Capítulo 5 - Mais do que os olhos podem ver
— Seja bem vinda! — Anunciou a simpática atendente, assim que ultrapassei a porta. Naquele horário, a padaria estava repleta de pessoas que olhavam esperançosas para a vitrine; ainda assim, a mocinha de mais ou menos 25 anos, com os cabelos presos em um coque que permitia que apenas alguns dos fios de seu cabelo preto saíssem para fora da touca branca que cobria a sua cabeça, se via na obrigação de parar tudo o que estava fazendo para saudar quem chegava. Em outros estabelecimentos, pude perceber o mesmo tratamento, e era gostosa a sensação de acolhimento que eu sentia em cada mínimo detalhe que me faz amar esse lugar.
Agradeci com um pequeno sorriso, logo me juntando a massa de pessoas que se deslocavam pelas banquetas e vitrines repletas de mini amostras do Paraíso. A The Little Bakery era conhecida por seus maravilhosos lattes e acompanhamentos que dificultavam a minha já escassa negativa, diante de doces que enchiam o meu paladar antes mesmo que eu pudesse provar. Parei em uma seção com diversos donuts coloridos, e a cada vez que meus olhos ousavam enfrentar aquelas delícias gastronômicas, podia jurar que via os confetes e os morangos em roda, usando de hipnose para que fizessem parte da minha alimentação do dia.
Estava quase sendo vencida pela máfia açucarada, quando a parte racional da minha mente me lembrava do motivo para estar ali. Suspirei penosamente, saindo da seção de donuts. Não estava ali para aumentar minhas taxas de glicose, que eu julgava estarem preocupantes em apenas 3 meses de estadia nesse corpo, contemplada com a diversidade gastronômica que encontrei nesse mundo. Convenhamos, é muito difícil se manter intacta diante de uma taça de sorvete de morango, com calda de morango, farelo de biscoito, mel e morangos picados em cima. E era mais difícil ainda não ter vontade de devorar aquela taça novamente. Da última vez, Yuina e tia Miya me olhavam incrédulas com a minha rapidez para terminar a segunda taça. Elas precisaram me tirar da sorveteria a força, escutando os meus choramingos por todo o trajeto por não ter provado a edição limitada de biscoitos amanteigados com creme. Talvez, só talvez, minha antecessora não fosse tão fissurada em doces como eu. Sei que tenho que me segurar nesse quesito, mas eu simplesmente travo qualquer barreira racional quando estou diante de qualquer gostosura repleta de açúcares e calorias a mais.
— Você tem alguma recomendação? — Desistindo, recorri a mocinha simpática que olhava a minha confusão facial com um sorriso costumeiro, como se estivesse adaptada à clientes que querem levar a loja inteira. — É que é tudo tão gostoso.. Difícil escolher um só.
— Depende. É um presente para alguém especial? — Balancei a cabeça em negação, corrigindo apenas a última parte. Era um presente sim, mas não chegava a tanto. Digamos apenas que era uma tentativa de ser simpática com alguém que foi tão prestativo comigo, mesmo que em pouquíssimas palavras.
Me guiando até a seção de bolos, a atendente indicava a combinação de chocolate com caramelo. A fatia era adornada com raspas de chocolate, e cubinhos de caramelo, que faziam o meu coração palpitar e a mente esquecer que já havia um destinatário. Antes que as minhas forças se esvaíssem, pedi para que a mocinha embalasse, ato que foi feito gentilmente por ela, finalizando-o com uma fitinha vermelha. É claro que, antes de sair e andar em passos ligeiros ao olhar para o relógio e notar que faltavam menos de 20 minutos para que o primeiro tempo começasse, comprei um donut recheado com creme de morango e confetes avermelhados, além de um matcha latte que me aproximava do céu a cada vez que tomava.
