Nove

           

— Eu me recuso a acreditar no quanto você é infantil — digo, às suas costas, enquanto tento alcançá-lo.

Ouço o som de uma risada reprimida, daquele tipo que escapa pelas narinas, antes que ele me olhe de soslaio, por cima do ombro.

— Ora, se não temos uma sabe-tudo entre nós!

Certo, eu sei que isso pode parecer bastante infantil da minha parte, mas havemos de convir que é muito difícil não se sentir contrariada quando se está mancando em um saltinho de dois centímetros que insiste em afundar no barro. Especialmente se considerarmos que ele te custou trezentos euros e uns quebrados.

— Eu posso não ser uma sabe-tudo, mas sei o que você é — a convicção em minha voz faz com que o cowboy cesse os passos, então se volta de súbito em minha direção, a sobrancelha arqueada.

— Ah! É mesmo?

— Sim! Eu sei! — repito, e minha sincera intenção é dar o assunto como encerrado, mas Saul permanece me olhando com aquela expressão zombeteira congelada. Ele não me dá outra opção, a não ser continuar falando. Alfinetando-o, para ser mais precisa. — Você é o bad boy garanhão que se acha desejado porque tem um corpo perfeito.

Nesse momento eu vejo. Um dos cantos dos seus lábios se eleva e ela surge. Aquela covinha enxerida. Isso não vai me amolecer.

— Você é o tipo de cara que quer que todas as mulheres se apaixonem por você, mas nunca entrega seu coração para ninguém. É o tipo que se faz de bom moço, mas não consegue esconder de ninguém o quanto é superficial.

Poucos dos músculos do rosto dele se movem. Nada além do canto da boca. Eu já começo a me sentir vitoriosa, ciente de que o surpreendi com minha perspicácia, quando ele solta:

— Meus parabéns! Conseguiu me surpreender. Eu nunca ouvi tamanha idiotice em toda a minha vida.

— Como se eu esperasse uma confissão — resmungo, fechando o cenho e desviando o olhar enquanto marcho para longe dele.

Quando já o ultrapassei por alguns metros, ouço sua voz distante irromper em meus ouvidos.

— Você é mesmo incrível, não é? E descobriu tudo isso baseada em que? Pelo tecido da camisa que te emprestei ou pelo ângulo de inclinação do meu chapéu?                       

Então eu paro. Eu não sei bem por quê, já que quando me viro para ele descubro que não tenho resposta. Saul, por sua vez, mantém os braços cruzados na frente do corpo e se aproxima de mim sem a menor pressa. Meneando sua cabeça convencida em negação.

— Você vai ficar tão decepcionada, sabia? — solta ele, quando já me alcançou.

Não sei dizer ao certo o motivo de eu ter ficado o esperando se aproximar, mas o fato é que a distância entre nós agora é tão ínfima que sua voz é quase um sussurro.

— É mesmo? E eu posso saber por quê?

— Vai ser terrível quando descobrir que eu sou um cara legal.

— Acho difícil — respondo, rodopiando meu indicador em riste. — Que aconteça algo do tipo.

Então ele revira os olhos e se aproxima um pouco mais. Fazendo-me entrar em um estado de surpresa absoluta, passa uma das mãos pelos meus ombros e me puxa para caminhar ao seu lado.

— O que está fazendo? — pergunto, ciente de que deveria estar petrificada quando na verdade acompanho os passos dele na direção da varanda.

— Fica calma aí, vai! Eu não mordo, sabia?

Não sei dizer o que me deixa mais surpresa: que eu realmente esteja deixando ele me tocar ou o fato de não haver nenhum pingo de ironia no seu tom de voz. Ao menos não uma ironia detectável, digamos assim. Ou Saul realmente sofre de bipolaridade e resolveu ser legal comigo, ou é um ator excelente.

— O problema — cutuco em tom sarcástico. — É que eu, sim.

— Ah, mas isso não é novidade para ninguém aqui, não é mesmo?

Posso imaginar a covinha enxerida do cowboy se formar naquele rosto, mesmo que eu não esteja olhando para ele. É tão irritantemente charmosa que acabo deixando uma risadinha escapar.

Droga.

— Quê? — Ele me encara franzindo o cenho. — O que foi agora?

— Você está tentando, eu sei, mas precisa admitir que não passa de um grosseirão.

Uma das sobrancelhas dele se arqueia tanto que começo a imaginar se pode saltar do seu rosto. Estamos subindo os degraus do rancho e ele me conduz até a porta de entrada da casa. Somente após a girar a maçaneta, finalmente me dá sua resposta.

