Capítulo 6 - Desejos incertos
- Kentin! - Pisquei repetidamente, diminuindo nossa distância com dois passos curtos. Assim que nos aproximamos, sorri, retraindo todos os pensamentos conflitantes que flutuavam em forma de nuvens espessas na minha mente.
- O quê você estava fazendo com esse esquisitão? - Indagou o loiro, olhando para a silhueta que caminhava sem olhar para trás. Apenas naquele momento, percebi que Aono havia seguido sem mim. - Não fica bem a minha namorada andar com um delinquente. - Kentin parecia naturalmente convencido enquanto dedilhava os fios do meu cabelo, pondo-os para trás. Sua postura exalava uma arrogância enraizada, um lugar confortável do qual ninguém se atreveria a tirá-lo. - Você sabe dos boatos. Ele está envolvido com gente perigosa.
- Ele não é assim! - Atropelei as palavras dele, me afastando. Seus dedos ficaram suspensos no ar, e seus olhos cor de safira olhavam para mim em uma reação clara de quem não esperava essa ação. Indignada com suas palavras, continuei. - Por quê você vazou aquela foto?
- Foto? - Kentin me olhava como se eu fosse uma estranha. Aquele tipo de olhar acertava um ponto crucial em meu peito, indicando que eu estava agindo de forma errada. Porém, naquele momento, não consegui pensar em como a minha antecessora agiria. Não consegui ficar calada diante daquela situação.
- No primeiro ano. As tatuagens..
- Ah, "aquela" foto. - Kentin suspirou, levando uma das mãos aos cabelos penteados. A sua ação deixava os fios selvagens, e em outro momento, eu apreciaria aquela imagem e o acharia lindo. Mas não agora. - Qual é, Sophie? Isso faz tanto tempo. Por que a gente tá perdendo tempo discutindo por algo bobo, ao invés de pensar em algo melhor para fazer ? Tipo, esse final de semana.. Você vai dormir lá em casa, né? - Passando os braços em volta da minha cintura, Kentin se aproximava de forma preguiçosa, escondendo a face na curva do meu pescoço. Seu hálito quente contrastava com a temperatura amena do meu corpo, mas surpreendentemente, não foi aquele ato que eriçou-me dos pés a cabeça, me deixando idêntica à um gato molhado.
- D-dormir com você!? - Arregalei os olhos, permanecendo imóvel pelo tempo que as palavras faziam sentido na minha mente. Kentin enlaçava as minhas mãos ao redor do corpo dele, ao perceber que eu não o faria. Saindo do meu transe, levei os dedos até os fios cor-de-sol, acariciando-os. - Quer dizer, a gente não tinha combinado nada.. - Pigarreei, disfarçando o nervosismo. Na aula de "o que namorados fazem no tempo livre?" Infelizmente eu faltei. No entanto, depois de meses habitando este mundo, convivendo com uma diabinha no quesito "garotos" - sim Kaori, é com você mesmo que eu estou falando - eu não era mais tãaaao inocente assim para não saber o que um casal de namorados fazem quando estão sozinhos. E DEFINITIVAMENTE, eu não estava preparada para aquilo.
- E precisa? - Afastando o rosto, Kentin ficava a centímetros da minha bochecha. Seu hálito mentolado fazia curvinhas na minha pele, sendo mais que suficientes para me petrificar. - Ou será que.. a minha namorada está se cansando de mim?
Kentin me olhava feito um cachorrinho pidão. Eu sei que, pelo tom da sua voz, ele estava brincando, mas aquela frase inocente havia criado um terremoto nas vias nervosas do meu corpo. À todo momento, minha mente traiçoeira imaginava que a minha estadia naquele mundo poderia ter um fim. Que a verdadeira Sophie retomaria o controle do seu corpo e.. Enquanto eu estiver por aqui, não posso em hipótese nenhuma deixar que qualquer relação sua acabasse. Por isso, sentindo a culpa subir com um gosto amargo pela minha garganta, relaxei o corpo e a voz, levando as mãos até o rosto de Kentin, que me encarava com aqueles olhos angulados.
