Capítulo 2
Assim que o despertador toca, o meu primeiro impulso é virar para o lado e voltar a dormir. Loki sobe em minha cama e me enche de lambidas no rosto, como quem diz: "Você vai se atrasar, mamãe", e que me despertam instantaneamente. Faço carinho em seu pelo macio, dou beijinhos em sua cabeça peluda e me levanto com uma vontade imensa de não ir para o hospício onde eu trabalho.
Faço xixi, tomo banho e saio de casa desanimada.
A noite passada parecia cada vez mais distante, como se tudo o que aconteceu tivesse transcorrido com outra pessoa, mas eu sabia que aquela sensação era só um efeito colateral do arrependimento que estou tentando evitar a todo o custo sentir.
Eu simplesmente não consigo parar de pensar nos olhos e nos toques daquele cara. Sei que fugi não por medo de ele ser um psicopata, e sim, porque fiquei com medo. Medo de que aquele estranho de alguma forma conseguisse entrar na minha vida. Sei que estou sonhando alto porque muitas ficadas de pub não passam disso, mas eu não sei...
Repasso toda a noite de ontem na minha cabeça no ponto de ônibus, no ônibus e na caminhada que faço até o trabalho. Quando chego, Jorge já está lá em nossa ilha de sempre marcando os nossos lugares.
Às vezes sinto como se aqui fosse uma escola porque as pessoas madrugam pra poder pegar os melhores lugares, que são sempre os mais afastados dos supervisores. Além de marcarem seus próprios lugares, as pessoas marcam a ilha toda pra todos os seus "brothers" e isso me enche de raiva. Tudo bem guardar o seu lugar e o de um amigo, mas o de TODOS os seus amigos é um pouco demais.
Guardo as minhas coisas no armário quando saio da central e me sento junto com Jorge na sala de descanso.
— E aí, como foi o encontro?
— Foi maravilhoso! Vamos nos encontrar de novo no próximo sábado.
— Pelo que você me falou desse cara, ele parece ser gente boa.
— As nossas ideias combinam muito, mas eu já tô fazendo a linha apaixonada e isso não é bom para a minha reputação.
— Ah, para com isso! — Empurro seu ombro de leve enquanto Jorge se desata a rir e deita a cabeça no meu ombro.
— Como foi no pub? Ficou com alguém? — Jorge levanta a cabeça bruscamente ao ver a expressão de vergonha estampada em meu rosto. — Para o mundo que eu quero descer! Não acredito que Beatriz finalmente seguiu os meus conselhos! — Como explicar pra ele que as coisas meio que aconteceram naturalmente? — E aí, como foi?
— Foi ótimo. Eu não esperava ficar com alguém ontem e me surpreendi porque eu gostei mais do que deveria...
Jorge pisca para mim e dá um sorriso malicioso.
— Pelo visto, não sou só eu fazendo a linha apaixonada.
— Nem diga isso! Além do mais, eu estraguei tudo quando saí correndo sem dar meu telefone. — Jorge fica petrificado quando jogo a bomba em seu colo.
— Eu não acredito nisso, Bia! Por que tu fez a Cinderela? Cara, estou ficando seriamente preocupado com você
— Pois não deveria!
— Tem certeza? Você é linda, não tem porque ficar insegura desse jeito. Não está pronta para um relacionamento, tudo bem, mas dar uns pegas em alguns boys gostosos de vez em quando não faz mal a ninguém desde que seja saudável para os dois.
— Bom, agora já era. — Dou de ombros e ajo como se não ligasse para a forma como saí do pub ontem — Já me condenei quando saí correndo daquele jeito.
— Já era nada, meu amor. A fila anda. Ao menos sabe o nome do consagrado?
— Só sei que se chama Julio.
— Continua indo ao pub que ele deve aparecer outra vez por lá.
— Não sei não... Eu nunca tinha visto um cara como ele lá no pub.
— Mas você não conta, querida. Você é mais avoada que a minha falecida bisavó. O Tom Cruise poderia ter pisado naquele pub e você nunca iria notar.