Felizmente, minha corrida me livrou de mais um dia sendo o centro das atenções, dessa vez por estar atrasada. Entrei na sala com 10 minutos de folga, suada e cansada o bastante para que meus batimentos cardíacos ecoasse nos meus ouvidos. Mesmo assim, fingi naturalidade ao olhar para dentro do ambiente e encarar os meus colegas de classe, agora podendo ver nitidamente os seus rostos. As lentes incomodavam um pouquinho no começo, mas não era nada preocupante. Estava prestes a me sentar no lugar de sempre, acenando para Kaori, que devolvia o aceno com o jeito animado de sempre. No entanto, desisti ou melhor, não consegui concluir a ação assim que meus olhos encontraram o alvo dos meus pensamentos, que não paravam de martelar em minha mente desde o incidente passado. Automaticamente, minhas sobrancelhas arquearam-se, e naquele momento, julguei impossível a coincidência que me juntava novamente com aquele garoto. Do outro lado da sala, na carteira do fundo, estava o garoto que havia sido o telespectador de um dos momentos vergonhosos do dia anterior. Aquele garoto de poucas palavras, que eu achava ter que caçar pelo colégio, estava no alcance dos meus olhos, parecendo tão enigmático quanto na primeira vez. Tipo, qual a possibilidade?
— Oi! Bom dia. — Comecei, abrindo um sorriso que ameaçava murchar assim que notei não ser recepcionada da forma que esperava. O olhar dele nem mesmo ousou cruzar-se com o meu. — Eu queria.. Queria te entregar isso. E te agradecer mais uma vez por ter me ajudado ontem.
— Foi mal. — Me fazendo lembrar do tom grave e desinteressado de sua voz, o garoto prosseguiu, mantendo a sua atenção em qualquer coisa que não fosse o meu rosto. — Não gosto de doces.
Um balde de água fria. Murchando o sorriso, e lentamente abaixando a mão, pisquei os olhos algumas vezes para entender que eu havia sido rejeitada. Peraí, ninguém havia ensinado para aquele garoto que não é educado ser tão enfático para rejeitar uma tentativa de agradecimento?
— Ah.. Que pena. O bolo parece estar delicioso. — Revivi o sorriso, tentando parecer simpática. Claramente, não deu certo. — Bom. Eu não esqueci dos fones, tá? Eu não achei que pudesse substituí-los com o bolo, eu só.. Vou comprar outros, prometo.
— Já disse que não precisa. — Não assumiria em voz alta, mas estava genuinamente nervosa com o fato daquele garoto estar falando comigo, mas não estar olhando para mim. Doeria se ele olhasse nos meus olhos como uma pessoa educada? — Estou com os reservas.
— Ah, certo. — Pigarreei, olhando para os lados. — Mesmo assim, não acho certo não repor o que você perdeu por minha causa. — Silenciando-me, esperei por uma réplica que não veio. Meu maxilar doía com a força imposta para manter um sorriso simpático, e após alguns minutos constatando que aquela tentativa de conversa não ia para frente, decidi me retirar, visivelmente constrangida. No entanto, ao me virar, senti uma súbita dor de cabeça, que ameaçava o equilíbrio do meu corpo. Quando fechei os olhos, temendo a queda iminente, senti uma mão ao redor da minha cintura, e o rosto do garoto assustadoramente próximo do meu.
Ofegante, pisquei repetidamente, sentindo ondas elétricas que estranhamente ligavam a minha consciência à outra. Sufocada, me vi diante de paredes negras, cobrindo todo o espaço que meus olhos podiam ver. No fundo daquela sala, alguém chorava copiosamente. À medida que meus olhos encontravam os olhos daquela pessoa, meus pés ameaçaram um passo para trás, traduzindo o horror visto pelas minhas pupilas. Cascatas de sangue, ao invés de lágrimas comuns, transbordavam no rosto daquele garoto. Seu olhar perdido gritava a necessidade de socorro. Os olhos negros me puxavam para o mesmo abismo em que me encontro agora, embebida pela intensidade daquele olhar.
Não sabia o que estava fazendo quando lentamente, levei a ponta dos dedos na direção do rosto do garoto. As imagens de outrora ainda serpenteavam em minha mente confusa, combinando-se com o macabro sonho da noite anterior. O mesmo cabelo longo, os mesmos olhos negros, aquele mesmo rosto. Era ele.
— O quê você está fazendo? — Se afastando, o garoto voltava a se sentar, deixando a minha tentativa de carícia no olhar. Meu corpo formigava, tenso, e a minha cabeça se assemelhava à uma britadeira ambulante. Precisei estabilizar a respiração para sair daquela sensação sufocante.