- É claro que eu nunca me cansaria de você, bobo. - Apaziguei, abrindo um sorriso quando a ponta do nariz dele roçou o meu. - Mas eu preciso falar com a minha mãe primeiro.
- Ela nunca criou problemas com essas coisas. - Girando o meu corpo, Kentin encostava os lábios na ponta da minha orelha direita, depositando beijos rápidos. - Sua mãe sabe o quanto eu sou responsável, lindo, charmoso.. E o quão feliz a filha dela é ao meu lado. - Com a última parte sendo soprada diretamente no meu ouvido, estremeci. Por Deus, os garotos desse mundo são atirados assim? De onde eu venho, eles pediam permissão para apenas segurar a minha mão. ‐ ok, não eram tantos pedidos, mas isso fica para outra hora. -
- ..E convencido.. - Continuei, me afastando. Em seguida, indiquei os cards na minha mão, lembrando-lhe que ainda tinha muito trabalho a fazer. E ele também, já que a sua turma estava encarregada com a decoração da festa. - Vou falar pra ela levar esses auto-elogios em consideração. Agora eu realmente preciso continuar entregando isso.
Retribui o aceno, deixando que a silhueta do meu namorado saísse da minha linha de visão. Quando me deparei com o silêncio do corredor, deixei que um longo suspiro saísse dos meus pulmões, como se a tempos estivesse debaixo d'água. Levei uma das mãos ao peito, alisando inutilmente, tentando aliviar um aperto que eu sabia que não se curaria daquela forma. Muita coisa estava acontecendo, o clima pesado entre Aono e eu, as mágoas do passado que ainda não foram resolvidas, Kentin e seus comentários depreciativos, aquele colar inocente, o convite para dormir na sua casa.. Estava sufocada. Eu achei que estava superando todas aquelas mudanças. Achei que já estivesse encaixada nessa nova vida. Mas na realidade, eu ainda sou a pobre menina tola e assustada de sempre.
❃
Resmunguei na segunda vez que senti os dedos insistentes de alguém, passeando gentilmente por minha bochecha. Me recusando a abrir os olhos, encolhi as pernas e me agarrei mais ao travesseiro que estava entre elas, ignorando qualquer coisa que não fosse o meu prazeroso sono. Infelizmente, não pude ignorar por mais de 5 minutos.
- Hoje nem tem aula.. - Ronronei, tentando argumentar contra uma Hanako que me esperava ao pé da porta, trajando um avental de bolinhas vermelhas. Apesar de ser sexta-feira, minha turma foi poupada de comparecer ao colégio, devido ao dia que tirariam para começar os preparativos da festa de boas vindas do dia seguinte. - Só mais cinco minutinhos..
- E a mocinha acha que só por que não tem aula, vai fugir das responsabilidades em casa!? - Vendo o meu estado deplorável, repleta de fios castanhos a frente do rosto, Hanako balançava a cabeça em negação, deixando a porta aberta, o que significava que eu não tinha escolha. - Vá jogar uma água no rosto e venha comer.
Bufei, pegando a coberta novamente, fazendo menção de voltar a deitar. Apenas a menção, por quê eu nem cheguei a deitar a cabeça no travesseiro. De repente, a voz de Hanako ecoava em meus ouvidos, em um sonoro "Sophie Marie Ichikawa Jones, eu espero que você não tenha voltado a se deitar!" Ao abrir meus olhos, na esperança de ver a mulher de avental na minha frente, me deparei com a ausência da figura feminina no local. Então, como ela sabia que eu havia me deitado? É aquilo que chamam de "sexto sentido de mãe?"
Pensando bem, acho que as mães tem algum tipo de dispositivo mental, que monitora os passos e os pensamentos dos filhos. Só isso explicaria a quantidade de vezes que Hanako parecia uma adivinha.