Ele está certo. Eu nunca reparo muito nas pessoas quando vou pra lá porque não quero me sentir frustrada com as coisas que não me acontecem.
Olho para o relógio e faço uma careta de desgosto.
— Está quase na hora de logar — eu digo, querendo desesperadamente que o assunto termine.
Jorge se tornou meu melhor amigo e confidente desde que nos conhecemos no treinamento dessa empresa. Ele sabe coisas sobre mim que só Loki e minha mãe sabem. Jorge me conhece tão bem que consegue decifrar o que se passa comigo sem dificuldades, então eu não queria mais que a conversa sobre Julio continuasse porque ainda não sei como lidar com isso.
Eu sei que na maior parte do tempo eu faço uma tempestade em copo d'água por coisas que não merecem tanto a minha preocupação. Eu consegui transformar uma ficada sem compromisso num assunto sério e cheio de tabus porque sou insegura até o último fio de cabelo.
Me sento em meu lugar de sempre e Jorge fica ao meu lado. Ele guincha e se levanta de sua PA enquanto encara um ponto além de mim. Paro de abrir as minhas ferramentas de trabalho e olho para o meu melhor amigo.
— O que deu em você? — A reação cômica dele chamou a atenção de outras pessoas que estavam ali por perto já atendendo clientes.
— Acho que temos um supervisor novo. — Jorge se abana com um pedaço de papelão da campanha de verão da empresa. — Com esse supervisor, eu tenho certeza de que bato todas as minhas metas!
Sigo a direção do seu olhar e meu coração dispara ao reconhecer o rapaz que está em pé ao lado da PA vazia que Tatiana ocupava. Ele folheia algo de forma concentrada e eu me abaixo e me enfio dentro da minha mesa o máximo que a minha cadeira de rodinhas me permite.
— Puta merda! — exclamo baixinho.
— O que houve? — Jorge, que não perde a oportunidade de fofocar, se enfia debaixo da minha mesa também. — Você parece que viu um fantasma. Desembucha logo, garota! Tá enfartando?
— O nosso suposto supervisor é o Julio! Ele é o cara que eu fiquei ontem naquele pub!
— O QUÊ? — A voz potente de Jorge ecoa por toda a central e eu sinto que já chegou a minha hora de morrer. Sério, se meu pensamento tivesse um super poder, claramente seria o de ser sugada para uma dimensão alternativa.
As outras pessoas que pegam no mesmo horário que a gente nos olham como se fôssemos loucos. Sinto uma presença atrás de mim e Jorge, que ainda está estupefato ao meu lado, parece que viu um fantasma também. Cerro meus olhos com força enquanto desejo que tudo isso não passe de um pesadelo. Eu sei quem é que está parado atrás de mim, mas não tenho a menor intenção de me virar.
Sim, eu sou uma grande covarde!
— Bia, não sabia que a Editora e Jornal Hausfman ficava aqui no call center. — A voz carregada de sarcasmo de Julio fez todos os pelos do meu corpo se eriçarem. Me viro de frente para ele com um sorriso forçado. Alguém me mata agora! — Por que mentiu?
— Bom, quem me garante que você não é um Ted Bundy? — Seu rosto se contorce numa careta confusa — Aquele serial killer bonitão que seduzia mulheres para mata-las depois... Não vai me dizer que você não conhece. Tem até um documentário na Netflix sobre ele.
— Eu sei quem é Ted Bundy — ele responde, claramente irritado.
— E não menti, eu realmente sou jornalista. Só não estou no meu melhor momento... — Em outras palavras, eu sou uma pobretona que não tem onde cair morta.
— Bom, eu não sou um Ted Bundy e agora você terá a chance de comprovar isso porque eu sou o novo supervisor de vocês.
Ótimo. Perfeito.
— Esplêndido. — Abro um sorriso amarelo enquanto ele se distancia. A calça social preta que ele usa marca bem a sua bunda e eu me crucifico por pensar na bunda desse cara depois de ter pago um mico gigantesco.
