Capítulo 29 - Um pequeno final
Não é fácil curar um coração partido. Tampouco esquecer sentimentos deixados para trás. As cigarras cantavam preguiçosamente, as folhas das árvores se balançavam e o ar da província tranquila me recebeu, envolvendo os meus cabelos em um movimento suave. Mas nada daquele cenário mágico me fazia sair do estado de tristeza em que me encontrava.
No dia seguinte ao fatídico dia em que despedacei o coração daquele que eu amava, viajei junto com mamãe, Yuina e Tia Miya para Fukuoka, onde morava minha avó materna. Desde então, fazia uma semana que eu estava aqui, cercada pelo verde e pelo cenário tranquilizador, retirado de um filme do Studio Ghibli.
E ver esse cenário maravilhoso e não ter com quem compartilhar era o que mais me doía. Quando a noite caiu e o céu abrigou as estrelas, que brilhavam livremente sem o impedimento das luzes da cidade, meu celular captou a luminosidade delas. No primeiro dia, busquei o contato de Aono, indecisa sobre a vontade de enviar ou não enviar, mas não precisei quebrar tanto a cabeça. Meu contato estava bloqueado.
Senti as lágrimas rolarem pelas minhas bochechas, encarando a foto de perfil vazia. As conversas antigas me receberam com um acalento triste, risadas, fotos da Nyakko e um passado que ameaçava não voltar mais. Aono também havia saído do grupo com o quinteto, e apesar de sempre ter os meus amigos para compartilhar detalhes da viagem, principalmente as gêmeas curiosas - que me intimaram a enviar atualizações diárias -, não era a mesma coisa. Ele não estava lá.
- Sophie, querida, já está pronta? Não podemos chegar atrasadas no templo.
Assenti e encarei o meu reflexo no espelho. Com a época de festivais, era comum que os moradores do bairro da vovó se reunissem em celebrações destinadas ao Deus da Chuva. Todo ano, uma jovem era escolhida para ser a sacerdotisa responsável por dançar em agradecimento às proteções alcançadas, e esse ano, mesmo após muitos pedidos meus para que a matriarca repensasse a escolha, vovó me escolheu.
Após a briga com Aono e o "rompimento" da nossa amizade, passei a me sentir culpada e retomar sentimentos que parte do meu coração já havia aterrado. Se eu não estivesse ali... Se não tivesse tomado o lugar de Sophie, as pessoas não sofreriam. O namoro com Kentin não estaria ameaçado. Aono conseguiria encontrar a fagulha da vida ao se envolver com Kana. Ele não precisava de mim. Ninguém precisava.
- Sophie, querida, você está... Linda. - Hanako sorriu ao olhar para a composição de roupas que eu usava. Vovó havia sido bastante rigorosa em relação às vestes tradicionais, não abrindo mão de nenhuma peça. Ao encarar o espelho, me vi vestida como uma verdadeira sacerdotisa, com um hakama¹ de cor vermelha, hakamashita branco e fitas da mesma cor que prendiam o meu cabelo. Meus olhos haviam sido pintados com sombra clara, e os lábios em um tom de vermelho-rosado. Encarando o reflexo de Hanako, que me olhava como uma mãe orgulhosa olha a sua filha, senti o quão doloroso era estar tomando o lugar de outra pessoa.
O céu estava estrelado e refletido no caminho de pedras que me levou até o centro do santuário. Em meus ouvidos, habitava a música suave que envolveu as minhas mãos ocupadas com sinos. Meu corpo se moveu suavemente, seguindo o ritmo da melodia doce que me apresentou aos moradores que observavam a neta de Ichikawa.
Os sinos aumentaram a melodia conforme meus braços se moveram em sincronia com meus pés. Rodei e deslizei, efetuando os passos com perfeição para o pouco que eu havia treinado naquela semana. Mas não eram os ensaios que me moviam. Era a tristeza.