Cocei os olhos, descendo as escadas da beliche e calçando as pantufas em seguida. A cama de Yuina estava vazia, sinal que ela já estava na escola. Bocejando, pisquei os olhos para despertar, olhando ao redor do quarto arrumado. A decoração era uma mistura perfeita dos gostos da minha antecessora - que se tornaram os meus - e dos gostos da Yuina. Me aproximei levando os dedos pelo vaso decorado com plantas artificiais, e em seguida, desviei o olhar para as polaroids com os sorrisos visíveis das minhas amigas, e algumas acompanhadas do Kentin, apresentando uma vida de casal feliz que agora era tarefa minha manter. Segui pela prateleira repleta de figures variadas, inclusive aquela que sempre congelava o meu coração. Olhei atentamente para os cabelos cor de fogo e para o lírio que me levava a memórias distantes. Toda vez que eu encarava a figure de Emilli McMillan, sentia o meu coração estraçalhar em milhares de pedaços perfurantes. E toda vez, eu tinha que juntar e colar os caquinhos, lembrando-me da pessoa que eu era naquele momento, e obrigando-me a deixar o que um dia eu já havia sido, para trás.
Fui interrompida da tour pelo quarto com o barulho característico de mensagem. Pegando o celular em mãos, liguei o dispositivo, olhando para as mensagens acumuladas. Cliquei na aba de conversa com Kentin, olhando para a foto que ele havia enviado, trajando o uniforme do colégio e em seguida, li a legenda que acompanhava a imagem.
(08:32) Keniichi ❤
Estou com saudades. Carregar caixas de um lado para o outro está sendo um saco.
(09:57) Você
Imagino. Estou aqui torcendo por você! Vou arrumar a casa agora. Você sabe bem como a dona Hanako pode ser assustadora às vezes.
(10:00) Keniichi ❤
Melhor ir então. O Sanada-sensei também está de olho em mim aqui. A gente se fala outra hora, beijo.
Fechei a aba de conversa depois de reagir a última mensagem com um emoji de coração. Abrindo uma outra mais recente, soltei uma risada abafada com a mensagem de Kaori, que estava em uma situação parecida com a minha, me fazendo pensar que mães eram iguais, só mudam de endereço.
SuperPower Girls 🦋 👩🏽👩🏼👩🏼🦋
(09:45) Kao-chan 💓
Por que mães têm que ser taaaao chatas? Não quero arrumar a casa. Preciso estar fabulosa para o nosso passeio de hoje a tarde. Keiko, lava a louça pra mim? Minhas unhas estão lindas demais para serem estragadas 🥺
(09:47) Kei-chan 💓
Pare de me pedir as coisas como se eu não estivesse do seu lado. E a resposta é não.
(10:05) Você
Mesma coisa por aqui. Vejo vocês mais tarde, meninas!
Mesmo depois de lavar o rosto, ainda sentia picos de sono a cada vez que deslizava a vassoura contra o piso. Em um determinado momento, me peguei cochilando com o utensílio em mãos, despertando as risadas da tia Miya.
- Coitadinha da menina, Hana! - Trocando o canal da TV, minha tia vez ou outra movia os pés, para facilitar a minha limpeza. - Poderia ter deixado ela dormir mais um pouquinho. Não são todos os dias em que se consegue uma folguinha do colégio, não é? E a Soso trabalha tanto..
- Ela pode voltar a dormir se trocar o passeio pelos afazeres. - Hanako retrucava, e logo em seguida o barulho de algum legume sendo picado ressoava pela sala. Enquanto as duas conversavam, me focava em ficar acordada. Não que eu acordasse tarde no castelo, longe disso. E como eu não tinha uma posição de destaque, apesar de ser tutelada pelo rei, sabia lidar com os afazeres domésticos. Acho que o meu cansaço era mais mental do que físico, aquela primeira semana de aula era equivalente a bailes de um dia inteiro, só que muito mais desafiadores. Então era natural que o meu corpo estivesse pedindo socorro.