Sinto Jorge estremecer ao meu lado enquanto eu engulo em seco. Os olhos de Julio são mais bonitos do que eu me lembrava, mas ainda não consigo definir de que cor eles são.
Seus óculos lhe deixam ainda mais charmoso e eu noto que as outras garotas — tanto da nossa equipe quanto de equipes vizinhas — o encaram fixamente de forma abobalhada.
Julio retorna para a sua mesa e percebo que falta apenas um minuto para me logar e eu nem abri todas as minhas ferramentas de trabalho ainda.
— Que homem! — Jorge se abana com a mão. — Como você corre de um homem desses?
— Acho melhor você se logar. Ferir sua aderência vai te prejudicar com o novo supervisor — destilo todo o meu sarcasmo porque estou de mal humor.
— Não acredito que esse gato vai ser nosso supervisor — diz Rita, que está sentada do meu lado direito.
— Nem eu — murmuro, irritada e incomodada com aquela infeliz coincidência.
Ou nem tão infeliz assim, já que Jorge e todo o time feminino da central está com um olhar de excitação que me deixa mais full pistola do que qualquer cliente que possa vir a me irritar hoje.
Enquanto abro as minhas ferramentas, eu me logo. A primeira ligação não demora a cair no meu ramal. Que saco, acho que os clientes já dormem com o telefone na mão na discagem rápida para poder ligar pra cá. Me sinto tão desnorteada que ainda leva um tempo para me ligar de que preciso atender a ligação.
— Galera, peçam um momento ao cliente, por favor — diz Julio, altivo, no meio da nossa ilha. Faço o que ele pede sob as reclamações da minha impaciente cliente, que tem uma voz de quem fumou uma chaminé durante a vida toda.
— Como disse, estou recebendo informações internas. Peço que aguarde um momento, por favor. — A deixo reclamando na linha e coloco a ligação no mute.
— Bom dia, pessoal. Eu sou Julio e vou assumir a equipe de vocês. Sou um cara muito tranquilo. Espero que possamos ter uma parceria bacana aqui dentro. Qualquer coisa que precisarem, podem me chamar. — O fuzuê que se seguiu depois disso foi até exagerado. Parece que todo o mundo entrou no cio, principalmente a supervisora Suzana. Julio dá um sorrisinho e volta a se sentar enquanto todo o mundo o seca descaradamente.
— Você precisa ficar com esse boy outra vez — diz Jorge no meu ouvido. — É um crime você não ficar com ele outra vez! Um crime!
— Para de drama. — Reviro os olhos — Você não tá com cliente, não?
— Estou super disponível — ele responde com um sorriso convencido enquanto aponta para a sua avaya.
— Nós não podemos ficar juntos. Ele é meu supervisor agora, esqueceu? Operadores não podem se envolver com supervisores.
— Até parece que ninguém nunca pegou supervisor ou coordenador aqui dentro.
— Só porque você ficou com o Lucas, não quer dizer que todos tenham que seguir o exemplo.
Lucas foi um antigo supervisor aqui da empresa. Ele passou o rodo em homens e mulheres. Jorge foi um deles.
— Eu acho que o destino tá unindo vocês. Isso tudo não é uma simples coincidência. E Ted Bundy, Bia? Really?
— Eu não tô errada! Ele podia ser sim um serial killer. Na verdade, ele ainda pode ser. Nunca confie em ninguém. — Jorge abre a boca para retrucar, mas cai uma ligação em seu ramal e ele acaba sendo obrigado a deixar o assunto de lado, para o meu alívio.
Aproveito para voltar para o meu próprio atendimento. Eu já estou há mais de seis minutos nessa ligação, e se eu demorar mais, é capaz do Julio vir atrás de mim para saber o porquê da demora. Tenho certeza de que como ele é novo por aqui, que vai querer mostrar serviço.
Meu TMA (tempo médio de atendimento, ou alguma merda assim) sempre foi um dos piores porque os clientes gostam de reclamar infinitamente sobre o mesmo problema e contar a sua história de vida. Eles basicamente fazem um podcast sobre sua trajetória antes de chegar ao problema que o fez ligar para a empresa.
