido extremamente divertido e a feito esquecer de seus problemas, no final do dia, eles sempre estariam ali esperando por ela, para atormentá-la e fazê-la se remoer até o fundo de sua alma.

Afundou sua cabeça entre seus joelhos e tentou respirar bem fundo, na tentativa falha de que ficasse calma o bastante para sentir sono. Mas o farfalhar do som de asas a fez erguer a cabeça rapidamente, quase que de modo automático. Seus olhos captaram as botas escuras pousadas sobre o apoio da grade de proteção. Subindo os olhos aos poucos, reconheceu a calça bege, a camisa polo preta e a jaqueta clara que o encobria. E também, aquele enorme par de asas vermelhas que combinava tão bem com ele, como se tivessem sido moldadas para aquele corpo.

Piscou algumas vezes, enquanto o via pular de cima da grade e apoiar os pés no piso de sua sacada, parecendo mais como uma miragem, enquanto ele erguia os óculos laranjas acima de seus cabelos dourados e a observava atentamente com aquelas pupilas ambar.

Era realmente uma miragem, não parecia ser real.

Ela estava sonhando?

— Você vai pegar um resfriado se continuar sentada ai.

A voz dele reverberou por seus ouvidos, no mesmo tom zombeteiro de sempre, até ela finalmente processar que não estava dormindo, estava totalmente acordada e Hawks estava diante dela, se inclinando e abaixando-se na mesma altura da mesma.

—Hawks? — Sua voz saiu mais baixa do que esperava, quase como um sussurro rouco devido às várias horas sem falar nada.

— Oi, boneca. O que você tá fazendo aqui fora? Esperando por mim?

Nara ainda levou longos segundos para processar a frase dele, notando o sorriso convencido aumentar ainda mais na face do rapaz.

O que não tardou a fazer ela franzir o cenho e mudar sua expressão para irritação.

— Não viaja. — A ruiva abaixou seus joelhos e se apoiou na grade para ter impulso ao se levantar. Hawks também se reergueu, denotando a diferença de altura de ambos, não que ele fosse muito mais alto que ela, mas ainda tinha bons centímetros de diferença. — São três da manhã, o que você tá fazendo aqui?

— Foi mal, eu sei que tá bem tarde, mas meu dia foi um daqueles bem difíceis e eu só consegui parar agora. — Ele coçou a nuca um pouco sem jeito.

E Nara começou a se questionar o porquê dele lhe dar satisfações como se devesse isso.

— Você não tem que se explicar pra mim. O correto mesmo seria que deixasse de aparecer no meu apartamento durante a madrugada.

— Você gostaria que eu viesse mais cedo? Posso adiantar meus trabalhos e tentar aparecer aqui durante a noite, o que acha?

— Que? — Ela encarou o Pro Hero incrédula, não era bem aquilo que ela estava tentando explicar. — Hawks, eu não to pedindo pra você vir mais cedo, estou dizendo que deveria parar de vir me visitar.

— Por que?

Porque meu ex professor achou uma pena sua no meu apartamento e agora acha que estamos tendo um caso. — Ela pensou, sentindo seu estômago se revirar ao se lembrar da forma como Aizawa abordou o assunto.

— Como, por que? Você é o herói número dois, tem diversas responsabilidades e eu não acho que deveria ficar se preocupando de voar de Musutafu até aqui, só para me atormentar. Além do mais, nem somos amigos.

Hawks levou uma mão ao peito do lado do coração, enquanto sua expressão mudava para algo mais dramático.

— Assim você parte meu coração, boneca. — Ele sorriu pra ela, abaixando sua mão e mantendo suas íris fixas nas dela, chegando a soar um pouco intimidador da forma como estavam tão próximos. — Você ainda está de TPM? Eu meio que acabei me esquecendo, deveria ter te trazido doces. Quais são seus chocolates favoritos?

Nara arqueou as sobrancelhas um pouco confusa do que ele estava falando, até se tocar de que essa havia sido sua desculpa para a noite anterior quando ele a questionou a respeito dela estar chorando.