— Eu não.. Você está bem? — Quis pegar em sua mão, mas me contive. Todas as informações ainda estavam extremamente confusas, e o próprio fato de ter acesso a elas me deixava torpe. Não era possível que meus poderes do passado tenham cruzado a linha que me trouxe da fantasia, a realidade. No entanto, ao pensar em tudo o que acontecera desde que cheguei a esse mundo, não podia descartar a possibilidade. Engoli em seco, pensando nos meus próximos passos se aquilo fosse real.
✾
— Eca. O que você tava fazendo na mesa do Aono? Ele é tão.. — Kaori não terminou a frase, mas a sua careta indicava que não sairia um elogio dos seus lábios. Suspirei, afundando o meu rosto contra o suporte da mesa, fazendo os meus cabelos caírem a frente do meu rosto.
Alisei as têmporas, pensando em como responder. Vez ou outra, olhava com o canto do olho para a mesa do garoto, ainda pensando na estranheza daquele momento e o silêncio pelo restante do tempo em que fiquei em sua carteira, parecendo uma tola ao perguntar se ele estava bem. Sentia um frio na barriga a cada vez que pensava no formigamento sentido com o contato de nossas peles, e aquele frio ameaçava se espalhar com a lembrança das imagens que eu via através dos olhos que exibiam dor.
— Ele me ajudou ontem. — Balbuciei contra a mesa, omitindo maiores detalhes. Elas não precisam saber que quase atravessei uma via movimentada, e que quase perdi minha segunda chance por não estar olhando para ela. — Ele não gosta de mim ou algo do tipo? É a terceira vez que ele é tão.. Direto.
— Ah, ele é esquisito. Do tipo, muito. — Keiko olhou na direção do garoto, desviando o olhar em seguida. — Acho que ele ainda tem mágoa do lance da tatuagem e todo aquele rolo. Mas isso faz tanto tempo.
— Lance da tatuagem? Rolo? — Levantei parcialmente a cabeça, vendo uma massa castanha à minha frente, que poderia ser traduzida como cabelo. Assoprei os fios, abrindo a minha linha de visão.
— É. Você não lembra? — Kaori indagou, olhando para mim com uma sobrancelha arqueada. Certamente ao analisar a minha expressão, que não poderia estar mais perdida naquele assunto, a loira prosseguiu. — Ah, foi logo no início do primeiro ano. Acho que você confundiu os banheiros no final da aula de Educação Física, e acabou flagrando o Aono sem a camisa ou algo assim. Era um mistério o motivo dele vir para a escola sempre com o uniforme de inverno, mesmo quando o tempo estava super quente. Quando você viu que era por causa das tatuagens, mandou uma foto para o nosso grupinho e pra gente o mistério tava revelado. Mas, o idiota do Kentin inventou de compartilhar a foto com o pessoal do basquete, e depois o pessoal do basquete compartilhou com a escola inteira. Essa fofoca chegou na direção, e ele quase foi expulso. Acho que o pai dele veio resolver a situação dele e não sei, isso pode ter afetado a relação deles. Já ouvi dizer que ele não se dá muito bem com o pai.
— Mas isso foi uma brincadeira, né? — Keiko interveio, abanando as mãos. — Sei lá, tudo ficou bem. Por quê guardar mágoa da gente até hoje?
Não respondi. Em vez disso, senti um bolo amargo se formar no meu estômago, e lentamente ameaçar subir até a garganta. Me sentia mal por ter forçado uma aproximação, sem saber o quanto minha presença ao seu lado ainda podia machucá-lo. Sentia a culpa latente no peito, mesmo que esse acontecimento tenha acontecido antes da minha chegada, ainda era uma bagagem que eu tinha que carregar. Suspirei ao pensar na ideia de não mudar nada da “minha” vida anterior, no tempo em que permanecesse aqui. No entanto, ao saber daquela história, não sabia se era certo fingir que nada aconteceu. Sentia em algum ponto profundo do meu corpo, que aquilo precisava ser mudado.
Ao longo da aula de Ciências sociais, meu olhar cruzava a sala, para encontrar os cabelos pretos que por vezes ousavam entrar na linha de visão do garoto. Com o indicador, ele colocava uma mecha atrás de sua orelha, e a cada vez que ele mexia em seus fios, podia ver alguns fios tingidos de loiro, escondidos atrás da maioria. Em todas as vezes que olhei, o olhar dele permaneceu pétreo, como se tudo ao redor não importasse. Na quinta vez, precisei olhar para frente novamente, ou teria sérios riscos de levar uma bronca do sensei.
