Dois




– Pego uma metade e você a outra? – pergunto, na praça de alimentação do shopping, enquanto uma enorme fila de jovens nos encarando se estende à nossa frente.

Tive que encaminhar uma autorização para a administração com vinte e quatro horas de antecedência para que pudéssemos começar a seleção aqui na praça. Não vou mentir dizendo que não passou pela minha cabeça a ideia de fingir que eles simplesmente negaram ou que eu não consegui fazer o pedido a tempo, por conta da hora em que Lavínia me deu a missão, mas no fim, acabei fazendo o que tinha que ser feito.

Maldita consciência, sempre me atrapalhando.

– Sem chance. A Lav quer que a gente faça isso junto. – Hugo dispara, fazendo questão de ser sempre politicamente correto.

Controlo o impulso de rolar os olhos, e apenas sussurro:

– Por que você tem sempre que ser tão puxa saco?

– Não estou sendo puxa saco, florzinha.

– Não me chame assim – interrompo, erguendo uma mão e fechando meus olhos. – Sabe que eu não suporto.

– Acontece – continua, ignorando minha irritação pelo trocadilho com meu nome. De uma pasta, puxa alguns papéis e passa para minhas mãos. – Que a senhora sua supervisora preparou esses relatórios e ela quer detalhes de cada candidato, na visão de ambos.

É claro, ela nos conhece muito bem.

Nos sentamos para organizar nosso roteiro, quando o som de um toque curto irrompe do meu celular. Toco na tela para fazê-la acender e espio a mensagem de texto que recebo de Pedro.

– Que ótimo! Se não for levar isso a sério me avise, que faço sozinho. – Hugo resmunga, fazendo-me lembrar da sua aversão compulsiva à utilização do aparelho celular em horário de trabalho.

– Não seja idiota. Estou falando com Lavínia – minto descaradamente. – Eu uso meu celular como ferramenta de trabalho. Se você não consegue acompanhar o avanço da tecnologia, azar o seu.

Noto que o incomodei assim que percebo o movimento do seu pomo-de-adão. Hugo sempre engole a própria saliva quando é contrariado.

– Vamos começar? – pergunta, mas antes que eu possa responder ele ergue dois dedos, fazendo sinal para que o primeiro candidato se aproxime.

– Bom dia – cumprimento, à contragosto, o jovem rapaz de cabelos enrolados que se senta à nossa frente. Percebo seu nervosismo assim que ele começa a esfregar uma mão na outra. – Então você é o Alessandro? – Encaro o currículo que tenho comigo. – Pode ficar à vontade.

Passamos cerca de quinze minutos conversando com Alessandro e não conseguimos extrair dele nenhuma informação que nos convencesse que pudesse ser um bom vendedor. Quando ele sai, analisamos a extensão da fila e decidimos otimizar nosso tempo.

– Vamos fazer as perguntas mais básicas – Hugo sugere. – Se encontrarmos uma resposta promissora, exploramos à fundo.

– Certo – concordo, quando meu telefone solta mais um assobio.

– Jura, Violeta?

Pego meu dedo e levo até o botão que o faz ficar mudo. Faço isso na altura dos seus olhos para que ele pare de me azucrinar.

– Melhor. Mas eu ainda preferia que ele estivesse desligado – resmunga, enquanto sinaliza para uma menina de cabelos castanhos e olhos muito negros se aproximar.

Roberta, ao que parece, passa os olhos diretamente por mim e os fixa em Hugo. Ela se demora nele por alguns segundos e a reação de meu colega é contrair o intercílio até que suas sobrancelhas se fundam em uma só. Ele é muito metódico e eu estou certa que esta acaba de ser a primeira grande mancada da candidata à vaga.

– Bom dia – ela diz sorridente, embora pouco convincente. Anoto. Mancada número dois. – Muito prazer.

O silêncio de Hugo insinua sua permissão para que eu conduza a entrevista. Ele não precisa dizer uma palavra para que eu dê início ao nosso roteiro, obrigando a moça a manter os olhos pousados nos meus. Ela os desvia para ele algumas vezes, mas tudo o que encontra é uma das suas volumosas sobrancelhas negras erguidas.

– E o trabalho em equipe, Roberta? Qual a importância dele para você? – prossigo perguntando, nem sei bem o porquê.

– Ah, é importante. Mas tenho dificuldade.

Eu e Hugo nos entreolhamos com discrição e percebo que sua paciência já se esgotou por completo. Ele desliza os dedos pelos lábios – uma mania que tem – na marca onde costumava ficar uma fissura labial, operada provavelmente quando ele ainda era um bebê. Sei que isso significa que não vê a hora de dispensá-la. Eu, entretanto, estou curiosa a respeito dessa resposta absurda.

– Você pode desenvolver melhor sua resposta?

– Certo. Serei sincera − sibila. − Eu não tenho muita sorte em empregos. As pessoas costumam não gostar de mim, mas espero que dessa vez seja diferente. – A essa altura ela já percebeu nossas expressões perplexas, no que tenta consertar. – Eu não faço nada para isso, é claro. Na verdade, o motivo é bem ridículo.

– E qual é o motivo para seus colegas de trabalho nunca gostarem de você? – Hugo se pronuncia pela primeira vez. Agora até ele parece curioso com a performance da nossa candidata.

– Bem, como eu disse, por uma razão um tanto absurda... – Continuamos esperando. – Por causa da minha beleza.

Emudecemos.

– As outras meninas costumam sentir inveja. Vocês sabem como as mulheres são... – ela me encara com um sorriso xoxo, ao qual eu obviamente não retribuo. – Além disso, alguns patrões me assediam e as esposas acabam enciumadas.

– Ah, certo. – Começo a procurar uma forma de dispensá-la, mas estou um pouco desnorteada. – Esse lugar que você trabalhou, "La Comitiva", não é? O que você fazia lá?

A menina lança um rápido olhar para Hugo, que imediatamente afunda o rosto em seu currículo, e depois volta a me encarar.

– Você não conhece? – indaga, parecendo genuinamente surpresa.

– Não. O que é?

– Uma boate – diz. – Eu era recepcionista.

– Acho que já está bom! – Hugo interrompe, para meu alívio. – Obrigado e boa sorte.

A menina se retira e ele me encara.

– Sério? La Comitiva? Quem selecionou esse currículo?

– O que foi? Eu não conheço muitas boates. Mal tenho tempo para dormir! Além disso, qual é o problema? Está agindo como se essa fosse a coisa absurda na entrevista dela.

– Isso não é uma boate, tonta! É um bordel!

– O quê? – Tomo o papel de sua mão e, assim como ele acabara de fazer, enfio meu rosto no campo "experiência". – Você está de brincadeira comigo?

Ele joga a cabeça para trás e solta uma sonora gargalhada.

– Inacreditável! Quem colocaria isso num currículo?

Não consigo evitar sorrir com ele.

– Agora todo o resto faz bastante sentido.

Hugo confirma com a cabeça, esfregando a lágrima que escapou dos seus olhos. Quando finalmente se recompõe, me faz uma proposta:

– Nós dois merecemos um café antes de irmos adiante, não acha? – Espio a fila que teremos que encarar e concordo. Ele se levanta para fazer o pedido. – O que você quer?

Cappuccino.








~~~

Nota da autora: Qualquer semelhança da entrevista narrada neste capítulo com a realidade é mera coincidência. Ou não.


Oi gente! Mais um capítulo saiu!

Decidi estipular segundas e quintas como dias de publicação.

Sendo garantido nas primeiras, e incerto nas últimas.


Espero que vocês estejam curtindo.

💜

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