Balançou a cabeça de forma automática, enquanto cruzava os braços abaixo do busto, mantendo sua expressão séria.

— Olha Hawks, se você me visitar todos os dias for alguma estratégia do Endeavor me fazer voltar para casa pode...

— Que? O Endeavor? Não, ele nem sonha que eu tenho vindo aqui te visitar todas essas madrugadas, ou ele com certeza iria me queimar vivo.

A forma séria como ele havia dito, tinha entregado toda sua sinceridade, fora que ele nem sequer havia desviado os olhos dela enquanto falava.

— Então eu não entendo o que faz aqui. Se não é a mando do meu pai.

— Porque eu acho você legal e também porque tinha um pouco de esperanças de que você aceitasse entrar para a minha agência em algum momento.

Ah era aquilo, com certeza tinha algum interesse de herói por trás de suas visitas diárias.

Nara deu as costas para ele e caminhou para o interior de seu apartamento, tendo plena consciência de que Hawks estava em seu encalço.

—Pode esquecer, isso não vai rolar.

— Mas por que? Você tem muito potencial, eu ainda me lembro da sua apresentação naquele festival.

Ela parou próxima da mesinha de centro e se virou para encarar o loiro, que também cedeu seus passos quando já estava próximo demais dela.

Qual o problema dele com espaço pessoal?

— Hawks, eu já disse não.

— Mas não me explicou o motivo. — Ele insistiu.

— Primeiro que eu não tenho interesse nenhum em ser heroína, segundo, eu nem ao menos tenho licença pra isso.

— Não tem? — Foi a vez dele arquear uma sobrancelha. — Por que você não tem uma licença de heroína?

— Porque eu não quis tirar uma. — Ela ralhou já extremamente irritada.

Aquilo era uma meia verdade, mas ela não queria ter de contar para o herói número dois que ela não tinha uma licença porque eles também não quiseram dar uma a ela na época em que fez a prova, por mais que tivesse demonstrado um bom desempenho. Não era como se ela ao menos tivesse se importado o suficiente na época, nunca quis atuar como heroína e achou que aquilo seria uma excelente desculpa para não se ver obrigada a prestar serviço na sociedade.

Ela viu o loiro inclinar a cabeça pro lado, mas não soube dizer que expressão era aquela que ele fazia.

— Certo. — Ela viu as asas dele se encolherem em suas costas, assim como seus ombros também penderam. — Não vou mais insistir nesse assunto.

Nara se sentiu agradecida por isso, ela realmente não estava disposta a ter uma discussão daquela com Hawks.

Desviou os olhos dele e encarou o prato que ela havia deixado pronto sobre a bancada.

— Está com fome? — O encarou novamente, vendo o herói apenas balançar a cabeça. — Certo, eu vou esquentar pra você. Fique a vontade. — Ela recitou a última frase por educação, mas já tinha certeza absoluta de que Hawks se sentia muito mais que a vontade no apartamento dela, não era atoa que ele simplesmente invadia quando a porta estava fechada.

Nara foi até a cozinha, deixou seu celular sobre a bancada, pegou o prato e o colocou no microondas. Ainda tinha sobrado um pouco do risoto que Aizawa havia feito mais cedo no almoço e por algum motivo, ela sabia que o Pro Hero iria aparecer novamente ali, como sempre, com fome.

E ela achando que heróis da patente dele fossem ricos. O que ele fazia antes de começar a invadir o apartamento dela para comer? Invadia a casa de outra pessoa?

Enquanto a comida ainda não aquecia, ela virou a cabeça por sobre o ombro, vendo Hawks olhar ao redor da sua sala com certa curiosidade.

— Comprou móveis novos?

— Hunrum. — Ela assentiu sem muito interesse no assunto.

— Legal. E quando vai comprar um sofá?

— Logo, logo.

— Eu acho que você deveria providenciar um bem rápido. — Hawks comentou enquanto encarava o espaço vazio da sala onde dava para colocar um sofá.

