Capítulo 3

O fim de semana está quase chegando, e minha folga também, o que faz meu ânimo retornar. No telemarketing receptivo (o que só recebe ligações), nós temos folgas intercaladas entre sábado e domingo.

Neste fim de semana, por exemplo, eu trabalho sábado e folgo domingo e no próximo, eu folgo sábado e trabalho domingo. Não posso dizer que fico satisfeita em ter só uma folga, mas entendo que presto serviço para uma concessionária cujo serviço em alguns casos é essencial à vida, então não tenho muito para onde correr.

Geralmente, o fluxo de ligações no sábado é maior do que domingo, e a aporrinhação dos clientes começa bem cedo. Grande parte dos nossos atendimentos nem são tão voltados para ocorrências de falta de energia, o que me deixa bem irritada.

Recebo um convite de minha mãe para um churrasco que vai ocorrer sábado à tarde. Terei que ir direto do trabalho para lá. Confirmo a minha presença mesmo com desânimo.

A primeira coisa que faço quando chego em casa é checar o site no qual ofereço meus serviços de freela. Depois, dou carinho em Loki que está contente em me ver. Tomo um banho e me jogo de qualquer jeito na cama enquanto encaro o teto de forma reflexiva.

Nada de entrevistas de emprego e serviços de freelancer para mim.

Meu celular vibra de forma constante fazendo Loki se assustar. Percebo que são notificações do Whatsapp de um grupo intitulado como "Equipe Julio Cesar". Não sei como conseguiram meu número, mas tenho o palpite de que Jorge tenha um papel nisso, já que ele também está no grupo.

Vejo que além de grande parte da equipe, que Julio também está no grupo. Ele e Jorge são os administradores, o que resolve o mistério de como meu número apareceu no grupo que aparentemente meu crush/supervisor criou.

Clico em cima da foto de perfil de Julio e fico admirando o seu rosto por um tempo. Ele está sem óculos na foto, de qualquer forma, ainda não consigo ver bem a cor de seus olhos. Aproximo a tela do rosto e levo um susto ao sentir meu celular vibrar outra vez, o que me faz derrubar o aparelho na minha própria cara.

Sem perceber, ativo a chamada de vídeo com Julio. Meu coração acelera quando não consigo encerrar a chamada, pois meu celular simplesmente resolveu travar nesse momento tão desesperador.

— Desliga, desliga! — eu grito para o aparelho enquanto o sacudo para todos os lados possíveis sob os olhos curiosos de Loki, que parece não entender bem o que estou fazendo.

Quando o celular finalmente destrava, Julio atende a ligação.

Alô?

Solto um grito e aperto mais uma vez o botão de desligar. Coloco tanta força, raiva e desespero, que ele destrava e encerra a chamada. Jogo o telefone em cima da cama, que quica e por alguns centímetros não cai no chão.

Legal, agora ele deve me achar ainda mais patética!

Pego o telefone, e com a vergonha lá na China, eu envio uma mensagem para Julio esclarecendo que meu telefone bugou, travou e ligou para ele sem querer.

Eis a resposta:

Tudo bem, mas se o seu celular resolver bugar novamente, tente não gritar.

Meus tímpanos agradecem.

Até agora eu não sei se ele quis ser irônico ou engraçado. Respondo com um emoji de risada, mas não acho graça no que ele disse. Sei que a minha insegurança me faz pagar micos constantes, mas a situação com Julio já tinha se tornado um verdadeiro King Kong.

[...]

É sábado de manhã e eu já estou irritada. Tento buscar paciência para continuar atendendo o capeta que para o meu azar caiu no meu ramal, mas as minhas mãos já estão tremendo de raiva. Eu não consigo entender a disposição que esses clientes tem de acordar cedo num sábado ensolarado para ligar para cá para reclamar de fatura tendo outras coisas muito mais interessantes para fazer num dia lindo como o de hoje.

Sério, é de cair o cu da bunda a minha indignação.

Jorge está do meu lado lixando as unhas e atendendo uma cliente. Ele parece sereno e eu o invejo por isso. Julio também está aqui hoje, para a minha infelicidade. Ele age como se aquela noite no pub não tivesse acontecido, e eu faço o mesmo. Não temos motivos para falar disso.