— O sensei nos deixou terminar a aula 10 minutos mais cedo, para que o representante de classe seja escolhido. — À frente da turma, uma garota de cabelo repicado chamava a nossa atenção, enquanto traçava uma linha no quadro. De um lado, seria feita a votação para a representante feminina, e do outro, a masculina. — Vamos começar com as meninas. Alguém se candidata?
— Eu. — Antes que a garota pudesse terminar de falar, uma silhueta se apresentava, levantando-se. Olhando para os lados, e principalmente para mim, prosseguiu. — Acho que a nova representante tem que ser alguém que não apresente riscos a turma. Alguém que não se abale facilmente.
No início, não percebi que a indireta havia sido pra mim, que me mantive quieta desde então. Foi só quando Kaori apertou o meu braço, me perguntando entre-lábios se eu não defenderia o meu posto, que pude perceber que aquilo era uma afronta pessoal.
Kobayashi Mizuki era o tipo de garota perfeita para ocupar o espaço que em tempos passados era ocupado por Lavenne Granzia. Suas mãos, ancoradas nas laterais da cintura e os lábios curvados em um sorrisinho com altas doses de ironia, eram semelhantes aos que eu recebia da donzela mais comentada de Thornfall. Garotas como Kobayashi e Granzia são mestres em passar por cima de quem quer que seja necessário para alcançar seus objetivos. Dessa vez, não vou perder.
— Discordo da minha colega Kobayashi. — Impetuosa, me levantei, chamando a atenção de todos para mim. Chega de me esconder, chega de me achar incapaz. Se estou nesse jogo, se recebi outra chance, é pra vencer. Mantive os meus pensamentos no tom da minha voz, prosseguindo. — Todos aqui sabem os resultados dos últimos dois anos em que estive à frente da turma. Nunca houve nenhuma reclamação dos professores, nem do Conselho da escola, que aliás, sempre fazia questão de me parabenizar a cada evento ou apresentação que preparávamos. Nesse último ano, nossas responsabilidades serão maiores, e eu prometo, como representante de turma, dar o meu máximo para manter a eficiência que nos rende tantos elogios, em todas elas.
Enquanto Kaori e Keiko davam gritinhos silenciosos em aprovação, ousei olhar para a minha rival, que não podia estar mais vermelha de raiva, diante das minhas palavras certeiras. Kobayashi até tentou abrir os lábios para rebater, mas naquela altura, a votação já havia começado. E com a maioria dos votos, fui eleita a representante da turma 3-A.
Tudo bem, estava nervosa. Por dentro, podia sentir o sangue cristalizado, e tremores que ultrapassavam as minhas pernas. Por trás dos sorrisos e agradecimentos, escondia as minhas incertezas. No entanto, não podia mais abrir espaço para aquele lado de mim que não tinha mais espaço no papel que ocupava. A partir daquele momento e dos outros que seguiriam, seria decidida e confiante. Ou ao menos tentaria ser.
— ...E agora, o representante masculino. Alguém se candidata?
Diferente da votação feminina, a masculina não poderia ter sido mais sem graça. Sasaki Hitohito foi o único que levantou a mão, sendo o escolhido sem mesmo precisar de votação.
✾
— Finalmente, hora da comida. — Guardando nossas coisas, Keiko, Kaori e eu nos encaminhamos para o pátio, onde compraríamos suco. Depois que apertei alguns botões e esperei que a maquininha liberasse a bebida, voltei-me para elas, juntando as mãos para pedir que elas fossem à apresentação comigo.
— Vai ser legal! Vocês nem sabem como vai ser..
— O Tanaka é maluco! — Kaori se afastou assim que pegou o suco, vendo que havia apertado o botão errado. — Eca, é de ameixa. Alguém quer?
Meus olhos brilharam com a menção ao sabor, e enquanto trocava o meu suco com ela, suspirei pesadamente. Na noite anterior, antes que o sonho tomasse a minha atenção, pensei muito sobre a proposta de ingressar no clube de teatro. Desde que tive contato com as coisas deste mundo, achei incrível a possibilidade de poder interpretar vários papéis, e achava mágico a facilidade que os atores tinham de agir como outra pessoa. Eu acho que, até agora, tirando toda a confusão do primeiro dia de aula e algumas gafes que ainda cometia, estava lidando com tudo isso de uma forma melhor do que esperava. No entanto, o teatro seria ótimo para que eu pudesse agir com mais naturalidade, além de estar fazendo algo que passou a entrar na minha lista de gostos. Seria como matar dois coelhos numa cajadada só.