— Por que?

— Pra eu não precisar mais voar daqui até a minha casa durante a madrugada.

A Todoroki se virou totalmente para encará-lo, sem esconder sua expressão de incredulidade. Ela já sabia que o Pro Hero era folgado, mas ele estava começando a ultrapassar todos os limites.

— Acabei de decidir que nunca vou comprar um sofá. — O som do microondas a fez se virar e pegar o prato dentro do eletrodoméstico, o pousando sobre a bancada com os talheres. — Vem comer logo pra ir embora.

Hawks se aproximou e se sentou sobre uma das banquetas, lançando a ela um sorriso travesso que deixou Nara em estado de alerta. Ela nunca sabia o que se passava na mente dele, não que tivesse medo de Hawks, mas também não imaginava quais atitudes ele poderia tomar com seu egocentrismo tão gigante.

— Ainda tenho esperanças de que você me trate bem um dia. — Ele brincou, pegando os talheres e colocando uma porção na boca. Erguendo a cabeça no mesmo instante para encará-la. — Não foi você quem cozinhou isso.

— Está tão ruim assim?

— Não, claro que não. Mas esse não é o tempero que você usa.

Ela não sabia se ficava em choque por ele reconhecer seus temperos, ou se preocupava com o fato dele estar encarando ela, como se a mesma tivesse colocado veneno na comida. O que de tudo, não seria uma má ideia, não algo que o matasse, mas apenas que o fizesse nunca mais aparecer ali.

Ela sacudiu sua cabeça ao se tocar dos pensamentos intrusivos que estava tendo, quase sentindo o ímpeto de acertar um tapa em sua têmpora para se esquecer daquilo. Ela não era uma vilã, mesmo que não tivesse uma licença para heróis, também não era uma pessoa má.

— Foi meu professor quem cozinhou pra mim. — Ela confessou, enquanto encolhia seus ombros, ainda se sentindo péssima com sua própria mente naquele instante.

— Aizawa? — Hawks arqueou uma sobrancelha, parecendo se recordar bem do herói que ministrava aulas no colégio UA. Nara apenas assentiu e Hawks balançou os ombros, antes de colocar mais uma porção de comida na boca. — Ele cozinha muito bem, mas eu ainda prefiro a sua comida.

A Todoroki não sabia dizer se aquilo a alegrava, ou se aumentava ainda mais suas dores de cabeça, ao imaginar que Hawks deveria estar planejando mais visitas como aquela.

E não importava o quanto ela o questionasse, ele nunca lhe daria uma resposta sincera. O que ela poderia fazer? Se mudar de novo? Antes ela pensava que só precisava de uma mudança para fugir do seu pai, agora ela pensava seriamente em sair do país para não ter que lidar com mais nenhum herói, até mesmo seus amigos, ela poderia abrir mão deles, mandar cartas, conversar por vídeo chamas. Ela só queria conseguir um pouco de paz.

Mas aí se lembrou das chantagens emocionais de Aizawa e de que no dia seguinte ela precisava comparecer bem cedo na UA, para ser uma das novas professoras da instituição. O simples pensamento de ter de pisar no lugar que por anos ela odiou a fez sentir vontade de chorar, de cavar um buraco e se enfiar dentro.

Parecia que todos ao seu redor a odiavam.

— Hawks, você vai precisar parar de vir durante as madrugadas. — Ela começou a falar assim que o loiro terminou de comer.

— Tudo bem, como eu disse, posso tentar aparecer mais cedo.

— Não, não é isso. — Ela respirou bem fundo, tentando achar uma forma de falar com ele e parecer convincente, porque às vezes era como se o Pro Hero fosse uma criança que não compreendia as coisas. — Vou começar a ministrar aulas na UA, não posso mais ficar te recebendo durante a noite e cozinhando pra você.