Perco a paciência com o meu cliente quando ele me ofende e faço o script de encerramento, onde digo que a ligação será transferida para ser encerrada. Não deixo o cliente concluir os outros xingamentos, já encaminho aquele infeliz mal educado para o ramal de Julio. Ele que vá para a merda!

Programo uma pausa particular e levanto super irritada. Pareço um Troll cheio de raiva. Não consigo evitar, tem clientes que passam dos limites.

Eu sempre atendo os clientes com a minha melhor voz doce, sempre me mostro solícita e pronta para ajudar, porém toda a minha cordialidade não funciona com todos os clientes e são esses que geralmente me tiram do sério. Não custa nada agir como uma pessoa decente na ligação, mas existem uns clientes que preferem agir como loucos descontrolados. Acho que a empresa deveria nos fornecer suporte psicológico para lidar com esse povo. Eles precisam de terapia e para lidar com eles nós precisamos da terapia. É preocupante.

Dou um verdadeiro passeio pela central e paro na mesa de vários operadores para conversar. Fazer isso me deixa mais calma, mas ainda sinto que meu coração está acelerado.

— E aí, Ritona! — Apoio meu cotovelo na sua PA. Ela se vira para mim com um meio sorriso — Uou, acabou a fila? — indago embasbacada ao ver que sua avaya não está com nenhum cliente.

— Parece que sim, mas é melhor não comemorarmos antes da hora. — Ela olha de forma temerosa a sua avaya — Deixa eu te falar, o pessoal tá marcando uma resenha lá no Flavio Lanches. Tá afim de ir?

Flávio Lanches é um dos points favoritos da galera do trabalho. Vira e mexe todo mundo se junta depois do expediente para bater um papo e comer um hambúrguer gostoso. É um lugar agradável e como a maioria gosta de beber, também servem bebidas alcóolicas.

— Quando?

— Sábado que vem.

— Vou ver a minha escala e te falo. — Nessa hora entra uma ligação em seu ramal.

— Tá de pausa?

— Coloquei uma particular. — Dou de ombros — Tô de saco cheio desse lugar! Sem contar que o nosso supervisor novo é um bobão. — Rita arregala os olhos e faz sinais sutis para que eu pare de falar. Quando me viro, Julio está atrás de mim. Tenho certeza absoluta de que ele me ouviu falando mal dele.

Rita se vira para o seu cliente e eu fico ali pensando em uma maneira de cavar o chão e fugir para bem longe desse lugar.

— Por que você tá de pausa particular?

— O nome já diz. É particular — respondo com toda a minha petulância. Acho que a raiva que passei com aquele atendimento difícil ainda corre nas minhas veias.

— Sim, mas o uso dessa pausa é para necessidades fisiológicas e não para ficar passeando e impactando o atendimento dos colegas. Faça o favor de voltar para o seu lugar, por gentileza. — Seu olhar é rígido como uma pedra e mais uma vez me sinto envergonhada por dar aquele vexame.

— Tudo bem, estou indo. — Volto para o meu lugar me sentindo irritada e constrangida. Coloco o headset na cabeça e me sinto como se aquela fosse a minha coleira. Tento tirar da pausa, mas de repente, parece que a sensação de que estou presa aumenta e me pego sufocada, tentando respirar, é como se tivesse me esquecido de como se faz isso.

Meu coração acelera e tenho a sensação de que estou tendo um ataque cardíaco. O desespero se abate sobre mim quando eu continuo sem conseguir puxar o ar para meus pulmões. Jorge larga seu cliente e me segura pelos ombros enquanto a sensação de sufocamento só aumenta. Estou prestes a desmaiar.

Jorge fala alguma coisa para mim, mas eu não consigo ouvir. Através da minha visão embaçada percebo que outras pessoas se aproximam, inclusive Julio. Ele se abaixa em minha direção e se aproxima tanto que eu consigo ver as cores dos seus olhos. São tão bonitos... Então, quando tento inspirar mais uma vez, eu desmaio.

[...]

Quando acordo, não estou mais na operação. Me encontro deitada num sofá pequeno que fica na sala do planejamento — eles são responsáveis por ferrar a gente colocando horários absurdos para tirarmos a nossa pausa e também monitoram o tempo que estamos com cliente, tempo de pausa, e todas essas coisas.

Olho para o lado e vejo Julio em pé conversando com alguém. Ele vê que estou acordada e caminha com preocupação até mim.

— Como você está se sentindo?