- A Soso vai sair? É com aquele bonitão? Eu sempre esqueço o nome dele. É Kenny.. Kento..
- Kentin. - Corrigi, apressando o serviço. Apesar de estar esgotada, confesso que estava muito animada para sair com as meninas. Seria a primeira vez desde que reencarnei nesse corpo, então tinha muitas expectativas. Tudo bem que nos últimos dias, minhas expectativas foram esmagadas pelo amargo da realidade. Mas ainda assim, eu estava confiante. - Vou sair com a Keiko e a Kaori. - Finalizei, parando em frente aos porta-retratos. Abri um sorriso com os rostos de Hanako e Richard em uma foto que parecia ser antiga, da época de faculdade. No outro retrato, a família completa, todos com rostos muito sorridentes. No centro delas, uma foto única de Richard, reservada para as lembranças da família.
- Ainda lembro da primeira vez que vocês foram lá em casa. - Com um sorriso acolhedor, a irmã mais nova da mamãe alisava as minhas costas, prosseguindo. - Você era pequena, então não sei se lembra. A mamãe não se conformava com o casamento da Hana com um estrangeiro, mas eu não consigo pensar em outro que não fosse o Richard para viver com ela. Eles eram inseparáveis.
Assenti, voltando a encarar a foto. Tia Miya prosseguiu, contando histórias das gafes cometidas por Richard, que iam desde o modo errado de segurar os hashis, até entrar com sapatos em casa. Segundo ela, ele era o "americano mais desajeitado que conheceu", e todas as suas lembranças eram comentadas com uma pitada de saudade. Passei a manhã mergulhada em memórias que pouco a pouco, reconhecia como minhas, mesmo que eu não estivesse lá. Se eu fechasse os olhos, podia sentir o afago das mãos masculinas no meu cabelo, ou o gosto dos ovos com bacon que ele fazia em um típico café da manhã americano. Meus olhos marejavam quando comparava com o meu passado solitário e todas as vezes que busquei os braços do meu pai para me abraçar, sempre recebendo suas palavras cruéis. Desejei mais do que nunca aquele amor paterno que estava restrito apenas a memórias doces, mas tristes.
❃
À tarde, encontrei as meninas em frente a estação, no horário exato que havíamos marcado. Seguimos pelo corredor lotado até arranjarmos espaço no trem parcialmente vazio e mergulhado em silêncio. Depois de mais ou menos 10 minutos, retomamos a caminhada até parar em frente a um prédio que ousava os meus olhos a continuarem erguidos, tamanha a grandiosidade do lugar.
- Enfim, chegamos!! - Kaori foi a primeira a entrar, em pulinhos animados. Segui a loira compartilhando da animação, embasbacada com o tamanho e diversidade de cores do nosso destino. - Ao lugar onde a magia acontece.
Kaori não estava brincando. Aquele lugar realmente era mágico e.. lindo. Meus olhos eram recebidos com manequins, máquinas diversas, roupas de modelos variados, pessoas carregadas de sacolas de cores e tamanhos diferentes, e uma música ambiente que me fazia sentir nas nuvens. Essa era a magia de um shopping. E eu estava adorando ser contaminada por aquilo.
- Vocês viram aquilo? - Apontei, extremamente animada. - É tão lindo!
- Parece até que é a primeira vez que você vem aqui. - Soltando uma risada, Kaori me cutucava com o cotovelo, no mesmo momento em que engoli em seco. Eu estava absurdamente empolgada, mas como uma pessoa que estava tão acostumada a frequentar lugares como aquele, deveria guardar um pouco do meu entusiasmo. Tarefa difícil, pois mesmo que tenhamos nos afastado daquela parede espelhada que a segundos atrás havia sido o motivo do meu mini surto, eu ainda esticava o pescoço para trás, olhando com feições de gatinho até que os quadriculados estivessem fora do alcance da minha visão.
