|Capítulo 2|

Às vezes temos a sensação de que estamos sendo observados, isso nos deixa constrangidos e desconfortáveis, não conseguimos nos concentrar. Na verdade, não era apenas a sensação. Eu estava realmente com um par de olhos atentos sobre mim. O professor Bernardo parecia querer penetrar os meus pensamentos. Era eu encarando a folha e ele me encarando.

— Algum problema, Castilho?

A imbecilidade daquele homem me causava nervoso. Realmente havia um problema, eu estava cansada e quase dormindo em cima do papel, enquanto tentava relembrar e compreender nem que fosse uma fórmula. Tiago e Eduardo ficaram até duas da manhã me ajudando com os exercícios e com a memorização para a prova, todavia, quando acordei, era como se nada se fixasse na minha cabeça, era como se uma borracha houvesse sido esfregada em meus pensamentos.

— Não, professor. — Sacudi a cabeça e fingi que estava tudo sob controle. É, não estava.

Olhei para os lados e, quando Bernardo se afastou, consegui enxergar quase que perfeitamente a folha de rascunho de Marco, um colega que era como um verdadeiro gênio da física. Era uma ajuda divina, só poderia ser. Semicerrei os olhos, mas isso não foi o suficiente para ler com clareza. Olhei para frente, Bernardo estava distraído com o seu aparelho celular. Estiquei o pescoço e consegui ver o cálculo e o resultado das duas primeiras perguntas. Dez décimos estavam garantidos.

— Droga — murmurei quando percebi que as outras respostas estavam do lado direito da folha.

Inclinei mais o tronco, sempre alternando os olhares entre o professor e as respostas. Já estava com mais da metade do corpo para fora da cadeira, faltava só mais um pouco. Talvez se eu tivesse feito o exame de vista que meu pai ordenara, meses atrás, não estaria passando por aquela situação. As letras estavam todas embaçadas.

— Só mais um pouqui... AH!

Em um momento de desequilíbrio fui ao chão, levando comigo minha cadeira, meu lápis e o rascunho da prova de Marco, que puxei por impulso quando senti meu corpo pender rumo ao solo. Já não bastasse o vexame de me estabacar no piso, ainda fiquei lá, jogada, com a folha sobre mim e o olhar de Bernardo também.

—  Evaluna Castilho, diretoria agora — ordenou.

— Professor Bernardo, eu não...

— Agora, Castilho.

Levantei trôpega e esfregando a lombar de maneira desajeitada, certeza de que um roxo habitaria ali em questão de horas. Juntei tudo e, sob os olhares atravessados dos meus “amigos” não tão amigos, saí da sala. Bernardo me acompanhou até à diretora Matilde e, depois de contar o que havia acontecido minutos antes, me deixou a sós com ela.

— Evaluna Castilho, uma das melhores alunas do terceiro A... O que aconteceu? — questionou enquanto me observava de trás de sua mesa.

Atrás da mulher caucasiana de olhos escuros e cabelo grisalho existia um quadro, era de seu falecido marido. O quadro me assustava mais que a própria Matilde.

— Eu estava pegando a minha... borracha — inventei. — Ela caiu no chão e eu me desequilibrei quando fui apanhá-la.

— O professor disse que a senhorita caiu em uma tentativa falha de colar do seu colega, Evaluna.

— EU?! — Me fingi indignada. — Eu fico ofendida com uma acusação dessas — disse com a voz carregada de falsidade. — Olha, a senhora sabe que eu nunca precisei desse tipo de recurso. O professor Bernardo está completamente enganado.

— É a palavra dele contra a sua, Evaluna. Eu sinto muito, mas terei que chamar um responsável seu aqui.

— Mas eu já faço dezoito anos no mês que vem. Posso responder por mim mesma.

— No mês que vem vai poder. Hoje ainda é menor de idade — respondeu e puxou o telefone do gancho. — Seus pais estão em casa? — perguntou pois já sabia que eles viviam em viagem por conta do trabalho.

— Não.

— Seu irmão?

— O Eduardo está no trabalho agora — recalcitrei.

— Infelizmente ele precisa vir aqui, ou a senhorita não sai.

Eu nunca me senti mais infantil em toda minha vida. O pior de tudo é que eu conhecia muito bem o meu irmão, e sabia que ele abandonaria o trabalho correndo se fosse preciso. Para me ajudar?

Ah, não.

Pura e simplesmente pela satisfação de me ver passar vergonha.

Ela pegou a ficha com meus dados e buscou atentamente pelo número de Eduardo. Quando o encontrou, ligou mais que depressa. Não foi difícil convencê-lo a ir ao colégio.

— Okay, Eduardo. Estamos no aguardo — falou por fim e voltou o trabuco, que ela chamava de telefone, para o gancho.

— Aceita uma água enquanto espera, Evaluna?

— Não. Obrigada. 'Tô legal. — Sorri fechado com ironia.

Foi uma eternidade em meia hora, nunca trinta minutos demoraram tanto a passar. Já havia decorado até mesmo a ordem das enciclopédias das prateleiras de vidro.