Eu e meus amigos costumamos dizer que somos operadores de telemarketing, mas que exercemos outras funções em nosso posto de trabalho. Aqui, nós não somos só atendentes, somos também psicólogos, analistas de sistema e videntes, porque além de desabafarem conosco e pedirem orientações sobre como mexer no site da empresa, os clientes também acham que podemos prever o futuro ao fazerem perguntas sem noção como:
"Deu chuva pra amanhã. Você sabe se vai faltar luz?"
"Eu exijo que você me diga o motivo da minha falta de energia!"
"E se o técnico não vier? Eu faço o quê"
Eles querem que a gente diga a eles o que fazer, que expliquemos coisas que simplesmente não estão em nossa alçada e pedem para que façamos um tutorial de como mexer no site ou até mesmo de onde e como pagar uma conta!
Essa cliente, por exemplo, acha que eu sou vidente porque me pergunta por que a conta dela veio cara. Bom, se ela não sabe como anda usando sua própria energia, eu que não vou saber. Sei que existem erros que podem justificar o aumento da conta, mas no caso dela, a fatura estava completamente normal.
Quando chega o momento de tirar a minha primeira pausa, percebo que Suzana está praticamente debruçada na mesa de Julio. O decote de sua blusa quase pula para fora, mas pela minha visão periférica, noto que Julio permanece com os olhos focados no computador.
Enquanto saio da central, de relance, olho para meus seios pequenos e sinto uma pontada de inferioridade me atingir. Às vezes não consigo evitar me sentir desse jeito, principalmente quando lembro que não cheguei nem perto de atingir os meus objetivos.
Caminho como um zumbi desanimado pelo corredor e praguejo todas as minhas gerações quando percebo que já se passaram 3 minutos desde que eu saí da central de atendimento.
— Que cara é essa? — Jorge pergunta assim que me vê sentada na sala de lanches.
— É a minha cara de "tô de saco cheio dessa bosta, mas não posso jogar tudo pro ar porque meus boletos não vão ser pagos sozinhos".
— Isso tudo tem a ver com a Suzana jogando os peitos na direção do Julio, né — Jorge mexe o palito de plástico no café horrível que ele pegou na máquina. Faço uma careta para o líquido fumegante porque aquele café gratuito é horrível de verdade.
— Bom, ela é chata, mas é bem bonita. O Julio com certeza vai cair nas garras dela.
— Eu te acho tão bonita quanto a Suzana. Sério, Bia, se eu gostasse de mulher eu com certeza te pegaria. No dia em que você começar a confiar em si mesma e a se amar, as coisas vão tomar um rumo diferente. Você sabe o que eu daria para ter esse seu cabelo cacheado esplendoroso? — Abro um sorriso envergonhado para o meu amigo. Ele realmente sabe como me alegrar.
— Estou me sentindo uma gata agora.
— Não se sinta assim só agora. Você precisa se sentir assim todos os dias. Sei que é difícil, mas precisamos ter amor próprio.
— Não é só isso que me desanima... Você sabe que ainda não consegui nada na minha área.
— Bom, o Brasil tá uma merda, mas se serve de consolo, do jeito que você tem procurado emprego, é só questão de tempo até conseguir uma oportunidade boa. Daqui a pouco você vai estar brilhando na Globo e eu vou poder dizer que tenho uma amiga famosa e rica.
— Ao menos que eu vire uma Fatima Bernardes da vida, não vejo isso acontecendo. Além do mais, você sabe que eu prefiro a parte do impresso ou rádio.
— Você ainda vai brilhar. — Meu melhor amigo coloca sua mão em cima da minha e me olha com plena convicção.
— Obrigada. Você é um amigão. — Abro um sorriso para ele e pulo da cadeira quando vejo que já estourei um minuto da minha pausa.
Volto para meu lugar sentindo o olhar de Julio sobre mim. Acho que ele ficou puto por causa da pausa que eu estourei.
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