— Estou indo. Depois não me perguntem como foi.. — Sibilei, me despedindo. Kaori e Keiko acenaram, me deixando para trás.
— Eu nem ia perguntar mesmo.. — A loira mais desbocada rebateu, estalando os lábios. Abri um sorriso, pensando que ter duas amigas que às vezes pegavam no meu pé, não era tão ruim assim. Olhando para trás, tirando Victor, não tinha nenhuma referência que fosse semelhante.
Me sentei em uma das cadeiras disponíveis, na sala do clube de teatro. O espaço era grande e estava repleto de caixas com figurinos, tecidos e perucas. Tanaka, aquele que havia me convidado, estava no centro do palco, usando um vestido de babados, e com uma peruca loira que chegava até o seu pescoço.
Além de mim, algumas pessoas ocupavam as cadeiras, todas parecendo ser calouras. Acho que se não fosse o meu desmaio em público, nem teria sido convidada. Mas já que estava ali, resolvi aproveitar.
A peça era sobre uma mulher que havia recebido uma visita de um anjo que anunciava a sua morte. Uma semana antes, a mulher havia ganhado na loteria, e todo o desenrolar da peça era focado no pouco tempo que ela tinha para aproveitar a vida com o dinheiro que havia ganhado. Havia toda uma crítica envolvida no fato de ganhar o dinheiro e se divertir com aquilo, mas aquele mesmo dinheiro não poder lhe proporcionar mais tempo de vida. A peça terminou com um arrepiante monólogo de Tanaka, que fazia o papel da mulher, e a sua “morte” no meio de todo aquele dinheiro que outrora era o motivo da sua alegria.
Quando a peça terminou, me levantei junto com os outros para aplaudir. Tanaka havia atuado tão bem que até mesmo ensaiou algumas lágrimas nos meus olhos, e ali, naquele momento, se eu ainda não tinha certeza que queria fazer aquilo, ao ver o garoto e toda a versatilidade que o teatro proporcionava, era aquilo que eu queria pra mim.
— Que bom que você veio! — Tanaka sorriu, se aproximando ao me ver. — O que achou?
— Foi.. foi incrível! — Respondi, empolgada. — Eu pude sentir todo o desespero da mulher, e fiquei desesperada com ela.. Foi mágico.
— Bem vinda a doce emoção do teatro. — Piscando, o garoto prosseguiu. — E então, pronta pra brilhar nesse palco?
Balancei a cabeça em afirmação, ansiosa para começar. No restante do dia, aquela sensação inebriante ainda ecoava em meus sentidos, e até mesmo quando cheguei em casa, horas depois, ainda me sentia imersa em toda a emoção que senti naqueles 45 minutos em que estive naquela sala, que poderia ser confundida com um portal para um novo mundo, o qual eu não me cansaria de atravessar.
— Como foi a escola hoje? — Perguntava Hanako enquanto lavava a louça do jantar. Ao seu lado, a ajudava secando os utensílios. Yuina e tia Miya estavam na sala, conversando sobre algum assunto que elas viam na TV. — Está se sentindo bem lá?
— Uhum. — Balancei a cabeça, esquecendo por um segundo que ela estava ocupada com a louça. Em seguida, confirmei verbalmente. — Está tudo bem por lá. Hoje teve uma votação para representante de classe e.. eu fui eleita mais uma vez.
— É mesmo? — Parando por um segundo, Hanako levantou os olhos para me olhar. Quando retribui, pude ver seus olhos cansados, mas que por mim e Yuina, se forçavam em parecer alegres. — Fico feliz por você, querida.
— Mãe. — Chamando a atenção, esperei que ela me entregasse a última tigela e a sequei, guardando em seguida. — Quando a senhora vai voltar para o escritório? Tia Miya e eu damos conta de tudo por aqui, a senhora não precisa se forçar tanto.