Quando Eduardo chegou, entrou com a cara mais cínica e deslavada na sala da diretora. Ousou até mesmo pentear os cabelos para trás e vestir um blazer por cima da camisa preta.

— Perdoem a demora — falou e fechou a porta com cuidado.

— Sente-se por favor, Eduardo.

— Claro, senhora Matilde.

Meu irmão colocou-se ao meu lado e me encarou de soslaio.

— Sua irmã foi pega colando, levou um tombo e negou todo o acontecido.

— Todo não, neguei a cola — respondi erguendo um dedo que foi abaixado por Eduardo.

— Perdoe a Eva, ela está assim ultimamente por conta da falta dos nossos pais — começou. — Eu até tento fazer as vezes deles aqui mas... — Suspirou em um tom dramático e colocou a mão na testa, como se fosse chorar. — Essas viagens deles afetam toda a nossa estrutura familiar, senhora Matilde — completou com a voz esmorecida.

Como conseguia ser tão falso?

— Oh! Eu não quis incomodá-los. Não sabia dessa realidade interna de vocês — disse Matilde e eu me assustei. — Pelas normas do colégio a sua irmã seria suspensa e impedida de fazer a prova, mas diante disso eu posso interceder. Vou conversar com o professor Bernardo e ela poderá refazer a prova em um momento mais oportuno — afirmou, e meu irmão fingiu secar os olhos.

— Eu nem sei como agradecer, senhora.

— Não precisa, Eduardo. Fico feliz em ver como cuida da sua irmã e... Evaluna — Estendeu a mão a mim —, eu espero que tudo se resolva, quem sabe quando se formar, pode viajar junto com seus pais. Entendo como é difícil essa ausência, mas não deve se tornar uma rebelde, minha querida. Veja o seu irmão. — Segurou na mão dele também. — Siga o exemplo dele, é um excelente rapaz.

— Aham, é sim — eu disse, olhando para ele, naquele momento encontrava-se montado e cavalgando em uma égua de falsidade cinismo.

— Muito obrigado, diretora Matilde — agradeceu.

Depois de os dois se despedirem, eu e meu irmão deixamos a sala e caminhamos em silêncio até o estacionamento do colégio.

— Onde é a aula? — questionei com os braços cruzados quando chegamos perto do seu carro.

— O quê?

— A aula de teatro que ‘tá fazendo, seu cínico!

Ele riu e me encarou.

— Um “obrigada” serve, Eva.

— Você me fez parecer uma criança mimada, Eduardo!

— É mentira?

— Cala a boca — retorqui e dei um tapa nele, que se esquivou.

— EVA! — Escutei uma voz feminina gritar meu nome quando estava prestes a chacinar Eduardo.

— Ah! Praga — murmurei e me virei de frente para a pessoa que corria em nossa direção. — Oi, Leda. — Afinei o tom de voz para parecer mais doce. Só parecer.

— Você esqueceu. — Abriu a mão e revelou uma caneta cor de rosa.

— Obrigada — respondi, e ela permaneceu me encarando com aquelas pupilas claras. Seu sorriso cheio de dentes me incomodava. Aquela alegria enraizada sempre me pareceu forçada.

Estava pronta para despachá-la e ir embora, mas assim que ela se virou para nos deixar, lembrei da conversa com Tiago no dia anterior.

— Não acredito que vou fazer isso — sussurrei a mim mesma, deixando meu irmão confuso. — LEDA! — chamei.

— Euzinha.

ÊH, ÓDIO.

— Amanhã à noite vai ter ensaio dos meninos lá em casa. Aparece pra me fazer companhia — disse, enquanto internamente eu me dava uma surra.

— Claro, Eva — respondeu, abraçada a um caderno azul cheio de flamingos estampados, depois se despediu abanando os dedos e saltitou em direção à entrada lateral do colégio.

— Essa aí que é a tal da Leda? — Eduardo questionou e eu assenti.

— Infelizmente. Ela mesma.

— Ela é sempre... alegre assim? — comentou com a estranheza estampada na face.

— Se com alegre você quis dizer extremamente irritante, é! Só não entendo como o Tiago diz que ela esfria com ele. Pensei que fosse impossível essa lebre ser fria com alguém — falei enquanto nós dois observávamos a silhueta da moça desaparecer ao longe.

Meu irmão sabia do amor enclausurado que Tiago sentia pela menina — eu contei — mas ainda não a conhecia.

— Às vezes ela fica nervosa perto dele — Eduardo supôs.

— Não... — semicerrei os olhos e expirei. — É outra coisa. Mas deixa pra lá, quando eu souber o que é, eu resolvo.

— O Tiago é maior de idade, Eva.

— Mas ele não consegue nada com o canguru cor de rosa — retorqui. — Eu vou ajudar. É isso que uma melhor amiga faz. Ela resolve os seus BO’s .

— Talvez ele não queira sua ajuda — disse ele.

— O Tiago te disse algo que eu não sei?

— O Tiago? Não. Não disse nada.

— Então cala essa boca. — Joguei minha bolsa sobre meu irmão. — Entra logo. Eu ainda não terminei de acabar com a sua raça.

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