- Onde vamos primeiro? - Perguntou Keiko, olhando para os lados. As gêmeas estavam adoráveis, trajadas com uma saia plissada, diferenciando-se apenas na cor. Enquanto Kaori apostava no rosa, Keiko por sua vez usava roxo. As blusas ausente de alças terminavam em formato de triângulo, na altura do umbigo. Além dos coturnos de cano alto , usavam meias listradas que chegavam até os tornozelos de ambas, fazendo jus a fama de it-girls que tinham no colégio, elas sempre estavam antenadas nas tendências atuais. Eu estava a um tempo considerável naquele mundo para saber como deveria me vestir, apesar de todas as vezes me sentir nua. Minha produção para o dia hoje era copiada de um visual de uma protagonista de mangá colegial que li, sendo composta por um vestido preto que chegava a alguns centímetros acima do meu joelho, camisa social branca por dentro e coturno de camurça.
Paramos na loja da Sanrio, e toda aquela fofura era o suficiente para que eu me perdesse entre os corredores cor de rosa. Provei alguns arcos de coelhinho, atualizando as redes sociais com fotografias minhas e das garotas com nossos achados da loja. Em seguida, piramos na seção de chaveiros.
- A gente precisa usar um desses aqui! - Exclamou Kaori, pegando um chaveiro da Hello Kitty. Balancei a cabeça em afirmação, pegando um e o girando em meus dedos. Aquela loja era muito, muito fofa.
Saímos da loja com os chaveiros, além de um arco de ursinho que comprei para Yuina. Kaori me guiava pelos corredores chamativos e vez ou outra parávamos em alguma loja fofinha. Tudo bem que estávamos ali para comprar uma roupa para a festa de amanhã, mas quem disse que era possível sair dali sem um monte de sacolas?
❃
- Tem certeza que esse aqui tá bom? - Arqueei uma sobrancelha, olhando para o meu reflexo no espelho. Estávamos a duas horas no shopping e, entre compras e fotos, conseguimos separar um tempo para focar no real motivo para estarmos ali. Só não sabia que ficaria tão cansada e atolada de roupas que chegavam até a mim sem intenção de cessar. Por um breve momento, lembrei-me de Dália e soltei uma risada curta ao pensar que aguentar as escolhas da mulher era fichinha perto do que estava passando com aquelas duas. - Não sei.. Não tá meio.. revelador demais?
- Você tá linda, para. - Keiko suspirou, desviando o olhar quando Kaori saiu do provador, aos prantos.
- Eu não acredito.. Não ficou nada parecido com o que eu imaginei. Tá aparecendo todas as minhas celulites! - A loira apontou para as próprias pernas e eu precisei estreitar os olhos para ver as tais marcas que ela estava mostrando. Não consegui ver nada. - E esse corpo feio.. Eu me odeio!
Balancei a cabeça em negação, guardando as minhas incertezas em relação a roupa que usaria no dia seguinte, para consolar a minha amiga. Kaori chorava e fungava em mim, tal qual uma criança quando perde um doce, e eu precisei afastá-la antes que a roupa virasse uma mistura de lágrima e catarro.
- Para com isso, você tá linda.. Essa roupa super valorizou o seu corpo. - Levantei o rosto pequeno, limpando com a outra mão livre o rio de delineador que havia escorrido de seus olhos. Acho que a minha tentativa acabou espalhando ainda mais, mas felizmente Keiko tinha um lencinho pra gente reparar a bagunça. - E você vai ser a mais linda amanhã, tenho certeza.
- Então eu não quero, por que a mais linda tem que ser você.. - Se amolecendo no meu colo, Kaori fazia biquinho. Talvez por estar em conflito com a própria roupa, ela só tenha reparado agora que eu já estava vestida. Seus olhos se iluminaram, arrastando qualquer vestígio das lágrimas de outrora. Juntando as mãos, a loira emitia gritinhos, se diferenciando totalmente da Kaori de 5 segundos atrás. - Men-ti-ra!! Você tá linda, amiga! Isso tá perfeito. Me diz que você vai com ele!