— Ah. — Ela viu a expressão dele murchar um pouco, assim como suas asas se encolherem, acreditando que ele finalmente havia entendido o que ela falava. Mas a expressão de Hawks logo mudou, para um sorriso animado, enquanto suas asas se abriam um pouco. — Certo. Então o que acha de eu trazer nosso jantar pronto de algum restaurante e comermos juntos todos os dias às oito horas?

Nara sentiu vontade de dar um tapa em seu próprio rosto, não era possível que ela realmente tivesse acreditado que o loiro pudesse entender o que ela falava.

— Hawks, deixa eu ser mais clara para você. — Ela respirou fundo mais uma vez, buscando as palavras certas para continuar aquele diálogo, por mais que seu olho direito já estivesse tremendo de irritação. — Não quero mais que você apareça aqui, não venha mais no meu apartamento. Como eu disse antes, não somos amigos, eu também não tenho interesse algum em ter uma amizade com você e eu nunca vou entrar na sua agência. Então, para de perder tempo com quem não tem interesse em você e nada do que tem a oferecer.

Ela sabia que agora havia pegado pesado com as palavras. Hawks não tinha mais um sorrisinho nos lábios como de praxe, o que por um mísero segundo a fez se sentir um pouco mal por ser grosseira com o Pro Hero.

— Tudo bem. — Ele se levantou de seu assento, enquanto ajeitava a jaqueta em seu corpo e abaixava os óculos sobre os olhos. — Qual sua comida favorita? Tem algum restaurante de preferência?

Nara abriu a boca totalmente incrédula. Ele por acaso tinha escutado o que ela havia acabado de falar?

— Hawks, qual a parte do...

— Olha, boneca. Não importa o que você diga, eu não vou te deixar em paz.

— Eu poderia te denunciar, sabia? Invasão de propriedade e perturbação da paz.

— Você pode até tentar, mas todos gostam de mim, duvido que a polícia vai realmente se incomodar com uma denúncia direcionada ao herói número dois. — O sorriso convencido que ele tinha em seu rosto, foi o que fez Nara se estressar ainda mais. Ela pegou a faca que estava sobre o prato vazio dele e arremessou contra o herói, que desviou rapidamente pro lado, vendo o objeto se alojar contra a parede, num tiro certeiro. Ele olhou para trás e depois a encarou, agora com suas pupilas maiores. — Você poderia ter me acertado, sabia?

— Essa era a intenção. — Ela ralhou, enquanto pegava o garfo e o girava entre os dedos, se preparando para jogar contra o mesmo novamente.

— Você é igualzinha ao Endeavor, eu sempre falo pra ele que precisa de uma terapia para melhorar o humor. Acho que você também deveria tentar.

Se a situação já não estava estressante o suficiente, ouvir o Pro Hero mencionar o quanto ela se parecia com seu pai, foi o estopim para deixar a Todoroki ainda mais furiosa.

Ela arremessou o garfo e esse passou rente pelas asas de Hawks, ela viu uma das penas dele cair e o loiro emitir um gemido de dor. Mas ele permaneceu parado no meio de sua sala, sem ameaçar ir embora, o que era o objetivo da ruiva.

Ela se virou para abrir a gaveta do armário e pegar mais um conjunto de facas, quando sentiu seu corpo ser pressionado contra a bancada. As mãos de Hawks agarraram os pulsos dela e puxaram seus braços para cima, fazendo com que ela os cruzasse contra seu peito, enquanto o loiro pressionava as costas dela em seu peitoral, a segurando com força o suficiente para que a menor ficasse totalmente imobilizada.

— Me solta, Hawks! — Ela gritou, enquanto se debatia, sentindo os músculos dele a apertarem ainda mais.

— Por mais que eu me divirta com esse seu estresse, acho que já passamos dos limites, você vai acabar se machucando. — A voz dele parecia mais grave, enquanto sussurrava próximo ao ouvido dela, entregando o quanto ele estava se esforçando para segura-la.

— Eu vou matar você, Hawks.

— Ótimo, aí você vai ser presa no Tartáro e nunca mais vai poder ver o Shoto.

Shoto.