Dançando para o Deus da Chuva, eu estava dançando para mim mesma. Despejei minhas mágoas em forma de súplicas que desaguavam naquela dança melódica e solitária. Sem perceber, com os olhos fechados e totalmente entregue ao momento, senti as pálpebras molhadas anunciarem um choro silencioso que guardei só pra mim, agraciada com a meia luz que as lanternas embutidas proporcionaram.
Os moradores perplexos, quando a execução teve fim, cochichavam entre si que eles tinham um vislumbre da própria deusa, tão compenetrada e misteriosa. Mas não escutei os seus elogios ou os respondi, segurando na barra do hakama e correndo assim que a melodia terminou.
Encostei em uma pedra, sentindo a necessidade de respirar. O único som ouvido era o da fonte de água que corria livremente, saindo de uma estátua.
- Por quê tudo tem que ser sempre tão difícil? - Choraminguei, olhando para as estrelas. Mas elas não possuíam respostas, brilhando em uma altura que não era possível alcançar.
❁
O outro dia começou como todos os outros, com a luz do sol entrando pela janela do quarto que eu dividia com Yuina e nossa prima, Himari. Bocejando, me levantei do futon, caminhando lentamente até a cozinha, onde estava reunida a família.
- Até que enfim a dorminhoca acordou. - Tia Miya brincava, servindo-se. - Aya, vai querer peixe?
Ayako, minha terceira tia, irmã de Hanako e Miyako, assentiu do outro lado da cozinha. Além dela, estavam no cômodo Himari, sua filha, Tia Miya e minha mãe. Coçando os olhos, busquei permanecer acordada.
- Dorminhoca? Mas que horas são?
- Já passam das 10h. - Dessa vez foi Hanako quem respondeu. - Sua avó quer vê-la. Descanse o corpo e vá tomar um banho.
Assenti, refazendo o caminho até o quarto para pegar roupas limpas. Enquanto eu escolhia, ouvi a vibração do celular, e não demorei para pegá-lo com um sorriso esperançoso. Mas o sorriso diminuiu progressivamente conforme eu li as mensagens que chegavam.
(10:45) Ken ❤: Como está a viagem?
(10:46) Ken ❤: Sinto sua falta, não quero ficar estranho com você.
(10:48) Ken ❤: Sei que desculpas não se pedem por mensagem, mas... Me perdoa, Sophie. Eu te amo. Você sabe disso.
Desliguei o celular, não querendo ver as próximas. Kentin havia tentado aproximações ao longo daquela semana, ao passo que só respondia com mensagens curtas. Não sabia como agir com ele, agora que todo o castelo frágil em que eu me sustentava ameaçava ruir.
Era costume na família Ichikawa reservar um tempo com a matriarca para contar-lhe o que havia se passado entre um ano e outro. Yuina havia sido a primeira, mal tendo conseguido pregar o olho para contar todas as novidades para a vovó. Himari havia sido a segunda, e o seu rosto aborrecido mostrou que a conversa não havia sido das melhores.
- A vovó está te chamando. - Avisou ela. - Cuidado, ela está um saco hoje.
- Comigo ela foi super legal. - Comentou Yuina, saltitante.
- É por quê você é a preferida!
Engolindo em seco, sai de fininho antes que as garotas me puxassem para aquele início de confusão. Vovó me esperava em uma sala reservada, sentada sobre o zabuton².
- Baa-sama. - Dei um passo à frente, me curvando.
Permaneci naquela posição, sentindo as palmas das mãos suarem. Ichikawa Saki era conhecida por ser uma mulher muito rigorosa, e sua aparência impecável não deixava os boatos mentirem. A mulher de rosto severo se aproximou, passando por mim.
- Nossa conversa será no jardim. - E isso foi tudo. Acompanhando-a, senti as batidas do meu coração se agitarem a cada passo que dava na direção do nosso encontro.