Suspirando, a mulher de cabelos presos no alto da cabeça se virou para mim, analisando os meus traços. Nossos olhos eram iguais, arredondados e marcantes, e eu adorava essa parte que era uma mistura dela.
— É claro que eu sei que você pode se virar sozinha, e a Miyako está sendo de grande ajuda com a Yuina mas.. Eu ainda não consigo. Tudo naquele lugar me lembra o seu pai. — Secando o canto dos olhos com a palma da mão, ela continuou, depois de ter certeza que a voz não saísse embargada. — A caneta que ele adorava usar.. O computador em que ele acompanhava os casos.. A forma como trabalhávamos juntos, dividindo os argumentos e a defesa.. Seu pai era ótimo nisso. Sem ele eu.. não sei se vou conseguir.
Levei o indicador de forma gentil até uma lágrima salgada que escorregava dos olhos castanho-escuro, balançando a cabeça como se dissesse que entendia. Richard fazia falta em cada canto daquela casa e mesmo que eu não tivesse chegado a conhecê-lo de forma propriamente dita, podia sentir um aperto no peito a cada vez que compartilhava a saudade com Hanako e Yuina.
— Eu tenho certeza que você também é uma advogada incrível. — A puxando para um abraço, deixei que o meu rosto pousasse em seu ombro. No começo, estranhei a ideia de ter uma família. Nem mesmo sabia se merecia ter uma. No passado, aceitei que nunca teria o carinho que eu desejava internamente. Todas as noites, imaginei como seria dormir embalada pelas carícias da minha mãe. Eu não podia traduzir em palavras o quanto o abraço de Hanako era aconchegante, e o quanto eu esperei para ser abraçada daquela forma. Desde o início, estar naquela família era como estar em um sonho no qual eu tinha medo de acordar. — E vou estar aqui para te apoiar em qualquer decisão que tomar. Só não quero que faça tudo sozinha, ok? Deixe sua filha te mimar um pouquinho as vezes.
— Ai, garota.. Você não existe mesmo. — Limpando as lágrimas, minha mãe retribuia o meu abraço, e não sei dizer por quanto tempo ficamos assim. Yuina nos pegou no meio do abraço e se juntou a nós, seguida pela tia Miya que inflava as bochechas por ter ficado de fora. Até que o ar faltasse para todas nós, ficamos naquele emaranhado de abraços e sentimentos de carinho. Sorrindo, desejei de forma egoísta que aquele momento nunca acabasse, e que eu sempre estivesse no alcance do abraço da minha nova família.
✾
A escola estava mais agitada do que o normal no dia seguinte, se é que havia a possibilidade. Por todo o corredor e em qualquer canto onde estivesse mais que uma pessoa, o assunto era o mesmo: a festa de boas vindas que aconteceria no final de semana.
— Parece que as pessoas estão mais animadas que o normal hoje.. Aconteceu alguma coisa? — Enquanto tirava a mochila das minhas costas, me sentei de costas para o quadro, cumprimentando as meninas.
— Você esqueceu? — Kaori estava me perguntando isso tantas vezes na semana, que ela nem mesmo esperava mais pela minha resposta. Compartilhando da animação dos outros alunos, continuou. — A festa de boas vindas da Hachi! E como todo ano, todas as turmas de 3° ano serão os anfitriões. Mal posso esperar para arrasar nessa festa.
Assenti, tentando pegar um pouco da animação que escorria dos poros da loira, mas as festas pra mim eram sinônimos de ter que me esconder para não ser vista e em hipótese nenhuma causar problemas. No entanto, isso era antes de reencarnar como uma garota que arranca suspiros só por existir. Era a minha obrigação fazer de tudo para que essa festa fosse memorável. Não queria ser odiada caso Sophie retornasse ao seu corpo, e ganhasse uma dolorosa lembrança de sua última festa colegial.
Nossa turma teria a tarefa de divulgação, entre várias que foram divididas entre as outras classes. Por sorteio, metade da turma foi escolhida para entregar em dupla, cards de divulgação para as turmas de 1° e 2° ano, enquanto a outra contribuiria com as redes sociais da escola. Meu nome foi escolhido faltando apenas duas pessoas para completar o time de divulgação presencial. A outra, e que seria a minha dupla, não poderia ser ninguém mais ninguém menos que Aono Sousuke.
Sério isso, universo?