— Já tô ótima —minto. Eu ainda posso sentir meu coração batendo como se fosse um tambor dentro de mim. Imagino que meu cérebro esteja dançando a Ragatanga com toda a minha agonia. Julio percebe que não estou falando a verdade.

— Vou te levar para o hospital.

— Não precisa, eu já estou bem.

Acho que tento convencer mais a mim mesma do que a ele, porque me sinto contrariada quando digo que estou bem e minha mente grita que não.

— Claro que precisa! Você teve uma crise de ansiedade, não pode voltar para o atendimento desse jeito! Estou esperando o táxi chegar e nós vamos. — Ele está decidido e sei que não vai adiantar persuadi-lo.

— Isso é mesmo necessário? — Não custa nada realizar outra tentativa. Além do mais, eu odeio hospital. Faço o possível e o impossível para não ter que ir a um.

— Claro que sim. — Seus olhos se voltam para mim, amáveis. Me recordo de que cor eles são.

— Cinza — falo para o nada e ele franze o cenho. Provavelmente deve estar se perguntando se a crise que tive me deixou alguma sequela grave.

— O que?

— Seus olhos. — Estou tão hipnotizada que só percebo o que eu disse depois de já ter dito. — Quero dizer, são diferentes.

Alguém pode, por favor, calar a minha boca?

Eu só falo merda perto desse cara!

Alguém me enterra!

Ele coça a nuca e eu rapidamente me lembro de como aquelas mãos tocaram meu corpo. Acho que ele também se recorda disso pelo jeito como seus olhos me devoram.

— O táxi chegou — diz Jorge com minhas coisas na mão. — Me dê notícias. — Ele me abraça forte e me entrega a minha mochila e o meu casaco.

— Obrigada.

Julio pega a mochila da minha mão e coloca uma das alças em um dos seus ombros. Ele entra no táxi junto comigo e avisa ao motorista o nosso destino: A Upa de Niterói.

A UPA não fica tão longe do trabalho, então nós chegamos em menos de vinte minutos. Meu estômago se revira ao olhar a fachada do hospital e uma criança debruçada sobre sua barriga vomitando o que parece ser o seu café da manhã.

Acho que eu tenho imã para vômitos. Eu nunca tinha parado para pensar nisso, mas vira e mexe, onde eu tô, tem alguém vomitando. Acho que posso lançar um livro, ele vai se chamar "A menina que atraía vômitos". Acho que o título se encaixa bastante na situação em que me encontro atualmente.

Por sorte, o hospital não está tão cheio quanto o habitual. O ar ali dentro também está bem gelado, então trato de vestir o casaco mesmo sabendo que vou precisar tirar quando passar no acolhimento.

Demoro um tempo considerável para passar por ele e pela classificação de risco, inclusive. Depois disso, fico mofando em uma das cadeiras de plástico ao lado de Julio, que parece tranquilo em estar ali.

— Quer uma água ou algo assim? — Algumas pessoas estão tossindo, tem crianças chorando, muita gente passando mal e eu ali no meio. O atendimento demora, porque não é uma UPA de verdade se não demorar.

— Não, obrigada.

— Bia, me desculpe. — Olho para ele sem entender pelo que está se desculpando — Sinto que tenho uma parcela de culpa sobre o que aconteceu.

— Você não tem culpa de nada, Julio.

— Tenho sim. Você estava de pausa particular por algum motivo.

— Eu agi errado em ficar conversando com meus amigos, mas eu tinha posto a pausa por causa de uma sucessão de atendimentos estressantes. — Ainda assim, tenho a consciência de que ele não tem culpa. Julio não é vidente.

— Eu devia ter conversado com você.

— Julio, eu agi errado, você não tem culpa de nada. Eu só estou ficando saturada do atendimento mesmo.

— Há quanto tempo você está lá?

— Vou fazer três anos mês que vem. Tenho procurado coisas na minha área, mas ainda não tive sorte.

— Você é formada mesmo então? — A desconfiança de Julio sobre minha formação acadêmica não tinha desaparecido completamente. Até entendo o lado dele, já que eu menti onde trabalhava.

— Sim, em jornalismo. Acho que meu mal-estar tem a ver com o estresse e as preocupações que eu venho carregando. — Ele assente com a cabeça e parece pensativo demais depois do que eu lhe disse. Ouço meu nome ser chamado pela voz robótica de uma mulher na tela da televisão e me dirijo até o consultório em que serei atendida.

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