— Eu poderia. Admitir, quero dizer... mas estaria mentindo se fizesse isso e... bem, podemos não nos conhecer, mas você é uma autora, não é?

— Sou — rebato, confusa. — Mas o que isso tem a ver?

— Sei não... minha "intuição grosseirona" me alerta que não pode dar em boa coisa aprontar com você. 

  — Ah, é mesmo? E o que mais ela diz?

— Que gente como você escreve tudo o que vê pela frente.

Já estamos dentro da casa a essa altura, eu caminho na direção do sofá, onde me aconchego enquanto Saul se debruça sobre uma mesinha de centro para pegar uma maçã. Não uma maçã comestível, mas daquele tipo de fruta feita de isopor com a qual pessoas sem muito bom senso de decoração costumam enfeitar a sala.

— Ora, ora... quem está julgando agora, não é mesmo? — digo, quando ele se acomoda em uma poltrona do outro lado da mesa e joga os pés por cima do vidro do pequeno movelzinho. Observo a cena: as botas com centenas de gramas de barro encrustado na sola e imagino que se mamãe estivesse aqui agora, certamente teria uma crise de nervos.

— Nesse caso, não é julgamento, princesinha! — devolve ele, malandro, apontando para mim o polegar em riste. — E nem pense e tentar negar. Eu também tenho meus momentos criativos...

Agora o encaro desacreditada, e pelo riso de canto de boca que começa a surgir em seu rosto, não resta dúvida de que minha absoluta surpresa era seu objetivo com essa revelação.

— Você quer dizer com a escrita?

— É, não sou profissional, mas você sabe... eu me aventuro às vezes.

— Está brincando comigo?

Saul joga sua maçã de mentira para cima e, num só movimento, torna a pegá-la no ar.

— Com todo esse choque no seu rosto eu começo a considerar se não devia me sentir ofendido.

— Ah, por favor! Você é um produtor de queijo, um zootécnico formado, é uma espécie exótica de... lenhador? E está me dizendo que escreve! Isso é insultante! Existe alguma coisa que não saiba fazer?

Eu juro, faço mesmo essa pergunta. Mas, em minha defesa, ela também me parece ridícula no exato momento em que as palavras deixam a minha boca. Eu teria me autoflagelado agora mesmo se não fosse significantemente mais interessante ficar aqui parada enquanto assisto a pele bronzeada de seu rosto enrubescer.

Começo a achar tudo isso divertido.

— Que tipo de livros você escreve?

— Nunca disse que eram livros...

Ele tem razão, o que só me deixa mais curiosa. Conserto minha postura no sofá e o encaro esperando por mais explicações. Saul solta um suspiro, ao notar que não me darei por vencida.

— Na verdade eu... eu sempre gostei de compor.

— Canções? — pergunto, sobressaltando-me. Uma pergunta evidentemente retórica. — Deus, isso é péssimo!

Saul solta uma risada tão alta que é impossível não ser contagiada. A maçã dele voa em minha direção e eu a apanho com apenas uma mão. O cowboy curva os cantos dos lábios para baixo, em aprovação.

— De que maneira compor canções poderia ser péssimo?

— É péssimo para a minha reputação, seu bobo! Porque provavelmente deve significar que você sabe tocar também.

— É, você não está muito enganada...

— Não pode ser!

— Mas, sabe? — começa ele, levantando-se, e dá alguns passos até que atinja a porta que dá acesso a um dos corredores do andar de baixo. — É só a sua primeira semana aqui. Ainda falta muito para descobrir.

Ele dá uma piscadela e eu chego a pensar que encerrou sua fala. Seria uma ótima deixa para sair do palco sem manchar a performance, mas Saul tem mais a acrescentar:

— E, princesinha... — chama ele.

— Grosseirão? — retruco.

Saul aponta para o pescoço e morde um pouco os lábios antes de completar:

— Você fica bem melhor assim.

Levo minhas mãos ao colo, apalpando-me de forma mecânica. Eu sequer reparei quando fiquei à vontade o suficiente para tirar a echarpe, que está dobrada ao meu lado no sofá.

...

Oi, meus amores!

Mais uma semana corrida com a proximidade das minhas férias e os prazos cada vez mais curtos no trabalho.

Mas não podia deixar o sábado passar em branco. Afinal, promessa é divida, não é mesmo?

Obrigada por cada voto e recadinho!
Estou muito feliz por estarem curtido a história!

Espero que tenham gostado do capítulo.

Um beijão especial para as lindas

@ruhavila e @sarAlcantara

Parabéns pelos aniversários!

♥️

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