A simples menção do nome de seu irmão foi o suficiente para que ela parasse de se debater e seu corpo cedesse. Era como se ela tivesse perdido todas as suas forças só com o simples nome do Todoroki caçula.

Não era a primeira vez que alguém o utilizava como seu ponto fraco.

E ela nunca conseguia esconder esse fato. Era como se seu corpo fosse programado para ceder as coisas que afetariam seu irmão caçula.

Nara só percebeu que estava chorando, quando um soluço alto rompeu de seus lábios. As lágrimas quentes banharam todo seu rosto e ela se encolheu contra Hawks, sentindo o mesmo afrouxar o aperto em torno dela, soltando seus punhos e rodeando os braços ao redor da barriga dela, enquanto apoiava o queixo em sua cabeça, num gesto quente e reconfortante.

Ela se virou aos poucos, escondendo o rosto contra o peitoral do Pro Hero, enquanto seus dedos apertavam com força a camisa de baixo dele. Ele nem sequer fez menção em afastá-la, só a apertou com carinho e afagou suas costas.

— Por favor, eu só quero que você vá embora. — Ela balbuciou em meio ao choro, abafando sua voz contra a camisa dele.

— Tudo bem. — Ele assentiu, começando a se afastar dela aos poucos. Nara ergueu a cabeça e Hawks depositou um beijo em sua testa, antes de afastar as mãos dela de seu corpo. — Eu vou te deixar sozinha, só fica bem, tá?

Ela não conseguiu prometer aquilo pra ele, na verdade, era algo que ela não prometia nem para ela mesma há anos.

Apenas observou o loiro sair da cozinha e passar pela sala, saindo pela porta da sacada sem nem olhar para trás.

Aguardou mais alguns longos segundos, antes de encolher seu corpo e se abaixar ali no chão da cozinha, abraçando seus próprios joelhos e deixando as lágrimas caírem por seu rosto como uma cascata.

Ela não era como Endeavor, não queria ser como ele, nunca seria como ele.

Ela só precisava ficar longe e os traços de igualdade iriam se perder.

Ao menos era essa a esperança que ela tinha.


***


Assim que passou pelas portas do restaurante, Nara parou entre algumas mesas e soltou um suspiro pesado ao reconhecer o homem de cabelos nos mesmos tons dos dela sentado em uma mesa aos fundos.

Considerando o local totalmente vazio em horário de almoço, ele deveria ter pedido para que o local fosse fechado para o encontro deles.

A Todoroki sentiu vontade de dar meia volta e ir embora. Começando a se arrepender amargamente em ter cedido aos pedidos insistentes de seu progenitor. Depois das quinhentas ligações de Endeavor só aquela manhã, ela havia concordado em se encontrar com ele num restaurante para conversarem, deixando bem claro de que aquela seria a última vez em que se falariam pessoalmente. Ela mesma havia escolhido o local, optando por um restaurante em Shinjuku, mesmo que ficasse longe de onde ela morava, era pelo menos para fazer com que Enji acreditasse que aquela era a cidade onde ela estava morando e não acabasse por encontrá-la em Shibuya sem querer.

Teve que conter o impeto de revirar os olhos por vê-lo em seu uniforme e com suas chamas proeminente em destaque ao redor de seu rosto, o que para os vilões deveria parecer assustador, para Nara soava um completo idiota exibido.

Ela se aproximou da mesa, vendo o mais velho lhe lançar um sorriso agradável que não foi correspondido pela mesma.

— Olá, filha. Fico feliz que tenha aceitado meu convite. — Ele começou num tom amigável.

Nara se sentou em uma cadeira de frente pra ele, cruzando os braços e tentando relaxar o corpo sobre a cadeira estofada, por mais que ela realmente não conseguisse ter essa paz de espírito perto do homem que tanto a perturbava.

— Meio impossível recusar depois de você me infernizar tanto. — Ela rebateu de mau humor.

— Bom. — Endeavor pigarreou, suas chamas diminuindo aos poucos em torno de seu rosto, mas em nenhum momento se apagando. — Eu estava com saudades de você.