- Eu não sei.. - Cocei a nuca, olhando para baixo. - Acho que a saia tá mostrando demais..
- Tá preocupada com o Ken? - Kaori ergueu uma sobrancelha. - Ele é extremamente ciumento, eu sei. Mas ele vai esquecer do ciúme rapidinho quando te ver toda gostosona nesse look. Ele vai ficar maluco, sério. Tem que ser esse.
Olhei para o espelho, encarando os detalhes da roupa. Aquilo parecia exatamente o tipo de roupa que a minha antecessora usaria, e realmente ficava lindo no corpo. Maximizava todos os traços que já eram notáveis sem o uso da peça. Com um pequeno auxílio de maquiagem e os adereços certos, aquela combinação ficaria linda. Foram essas palavras que tentei introduzir na minha mente, quando já estava do lado de fora da loja junto com as meninas, carregando a sacola cor de rosa fechada com um laço branco na ponta.
Seguimos na direção de uma cabine fotográfica, rindo a cada efeito que a gente colocava. O filtro "olhos grandes", deixava as minhas pupilas carameladas maiores do que já eram, então decidimos testar o "pele perfeita". Aquele filtro modificava bruscamente a cor da minha pele, por isso, testamos o "brilho natural". Como o filtro apenas adicionava um brilho solar na nossa pele, optamos por esse. Tiramos uma cartela de poses bonitas, e outras com careta. Quando pegamos a fotografia, caímos na risada com as caretas que fiz.
- Sério, Sophie. Você tá parecendo a Lindsay Lohan vestida de noiva zumbi, no filme "Meninas Malvadas". - Apontando para a cartela, Kaori ria, abanando as mãos para pegar ar. Apesar de não ter entendido a referência - mas já anotando mentalmente o nome do filme para assistir posteriormente -, imaginei que, enquanto a minha expressão fazia jus à uma careta de verdade, a delas não passavam de tentativas. Aprendizado: garotas nunca, em hipótese nenhuma, querem ficar feias.
❃
- Dessa vez, estou torcendo para que dê certo. - Kaori entrelaçou os dedos, esperançosa. Depois do nosso passeio no shopping, paramos no MyCoffe. As duas haviam pedidos biscoitos de gergelim e um café expresso, enquanto a minha escolha apresentava uma fatia generosa de bolo de nozes com calda de chocolate derretido, e um frappuccino de mocha branco com muito chantilly. Nem preciso dizer que as duas, principalmente Kaori, me olhavam como se eu estivesse cometendo um sacrilégio. - Ele é lindo, educado, gosta das mesmas coisas que eu. Mal posso esperar pra gente se ver hoje a noite.
Balancei a cabeça em afirmação enquanto mastigava um pedaço de bolo. Kaori era conhecida por suas tentativas de arranjar um parceiro romântico por meio desses "encontros em grupo." Geralmente, todas as tentativas terminavam com ela desejando que a próxima fosse melhor.
- Eu pedi pra Keiko me acompanhar, mas né.. Essa aqui parece que tem medo de homem. A mamãe pega um pouco no meu pé porque tecnicamente, a Kei é mais velha. Mas o que eu posso fazer se essa chata não gosta de conhecer gente? - Keiko suspirou, estreitando os olhos ao ser mencionada na conversa, visivelmente incomodada. Desviei o olhar para a mais velha, pensando que ter uma irmã de aparência igual deveria ser complicado.
- Eu não sou igual a você. Só quero ter o meu tempo para escolher alguém. Isso é pecado?
- Pecado não é, mas.. - Kaori pousou a mão sobre a mesa, continuando. - Desde sempre você é assim. E olha, que não falta oportunidade.