Abri um sorriso que poderia ser traduzido como um pedido de socorro, à medida que seguia com o garoto para a sala do Conselho Estudantil, onde deveríamos pegar os cards. Aquele silêncio beirava ao constrangimento, mas não ousei acabar com ele, julgando o histórico nada legal que nos separava. Por vezes, desviei os olhos para os traços notáveis de seu rosto, a sobrancelha grossa e os lábios sempre em linha reta, como se nunca se curvassem em um sorriso. Conforme ele andava, seu cabelo comprido batia em seu pescoço, balançando de um lado para o outro em vida própria.
— Bom dia! — Anunciei, quando vi que Aono não o faria. — A gente veio pegar os cards.
— Ah, fiquem à vontade. — Uma garota de cabelo acobreado nos recebeu, sorrindo antes de voltar para os papéis que anteriormente eram o foco de sua atenção. — Eles estão naquela caixa.
Segui a orientação, abrindo a caixa para retirar os papéis impressos com tinta colorida. Os dizeres convidavam os alunos para a festa que seria neste sábado, além dos horários e outras informações para os pais. Agradeci antes de sair da aconchegante sala do conselho, seguindo com o garoto para a nossa primeira missão.
— Eu entrego os papéis e você fala, tá? — Com um tom que mais pareceu um informe do que uma sugestão, por saber que ele não daria outra, segui na frente e esperei que o sensei nos desse 5 minutos da sua aula. Quando nos foi permitido, entrei, evitando olhar a massa de olhos curiosos que esperavam por alguma palavra nossa. Antes que meu corpo ousasse sucumbir mais uma vez, entrei no modo garota-decidida-e-que-nada-a-abala, abrindo um sorriso e distribuindo os papéis para cada aluno, esperando que Aono fizesse a sua parte.
— Como vocês estão vendo, neste sábado terá uma festa para recepcionar os calouros. Não preciso explicar muito, além de dizer que vai ter dança, música, garotas competindo o título de “quem vai estar mais exageradamente maquiada e extremamente colorida”, e garotos que irão aproveitar a oportunidade para aumentar o número pessoal de conquistas. A atração contará com diversas pessoas vazias que ocuparão o seu tempo tendo interações igualmente vazias. Boa diversão para quem for.
Piscando os olhos, parei com os dedos no ar assim que as palavras do garoto fizeram sentido nos meus ouvidos. Não precisava olhar para o sensei e nem para nenhum dos alunos para saber que todos estavam com os olhos arregalados, em pura expressão de surpresa. Ao olhar para Aono, diferente do que imaginei, o garoto parecia consciente do que havia feito e o mais chocante, não parecia incomodado com isso. Seus olhos soturnos indicavam que ele não podia estar mais desinteressado em estar ali, enquanto os meus estavam em uma mistura de incredulidade e pânico, se recusando a acreditar.
— Você ficou maluco!? — Indaguei assim que tentei contornar a situação, com uma risada nervosa. Naquele momento, estávamos fora da sala, enquanto o assunto dentro dela certamente era a forma direta na qual aquele veterano se dirigia.
— O quê? — Coçando a nuca, o garoto bocejava, olhando para os lados. Será que ele realmente não entendia o que havia acabado de fazer?
— Você não pode dizer essas coisas!
— E por quê não? Não é disso que são feitas as festas? — Ele estava irritantemente despreocupado. E isso estava me irritando.
— Não.. Não é assim! — Argumentei, mesmo tendo zero noção de como eram as festas naquele lugar. Não deveria ser igual a um baile real, apesar de não se diferenciar do modo como ele as descreveu.
—É hilário uma garota como você tentar me provar o contrário. — Pela primeira vez, o garoto abria um sorrisinho, mesmo que fosse totalmente irônico e com pura intenção de gozar da minha cara.
— Uma garota como eu? Como assim, uma garota como eu? — Colocando as mãos na cintura, o encarei com as duas sobrancelhas erguidas. Ele era alguns centímetros mais alto do que eu, ainda assim, minha postura era de igual para igual.
— Por quanto tempo você vai ficar com algo que não está confortável? — Estreitando os olhos, o garoto com a manga do blazer cobrindo os dois pulsos, - e agora eu sabia o motivo. - olhava para um ponto em específico do meu corpo, indagando de forma estalada.