— Corta essa, Enji. — Nara balançou uma mão no ar com certo desdém. — Se você acha que vamos conversar como um pai e uma filha normal, pode esquecer. Eu só quero saber o que você quer e ir embora.

Ela o viu respirar bem fundo, tensionando seus ombros. Uma característica que indicava que ele estava se esforçando para se manter passional. E ela sabia que era uma mania que ela também tinha e sabia perfeitamente o que estava se passando na cabeça dele naquele instante.

Ter paciência e lidar com a situação da melhor forma possível.

Mas não era como se ela estivesse disposta a colaborar.

Um garçom se aproximou da mesa deles e pousou os cardápios.

— Podem ficar a vontade em escolherem, eu volto daqui a pouco para anotar seus pedidos. — O rapaz simpático de sardas e cabelos ruivos sorriu amigavelmente para eles.

— Eu vou querer só uma água. — Nara comentou, pegando o cardápio e entregando de volta para o rapaz, sem nem sequer desviar os olhos de seu pai.

— Não vai comer? — Endeavor arqueou uma sobrancelha com certa repreensão.

— Não quero correr o risco de vomitar enquanto tenho que comer olhando pra sua cara.

Ela ouviu um som estranho vindo do garçom, o que a fez encará-lo e o mesmo parecia bastante desconfortável diante dos dois.

Endeavor entregou o cardápio de volta para o mesmo, pedindo apenas um café puro e forte.

O rapaz anotou os pedidos e saiu rapidamente, os deixando a sós novamente.

— Não deveria falar assim comigo na frente dos outros. — O ruivo continuou com seu tom de repreensão, que não abalou nem um pouco a mais nova.

— Que foi? Tá com medo que seus fãs descubram que você não é nada do que aparenta? Como acha que eles iriam reagir se soubessem a verdade por trás do atual herói número um?

— Nara! — Endeavor ralhou num tom mais baixo, comprimindo seus olhos e fazendo com que as chamas em seu rosto aumentassem. Ele estava estressado e ela estava ficando satisfeita. — Não te chamei aqui para discutirmos.

— Pra que mais me chamou então? Por que eu não tenho nada legal para falar pra você, papai. — O tom debochado escorreu com acidez pelos lábios dela, sustentando um sorriso zombeteiro. — Se acha que eu vou escutar seu discurso sobre tentar ser uma nova pessoa e se redimir sobre seus atos, te perdoar e voltar pra casa para sermos uma família feliz, você está totalmente enganado.

Ela o viu fechar os olhos e puxar o ar com mais força, antes de voltar a encará-la novamente. Mesmo que ele estivesse se esforçando, as labaredas das chamas em sua face crepitando, indicavam que ele não era muito bom em seu controlar. Não que ela já não soubesse disso. Tinha a mesma personalidade e também não lidava bem com seu estresse.

— Olha, eu sei que eu errei...

— Errou? — Nara riu quase que automaticamente. — Errar é você se esquecer da data de aniversário de algum filho seu, é se esquecer de ir em algum evento de pais na escola. Errar é você brigar sem um motivo lógico ou não estar presente. Mas torturar seus filhos psicologicamente, fisicamente e espancar a sua esposa na frente deles, isso ta mais pra falta de caráter mesmo.

Ela o viu se remexer de forma desconfortável em sua cadeira, o que só a deixou ainda mais animada em saber que estava alcançando os limites do herói número um.

Nara era de longe a filha que mais lhe dava trabalho, mas por algum motivo, ela sempre reparou que Endeavor parecia ter mais paciência com ela, do que com os outros. E isso talvez tenha acontecido pelo fato de que até um ano atrás, ela ainda era a maior esperança dele de se tornar uma das heroínas mais fortes da sua geração. O que ela fez questão em se esforçar para decepcioná-lo, se recusando a utilizar sua individualidade.