- Eu concordo com a Kei. - Intervi, antes que as duas se estapeassem na minha frente. - O tempo de cada um é diferente e.. Isso vale pra você também, Kao. Você deve encontrar alguém que goste, não só pra dizer que tem alguém.
- Você só fala isso porque não é igual a nós, meras mortais. - Kaori inflou as bochechas, se assemelhando a um esquilo. - O Ken te trata como uma princesa e vocês são cuti cuti juntos. Af, quando é que a sorte vai sorrir pra mim!?
Abri um sorriso sem graça, me retendo ao silêncio. Havia um ditado que dizia que a grama do vizinho é sempre mais verde, e achei de bom tom citá-la agora. Pensei em Kentin e na interação que tivemos durante a semana, e mesmo sem querer, o convite para dormir em sua casa invadia a minha mente, me estremecendo.
Me despedi das meninas em frente à estação, depois de ter me convidado para acompanhar Kaori em seu encontro. Recebi uma dispensa ao saber pela loira que ela já tinha a companhia de uma amiga para a noite, e que ela me atualizaria no dia seguinte. Acenei para as duas, tomando um caminho contrário ao delas, caminhando pela calçada que me levaria de volta para casa. Não sabia que horas eram, mas já deviam se passar das 17h. Quando cheguei, encontrei Yuina no quarto, e a sua mochila em cima da cama, indicando que ela havia acabado de chegar. Lembrei-me do arco que havia comprado e caminhei na direção dela, pondo a mão na frente dos seus olhos em suspense.
- O que é? - Curiosa, Yuina pegava a sacola, abrindo-a quando afastei meus dedos. A garota retirou o arco, trazendo-o ao alcance dos seus olhos. Sorrindo, recebi o abraço afetuoso da minha irmã, que me apertava ao redor da minha cintura. - É um pouco infantil, mas eu amei! Essas orelhinhas são muito fofas.
- "Um pouco infantil?" - Ironizei, lembrando as palavras da pequena. Em seguida, levei os dedos até as laterais do corpo de Yuina, fazendo cosquinhas nela, que fugia de mim aos risos. - E o que você acha que é, ein?
- Sô.. Para! - Correndo pela cama, Yuina fugia dos meus dedos travessos, parando apenas quando a interceptei na sala. Mamãe e tia Miya recomendaram que a gente não fizesse muito barulho, para não incomodar os vizinhos. Em seguida, caímos no sofá, ofegantes e avermelhadas.
❃
Antes de dormir, peguei a figure que ilustrava a silhueta da minha vida passada, e me deitei na parte superior da beliche. Yuina já dormia, e ao olhar para a expressão tranquila em sua face, desejei que ela estivesse tendo bons sonhos. Sorri, ajeitando os cobertores e me escondendo debaixo do tecido quentinho. Com a figure apertada contra o meu peito, deixei que as lembranças do passado se misturassem às memórias que eu estava criando no presente. Uma lágrima escorria do meu olho esquerdo à medida que o medo de que tudo aquilo acabasse atormentava os meus sentidos. Não queria partir, mais uma vez.
- Será que é tão egoísta assim não querer ir embora? Estremeço com o mínimo pensamento de abrir os olhos, e estar longe de todas as conexões que estou criando nessa vida.. - Sussurei para mim mesma, olhando para o teto de cor branca. Depois de segundos incontáveis apertando a silhueta do passado entre os meus dedos, passei a olhar para a cartela de retratos que resumia o dia de hoje em sorrisos e momentos divertidos que eu queria repetir, mais e mais vezes. Em seguida, peguei o telefone, abrindo o Instagram.
Olhar para um passado de conquistas era como lançar-se na direção de uma flecha. À medida que meus dedos deslizavam pelo feed repleto de retratos da antiga Sophie, aquela sensação perfurante tomava o meu fôlego, me deixando submersa. Em uma foto de dezembro do ano passado, abri na sessão de comentários, recheado de elogios de Kentin. Não era muito difícil imaginar como era a relação dos dois; bastavam alguns cliques, e eu era transportada para momentos felizes dos dois juntos, em praias, restaurantes e autódromos, lazer preferido do garoto. Em todas aquelas fotos, minha atencessora emitia um brilho desconhecido no olhar. Mesmo que eu não soubesse o significado, sabia que era amor.