— O quê? — Indaguei, expressando no olhar que eu ainda não acompanhava a sua troca de assunto.
— O colar. — Ele respondeu, relaxando os ombros. Já havia dito que ele me olhava como se eu fosse uma formiguinha? — Eu percebi que às vezes você toca nele, e ontem você não parecia muito confortável usando. Eu acho que você não deve se sentir obrigada a usar algo só porque é um presente do seu namorado. Principalmente quando esse “presente” mais tem a intenção de te marcar como posse, do que realmente presentear.
— Não.. não mude de assunto! Eu não estou desconfortável. — Sibilei, encolhendo o meu corpo, e por reflexo pus as mãos no colar. Eu não havia percebido que estava mexendo nele, nem a expressão que eu fazia quando o tocava. Aquilo deveria ser uma tentativa de mudar o assunto atual, não era possível que um garoto tão desinteressado como ele prestasse atenção em mínimos detalhes, ainda mais de alguém que ele detestava. — E só pra você saber, eu estou muito feliz com o meu presente. Não preciso de conselhos como o seu para saber como me sentir em relação a ele.
— Se você diz.. — Abanando as mãos, o garoto exibia uma expressão cética. — Então a minha opinião sobre a festa de hoje não está tão errada assim.
— O que o meu relacionamento tem a ver com.. Quer saber? — Suspirei, deixando a chateação vir à tona. Tá, eu estava errada. Ok, ele podia ter suas razões para me odiar. Mas sendo Sophie ou Emilli, estava cansada de aguentar coisas que estavam à ponto de transbordar. — Eu não sei por que eu estou perdendo o meu tempo tentando ser legal com alguém que claramente não tem intenção de fazer o mesmo. Você tem essa pose de senhor sabe tudo, mas aposto que na verdade você não passa de um garoto acuado pelas próprias barreiras que impõe a si mesmo. O seu desinteresse não me assusta e nem vai fazer com que eu recue, não quer fazer a divulgação? Ok, azar o seu. Só não torne isso mais difícil para nós dois, porque eu não vou ficar calada. — Terminei, parecendo que uma bola de pêlo havia saído da minha garganta. Ao despejar a minha chateação para fora, arregalei os olhos, surpresa comigo mesma por tê-lo feito. Apesar de ter certeza que havia sido ríspida demais, não voltaria atrás do que havia dito.
Aono piscou os olhos assim que o silêncio se instaurou entre nós dois, e naquele momento, as palavras proferidas se assemelhavam a pregos, afiados o suficiente para deixar a minha garganta estilhaçada assim que me calei. Eu estava suada, vermelha, e nervosa. Toda a tensão balançava os meus cabelos à la Medusa, e com o prosseguimento do silêncio, começava a cair a ficha de ter ido longe demais. Havia algo em comum com as minhas duas versões: ambas eram teimosas o bastante para voltar atrás do que tinha feito.
— E você acha que eu devo te agradecer pela sua tentativa de ser legal? — Apesar de rebater, a voz do garoto soava cansada, como se não quisesse mais se aprofundar na discussão. Suspirando, ele se virou, ficando de costas para mim. — Não preciso que se force a interagir comigo. Vamos apenas.. acabar com isso de uma vez.
Assenti, abaixando a cabeça depois do clima péssimo que havia ficado entre nós dois. Enquanto caminhávamos na direção da próxima sala, toquei novamente no colar, exatamente no pingente que reluzia e me perguntei se Aono estava blefando. Nos últimos dois dias em que estive com o objeto, tentei apagar qualquer opinião que fosse contrária a de uma adolescente apaixonada. Eu não podia deixar que as minhas percepções passadas atrapalhasse o presente.
— Sophie! — Ao longe, escutei uma voz conhecida e que atualmente era a razão das minhas dúvidas. Virando-me, encontrei Kentin, com seu sorriso repleto de dentes, repleto de intenções que conflitavam com o meu coração.
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Oioi cerejinhas!! Nossa, quanta coisa aconteceu nesse capítulo, né? Tivemos desde Emilli tentando se aproximar do Aono, até uma importante revelação e a discussão dos dois nesse final.. Sei não, mas algo me diz que esses acontecimentos ainda vão render muito! Continuem acompanhando os próximos capítulos e comentando o que vocês acham que pode acontecer. No mais, até a próxima! Um xêro sz.
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