O garçom voltou com os pedidos de ambos, pousando o copo de água gelada na frente de Nara e a xícara de café na frente de Endeavor o mais rápido possível, se retirando como se sentisse toda a atmosfera pesada que pairava sobre aquela mesa, enquanto pai e filha se encaravam como se estivessem a ponto de pular sobre as gargantas um do outro.

Nara bebeu alguns goles de sua água pacientemente. Por mais que ela se divertisse em irritar Enji, seu coração estava palpitando e ela precisou apertar o corpo com mais força entre os dedos, porque suas mãos estavam trêmulas. E ela odiava como ele a afetava, por isso se esforçava em fazer ele sentir a mesma coisa.

— Eu realmente não vim aqui discutir com você.

— Então diga logo o que quer e vamos acabar com essa palhaçada.

Endeavor se mexeu em sua cadeira mais uma vez, as chamas em seu rosto finalmente se apagaram, enquanto ele bebia um gole de seu café, talvez tomando coragem para continuar.

— Algum dos seus irmãos deve ter lhe dito que a Rei teve alta do hospital.

— O Shoto me contou.

— Bom... Eu decidi deixá-los em paz, comprei uma outra casa pra eles e estou morando sozinho na antiga. Fuyumi e Natsu estão com sua mãe, o Shoto ainda mora na UA, mas aparece lá para vê-los ao menos nos fins de semana.

— Finalmente tomando decisões sensatas, papai. Meus parabéns. — Nara forçou um sorriso, fingindo falso orgulho.

— Será que você pode me levar a sério ao menos uma vez na vida?

— Desculpe, é meio difícil, eu sempre sinto vontade de rir enquanto olho pra sua cara.

Ele balançou a cabeça rapidamente, como se tivesse afastando algum pensamento que tivera.

Nara se sentiu enjoada ao reparar em como todos os trejeitos dele eram iguais aos dela, como ela era tão parecida com aquele homem que lhe causava repulsa.

— Estou tentando me redimir pelos meus erros, não espero que você, seus irmãos ou até mesmo a Rei me perdoem pelas coisas que fiz no passado, mas estou me esforçando.

— Por que?

— O que? — Ele a encarou com certa confusão em sua expressão.

— Por que decidiu se redimir agora? É por causa do seu novo título? Passou anos querendo se tornar o herói número um, agora que conseguiu, decidiu ser uma pessoa melhor? Você não está arrependido de verdade, Enji. Só quer fingir que agora faz a coisa certa, você ainda continua sendo o mesmo idiota de sempre.

— Nara... — O som da voz dele soou como uma súplica, mas a mais nova não estava nem um pouco afim de ceder aos desejos dele. — Ao menos vá morar com seus irmãos na nova casa, sua mãe sente sua falta.

— Não, ela não sente. — Ela se viu batendo o corpo sobre a mesa com força demais, sentindo seus braços tremerem com mais intensidade, enquanto ela lutava para controlar as lágrimas. — A única coisa que minha mãe sente, é repulsa de mim, porque infelizmente eu tive de nascer com a sua cara e com a merda da sua personalidade. E por sua causa, eu não posso voltar pra casa, porque eu seria o motivo da recaída dela, assim como você foi o motivo dela ter ficado doente. — Ela descarregou com a voz trêmula, se levantando logo em seguida, enquanto tentava controlar sua respiração alterada e os batimentos cardíacos que entregava um início de ansiedade. — Se isso era tudo o que queria me falar, por favor, Enji, faça um favor para nós dois e nunca mais me procure. — Ela lhe deu as costas e começou a caminhar para a saída do restaurante, parando no meio do percurso, para encará-lo por sobre o ombro uma última vez. — Aliás, meus parabéns por conseguir tudo o que sempre almejou. Só tenta não estragar o mundo dos heróis, você tem uma péssima mania de destruir tudo o que toca.

E com isso, ela obrigou seu corpo a se arrastar para fora daquele restaurante.

Assim que os raios de sol tocaram seu rosto, ela engoliu em seco para não chorar em público, notando que algumas pessoas passavam por ela e a encaravam, a reconhecendo como a filha do herói número um. 

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