E a confirmação daquilo partia o meu coração. Sophie amava-o, mas apesar de ocupar o lugar dela, eu não podia fazer o mesmo com o coração. Aquelas memórias doces estavam todas lá, ao meu alcance, mas não eram minhas. As juras de amor feitas, não eram para mim. Estar naquele corpo, não significava manter o mesmo sentimento. E saber daquilo estava me sufocando.
- Estou com medo, Aisha. - Sussurrei, fechando os olhos para conter as lágrimas que insistiam em rolar pelas bochechas. Quando abri, a mulher de olhos fatigados olhava serenamente para mim.
Ter medo é natural, querida. Significa que você está viva. - Sorrindo, Aisha bagunçava os meus cabelos, pondo uma pequena mecha para trás. Estranhamente, Aisha parecia inalcançável, e no momento em que olhei para baixo, reconheci o vestido amarelo florido que usava, entendendo o motivo para que a mulher parecesse um megazord aos meus olhos. Aquele diálogo fazia parte de uma memória minha, naquele momento, faziam poucos dias que eu havia me mudado para o Castelo. Eu estava escondida, chorando ao lado das roseiras. Aisha havia me encontrado lá depois de horas me procurando.
- Não quero morar com o rei, Aisha. Eu tenho medo que o papai esqueça de mim.
Fique tranquila, querida. Seu pai nunca irá esquecer de você. - Com uma facilidade admirável, Aisha pegou-me no colo, caminhando comigo entre as rosas. Mesmo com os beslicões que eu lhe desferia, chorosa e com vontade de voltar para casa, ela não ousava me soltar. Me diga, criança, você gosta de flores?
Balancei a cabeça, limpando os olhos marejados. Imediatamente pensei em lírios, a flor favorita da minha mãe.
Então, eu quero te apresentar esta: Gerânio. - Apontando para uma sessão de flores exuberantes, em tons de rosa, Aisha continuou. Essas flores, querida, representam a resistência às adversidades. Mesmo na tempestade, ela se mantém de pé. E essa a lição que eu tenho para você: Não há problema algum em ter medo, todos temos. Isso é natural da nossa condição como humanos.
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"Ao lado do medo, há a força. Sempre que pensar em desistir, ou que não é capaz, lembre-se de resistir. Resista, Emilli. Hoje e sempre."
A memória finalizava à medida que o intenso das flores lentamente desaparecia, até retornar ao barulho inquieto de grilos, e a vastidão alva que estava acima de mim.
"Durma, criança, o inverno está longe de chegar
Ao meu te lado, te asseguro, protegida há de estar
No campo de belas rosas, você brinca, criança
A noite, trovões e raios fortes perturbam o seu descanso
Mas não se preocupe, criança, não tenha medo
O velho ancião te protege de qualquer pesadelo."
Lentamente, fechei os olhos, sussurrando a canção de ninar que Aisha cantava para mim. Totalmente entregue à escuridão, sentia os dedos calejados afagarem o meu cabelo, enrolados em pequenas mechas que ora escapavam de seus dedos, apenas para serem recuperados, até que o sono chegasse.
"Durma, criança."
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Hoje não é quarta, mas usamos rosa! Keiko, Kaori e Sophie super fofas em um passeio no shopping, e pouco a pouco podemos perceber que a nossa ex-coadjuvante está se acostumando com o novo mundo. No final, o medo que tudo acabe ameaça estabilidade da nossa mocinha.. O que será que vem no próximo capítulo? Continuem acompanhando, comentando suas teorias nessa história que está só começando. Até a próxima, um xêro!
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