O sol brilhou no céu e iluminou as folhas rasteiras que guiavam o nosso caminho. O verde era o personagem principal daquele cenário, mas outras cores também podiam ser vistas, como o rosa das flores que ainda despontavam na forma de pequenos brotos, o amarelo das pétalas de flores já desenvolvidas, e das abelhas que a circulavam. O azul das pequenas borboletas que tocavam o meu nariz, para se afastarem, seguindo o seu destino. E o prateado da fonte que distribuía a água por um canal que circulava toda a área do jardim.
- Paramos aqui. - A senhora avisou, sem me encarar. Assenti e me coloquei ao seu lado.
Por um tempo, tudo o que se podia escutar entre nós vinha da água e dos insetos que rodeavam as flores. Após 10 minutos de silenciosa reflexão, Saki iniciou o diálogo:
- Acredito que seu ano tenha começado difícil.
- Sim. - Murmurei, lembrando-me do coma e de toda a dificuldade do início.
- A perda do seu pai deve ter lhe doído muito. Além do tempo que passou naquele hospital.
- Sim.
- Ele era um bom homem, o seu pai. Tive certa antipatia por ele no começo, mas não posso negar que Richard foi bom com Hanako até o último dia de sua vida. Minha filha seguiu o caminho que achou certo, e viveu feliz com o homem que escolheu, pelo tempo que lhes foi permitido.
Balancei a cabeça em silêncio. Naquele momento, aquela culpa amarga voltou a me assombrar, fazendo-me odiar o destino que havia me colocado ali.
- No entanto, sei que nada do que eu disser referente ao seu pai, ou ao seu passado, será de acordo com a pessoa que você é hoje. Não tenho ciência dos fatos, mas sei que você não é a Sophie que eu conheço.
Saki terminou a frase me encarando diretamente pela primeira vez em todo o diálogo, e ela pôde captar o meu choque ao encará-la com os olhos arregalados. Pálida, abri e fechei os lábios, tomando forças para falar.
- Não sei do que a...---
- Não minta pra mim, querida. - Pediu Saki com um pequeno sorriso no rosto. - Consigo ver através das suas palavras. Sei de todo o sofrimento que carrega por todos esses meses, inserida em uma vida que não lhe pertence. Consigo ver a sua dor.
Saki tomou as minhas mãos geladas, fechando as mãos dela sobre as minhas. E tomada por uma sensação que eu não sabia explicar, assenti, deixando a barreira que ergui durante todo esse tempo desmoronar aos meus pés.
- Sim... - Comecei, liberando lágrimas que vinham com o sentimento de tristeza que me envolveu. Mas além deste, havia outro, mais avassalador. O sentimento de estar liberta. - É tudo tão difícil... Vovó...
- Eu sei, minha querida, eu sei. - Vovó me abrigou em seus braços e recebeu minhas lágrimas. - Não precisa me dizer como isso aconteceu se não quiser, afinal toda garota tem um segredo ou dois. Mas diga para a sua vó o que lhe aflige tanto.
- Eu... eu perdi ele pra sempre, vó... Não consigo... Não posso escolher outro caminho... Não posso fazer isso com a Sophie de antes...
- Oh, minha doce menina... - Saki limpou as minhas lágrimas e segurou o meu rosto com ternura. - Quem lhe disse que não é livre para escolher o caminho que quiser?
- Se eu mudar tudo... Se o destino mudar...
- Nada nessa vida é eterno, por mais que sempre buscamos formas de estender nossas relações, nossas lembranças, nossas próprias vidas... Mudanças nem sempre são ruins. Às vezes, mudar é necessário.
Saki continuou e encarou os meus lábios chorosos:
- Veja aquela borboleta. Um dia, aquele animal exuberante que está diante dos nossos olhos já foi uma lagarta. Apesar da modificação em seu corpo, sua essência é a mesma. E o broto que dá lugar a uma linda flor? Perde o seu passado quando habita uma nova posição? A mesma coisa acontece com nós, seres humanos. Evoluímos de bebês para crianças, mas não perdemos nossa essência. Ao entrar na vida adulta, os passos que nos trouxeram até aqui são dispensados? Somos e estamos em constantes evoluções. No entanto, uma "atualização" em nosso sistema não apaga as outras que nos ajudaram a ser quem somos hoje. Todas as experiências nos ajudam a evoluir.
As cigarras cantaram, misturando-se ao chiado das abelhas. E diante daquele cenário acolhedor, Saki prosseguiu.
- Há dezenas, milhares de variações da mesma escolha. É uma possibilidade a Sophie de amanhã se arrepender das escolhas da Sophie de hoje, mas não é uma certeza. Assim como há a chance da Sophie de hoje ser a mesma que a Sophie de amanhã. Não se martirize por fatos que não estão em sua alçada, querida. Apesar de sermos seres evolutivos, ainda não temos o poder de ditar o tempo.
- Então a senhora está dizendo que tudo bem... Viver por mim mesma? Mesmo que isso machuque a Sophie de amanhã?
- Estou lhe dizendo para que viva sem preocupações. A certeza do futuro é um companheiro perigoso. Deixe que o presente, e suas escolhas baseadas nas suas experiências de hoje a guiem.
- Mas... Temo ser tarde demais... - Choraminguei, afundando o rosto no tecido encharcado. Saki afagou a minha cabeça, rindo consigo mesma.
- Querida, não me escutou dizer que não ditamos o tempo? Nada é tardio quando o fio da vida pode consertar.
Assenti e enxuguei as lágrimas. A conversa com a minha avó, que enxergou através do meu segredo, retirou uma película dos meus olhos e do meu coração.
- Como foi a conversa com a vovó? - Himari e Yuina perguntaram ao mesmo tempo, compartilhando a curiosidade.
- Segredo. - Sorri, com os olhos cheios de lágrimas e uma sensação aquecida no coração.
❁
Em família, fomos para o Festival, trajadas com os yukatas antigos da vovó. O único homem do passeio, Kaito, marido de Tia Aya, nos acompanhou olhando feio para cada garoto que interagiu com Himari.
- Pai! Você tá me fazendo passar vergonha! - A garota gritou, andando em passos rápidos. Yuina a seguiu, incapaz de ficar desgrudada da prima.
- Vá com elas, Sophie. - Tia Miya me cutucou, enquanto Aya segurava o marido chorão. - As crianças devem se divertir longe dos adultos.
Olhei para Hanako, que assentiu, indicando que eu seguisse as meninas. Acenei e corri atrás delas, as encontrando na barraca de maçã do amor.
Ao me aproximar da barraca, enquanto as meninas faziam o pedido, deixei as lembranças vagarem, pousando no dia em que fui ao Festival com os meus amigos. Muitos momentos faziam aquele dia ser fonte de ótimas lembranças, mas a minha mente traiçoeira vislumbrou as minhas mãos ligadas às mãos de Aono, nossos sorrisos e olhares compartilhados.
- Eeei, Terra para a Soso.
Pisquei, retornando para a realidade e notando uma maçã do amor erguida na minha direção. Agradeci, provando a calda açucarada.
- A gente estava dizendo que você é muito sortuda, Sophie. - Himari resmungou, caminhando ao nosso lado. - A mamãe não larga do meu pé. Já a Tia Hana até deixa você namorar.
- Acho que é porque eu sou mais velha que vocês. - Brinquei. - Cada coisa no seu tempo. Agora, vocês têm que se preocupar em aproveitar a infância.
- Que infância? Eu já sou grandinha!
- Eu também! - Himari protestou. - Vou fazer 14. Mas deixando isso de lado, me conta, como é estar apaixonada? A Yui estava me dizendo que você vive suspirando pelos cantos...
- E eu não te contei que não é pelo namorado dela!
- Não!? E por quem é??
Olhei para as duas, assumindo um tom avermelhado nas bochechas.
- Que conversa é essa, Yuina?
- É só o que eu vejo. - Yuina deu de ombros.
Olhei de um lado para o outro, vendo que não tinha como fugir da pergunta. Por fim, suspirei e encarei o céu.
- É como estar flutuando sem direção. - Comecei. - É como estar cercada de brasas, mas não temer o fogo. É como ouvir uma melodia que ninguém nunca ouviu. É como ser abraçada por toda a completude do céu.
As meninas me observaram, boquiabertas, mas eu não notei. Meus olhos seguiam encarando a escuridão, abrigando pontos prateados que se refletiam nos meus olhos. Se eu pudesse pedir apenas uma coisa para aqueles corpos celestes, pediria que aquelas palavras o alcançassem.
- Uau, você tá mesmo apaixonada! - Himari deu um gritinho, saltitando.
- Sophie tá apaixonada! Sophie tá apaixonada! - Yuina aumentou o coro, e duas correram quando ameacei enchê-las de cócegas.
Nos reunimos novamente com os adultos no anúncio dos fogos de artifício. Yuina e Himari voltavam contentes, ambas com doces diversos nas mãos e pelúcias que eu havia conseguido para elas.
- Himari! Não tem espaço para todas essas pelúcias nas malas. Você vai ter que deixar alguns na sua avó.
Himari choramingou, se recusando a deixar seus novos amigos. Acompanhando a situação de longe, ri baixinho ao lembrar da fala da menina, afirmando não ser criança. No fundo, acho que nunca deixamos de ser.
Ao meu lado, Kaito conversou com Hanako e Tia Miya.
- Vocês poderiam nos visitar e quem sabe até morar lá de vez. Osaka é um bom lugar para viver.
Empalideci com a proposta de mudança, temendo abandonar tudo o que havia aprendido a ver como meu. Mas com a resposta de Hanako, meu coração sossegou.
- Nossa vida é em Tokyo. Sophie já está no último ano do ensino médio, e Yuina já está adaptada a sua turma. Além disso, pretendo voltar para o escritório.
- É sério, mãe!? - Não consegui me conter e adentrei na conversa. Empolgada, fiquei genuinamente feliz com a notícia. Hanako merecia muito ser feliz e fazer o que gostava.
- Sim. - Hanako sorriu. - Está na hora. Seu pai não gostaria que continuasse afastada do lugar que construímos. Será difícil, tudo naquele lugar me lembrará da pessoa extraordinária que ele foi. Mas é preciso seguir.
Assenti, segurando lágrimas intrometidas. As irmãs se abraçaram, mantendo a irmã do meio no centro.
- Então voltará para casa, Miyako? - Perguntou a vovó, encarando o céu.
- Logo quando não consigo me imaginar longe das minhas sobrinhas fofas!? - Tia Miya protestou, abraçando Yuina, que reclamava do abraço, e eu. - Acho que a volta pode demorar mais um pouquinho. Afinal a Yuina ainda precisa que alguém a leve para o colégio.
- Eu posso ir sozinha! - A garota resmungou e estalou os lábios.
- Eu não tenho serventia mais? - Tia Miya murmurava, tristonha de propósito.
- Eu não quero que você vá, tia. - Pedi, a abraçando. - Ninguém vai assistir doramas comigo se você for.
- Viu, essa que é uma sobrinha que dá valor a tia! - Tia Miya se deixou ser bajulada, abrindo um sorriso convencido. - Toma essa, Aya!
- Agora é a minha vez de protestar! - Reclamou a mulher mencionada. - Vocês nem nos visitam e quase não entram em contato, salvo quando a mamãe nos reúne. Também quero mimar minhas sobrinhas!
Enfrentando uma Tia Aya emburrada, a inclui no abraço, fazendo-a amolecer.
- Tá decidido. - Hanako chamou a atenção de todos, minutos antes dos fogos começarem. - Vamos nos ver mais, como uma família.
Tia Miya foi a primeira a concordar, animada. