Dois
Meus pés vacilam enquanto minha mente vaga a respeito do que aconteceu.
Certo, então o idiota do trânsito vive aqui. Ele é a pessoa que Niven incumbiu de me receber.
Um sorriso de deboche por minha má sorte evidente escapa pela boca. Decerto eu não contava com tão precoce recepção.
Tampouco tão constrangedora.
Quando volto para a frente da casa, caminhando em direção ao rancho, o rapaz vem ao meu encontro com os passos apressados.
Os fios negros de seus cabelos são desgrenhados pelo vento levemente frio que sopra aqui em cima, e eu me enrosco ainda mais na echarpe em meu pescoço. Não por causa da temperatura, mas porque agora tenho um motivo a mais para não me revelar.
O sorriso que ele esboça se desfaz aos poucos, enquanto se aproxima e percebe que mudei de expressão, conforme se dá conta de que só agora sei que é o motorista apressado com quem quase colidi da rodovia.
Seus olhos se desviam para a enorme mala que eu arrasto pela superfície barrenta do quintal da fazenda, e ele se adianta, oferecendo ajuda.
— Obrigada — sussurro, erguendo a cabeça para encará-lo no momento em que a distância entre nós se torna ínfima. E quando digo erguendo, faço isso no sentido literal. Saul é um homem enorme, tão alto quanto largo, exatamente como Sir Phillip seria. Exceto que... bom, definitivamente não é o caso. — Mas acho que posso me virar muito bem sozinha.
O tom ríspido de minhas palavras o faz jogar a cabeça para trás abruptamente, como se eu o tivesse atingido com um bastão invisível. Ele abre a boca e estende uma das mãos para mim e está prestes a insistir quando passo direto por ele com a mala à tira colo.
Detesto transparecer todo meu esforço ao carregá-la, mas isso aqui está realmente bastante pesado.
— Além disso — insisto, voltando minha cabeça para trás. Vejo que o homem cessou os passos, e agora parece surpreso. Os antebraços que escapam pelas mangas cuidadosamente dobradas de sua camisa xadrez estão agora cruzados na frente do corpo. — Eu não preciso da ajuda de um imbecil que tenta intimidar uma mulher no trânsito.
— É mesmo? — solta ele, insolente, para a minha completa surpresa. Não imaginei que teria coragem de me rebater estando em tão clara desvantagem no que diz respeito a... bem, a razão, que nesse caso sou eu quem tem. — Porque de repente tive uma singela impressão de que você está andando na direção da minha casa.
Sou obrigada a admitir. Ele tem um bom argumento.
— Pensei que a casa fosse dos pais de Niven — jogo baixo, mas essa é a única carta que tenho. — E você quem é mesmo? Ah! Tem razão... o primo distante, não é isso?
Saul, que até então mantinha a mandíbula cerrada, agora move o queixo, fazendo que ele se desloque para um dos lados enquanto solta um som parecido com uma risada debochada e muito curta, embora o rosto não dê indícios de divertimento.
Então o rapaz joga uma perna para frente, depois a outra e caminha em minha direção até que esteja a apenas meio metro de mim, inclina-se até a altura do meu rosto, os olhos me desafiando.
— Na realidade — solta enquanto cerra ainda mais suas pálpebras. — Esta casa também é minha, o que faz de mim seu anfitrião.
Estamos tão próximos que posso sentir o cheiro forte do corpo de Saul cada vez que o vento sopra. Uma mistura de pele e lavanda. Perfume e... homem.
Estou prestes a abrir a boca quando algo me atinge, uma gota grossa que acerta em cheio a maçã do meu rosto. Então olho para o alto e, embora já não o encare, posso sentir que o rapaz imita minha reação.
— Olha — começa ele, fitando-me nos olhos outra vez. — Se não quer a minha ajuda, tudo bem. Mas a não ser que pretenda acabar com uma pneumonia, sugiro que entre depressa.
— Não, obrigada! — anuncio, mas minha falta de reação faz com que ele arqueie a sobrancelha.
— Devo presumir que acampará do lado de fora?
Então eu bufo. Bufo porque esse cara provavelmente acaba de conseguir o posto de homem mais rude que já cruzou o meu caminho. Mal posso acreditar que ele e Niven sejam parentes.
— Não — digo, já caminhando de volta para o meu carro, e o intervalo entre uma gota e outra começa a reduzir de forma tão significante que meu cabelo, roupas e malas passam a ficar encharcados.
— Espera — ouço-o gritar às minhas costas, quando o a chuva é espessa o bastante para que seu volume atrapalhe a comunicação entre duas pessoas. — O que acha que está fazendo?
— Ora, o que estou fazendo! Indo embora, como pode ver!
— Pensei que precisasse de ajuda para um livro. — Ele sacode a cabeça sob a chuva e já não há um milímetro de nós que não esteja molhado.
— Não de alguém como você! — respondo e me viro de costas, completamente irritada com a situação.
Desde minha perda de tempo em vir até este fim de mundo somente para acabar encharcada, irritada e é muito possível que ainda mais bloqueada.
Eu sou simplesmente incapaz de escrever enquanto alguma coisa — qualquer coisa — me aborrece.
Estou quase alcançando os fundos do quintal novamente, quando sinto algo firme envolver meu antebraço e poucos instantes se passam para que eu perceba que se tratam dos dedos de Saul.
Ele aproxima seu corpo do meu de tal modo que sou surpreendida pela invasão do frescor seu hálito ao meu olfato.
Hortelã. Estou bastante certa.
— Por favor — ele sussurra tão próximo ao meu ouvido que seria impossível não sentir um calafrio. — Eu insisto. Reconsidere.
Há um tom curioso em sua voz, quase como veludo, que realmente passa longe de combinar com aquela figura enorme a minha frente.
A presença dele parece tão forte quando estamos assim tão próximos, que sinto minha respiração entrecortar-se involuntariamente. E, eu admito, nunca estive tão trêmula num momento em que minhas glândulas estivessem secretando qualquer quantidade de serotonina.
Digo isso porque não pode ser outra coisa a exercer efeito tão contraditório em meu estômago. Quero dizer, ele está se contorcendo e meu coração se acelera pela raiva, então por que raios isso me causa prazer?
Deve ser a fluoxetina confundindo meus sentimentos. Posso apostar.
Paro por um minuto para refletir sobre isso, sobre a possibilidade de um medicamento confundir meus sentidos — é claro que é o medicamento, porque com certeza não seria esse Sir-Philip-de-meia-tigela —, mas não posso ignorar o fato de que estou decidida a entrar numa discussão acalorada debaixo de um temporal.
Será que corro o risco de ser levada à loucura?
— Solta o meu braço! — grito, e ele obedece instantaneamente. Os olhos esbugalhados em surpresa. — Obrigada — digo, empinando o queixo com orgulho. Ou com o resto de orgulho que uma pessoa no meu estado seria capaz de ostentar. — Até nunca mais!
— Não pode descer a serra nessa chuva — diz ele, duvidoso.
— Eu garanto que posso — respondo enquanto abro a porta do meu carro, o que faz com que a chuva molhe todo o estofado. — E vou.
O homem agarra minha mala e tenta tirá-la das minhas mãos. Bom, creio eu que ele não esteja tentando o bastante, do contrário teria conseguido, já que não sou exatamente uma "fortaleza" de pessoa. Ainda assim, não a solto.
— Ah, não vai, não! — afirma Saul enquanto puxa o objeto para si em um solavanco. Mas eu pulo sobre ele e o tomo de volta.
— Sim! Eu vou.
— Não! — Ele agarra uma alça.
— Vou! — Volto a puxar pela outra.
Então ele perde a compostura e solta minha mala abruptamente, de maneira que eu chego a cambalear para trás.
Saul se inclina totalmente sobre o meu corpo e estica o braço para fechar a porta do carro em um baque forte e surdo.
A água está tão forte que escorre por seus cabelos como a correnteza de um rio negro e profundo.
— Pessoas morrem naquele desfiladeiro, garota — o tom críptico de sua voz soa assustador e algo nos seus olhos alarmados me faz pensar que seja lá ao que ele se refere, não parece brincadeira. – E se alguma coisa acontecer com você, eu não quero ser o responsável por isso.
— Mas...
— Você fica! — ordena ele, envolvendo meu braço com a mão. — Pode me odiar pela manhã. Pode me odiar pelo resto do dia tempestuoso que teremos. Mas faça isso dentro da casa.
Não sei ao certo como isso aconteceu. Em um minuto estava no auge do esplendor da minha feminilidade, prestes a ganhar uma discussão e no outro estou aqui, de pé em sua varanda cercada por uma poça formada pela água que escorre das minhas roupas enquanto ele estende uma toalha no chão na tentativa de salvar o assoalho amadeirado do ambiente.
Até mesmo meu organismo, já habituado às baixas temperaturas do inverno europeu, começa a dar indícios de que o vento da serra não é bem recebido por corpos molhados.
Estou completamente trêmula quando finalmente passamos para o interior da casa.
— Você precisa vestir algo seco — resmunga ele, desviando os olhos para minha mala completamente arruinada.
Nós dois sabemos que não há a menor chance de que alguma coisa esteja seca em seu interior. Saul faz um sinal para que eu o acompanhe enquanto se dirige até escada.
— Infelizmente não tenho a chave do guarda-roupas da tia, então vou conseguir algo meu para você.
— Eu não... — começo a falar, mas de repente sou atingida por uma onda de pânico. — Seus tios não estão aqui?
Os passos dele cessam quando se vira para mim, surpreso.
— Não. Somos só nós dois.
Dificilmente me engano em relação a uma pessoa, e sei que a brincadeira do amigo — ou seja lá quem fosse o tal de Miguel — sobre meu corpo não o agradou, portanto sinto um certo alívio por ser com ele e não com o outro completo desconhecido que estou presa nessa casa.
Por outro lado, sou acometida por uma leve suspeita de que há um divertimento sucinto nos olhos negros que me encaram.
~~~
Oie! Pessoal!
Mal posso acreditar que já tenhamos chegado às 3 mil leituras!
Vocês são os mais incríveis!!!
Adorei parar hoje para responder cada comentário... tomando nota das especulações.
Está todo mundo curioso a respeito de um acessório específico.
Mas só alguns passaram perto... embora não muito... de solucionar o mistério...
Ah! Não esqueçam de me contar o que estão achando da história!!!
Obrigada por lerem!
Amo vocês!
O próximo capítulo sai no dia 10 de junho, ou quando esse aqui alcançar a marca de 200 estrelinhas!
Beijinhos <3 !
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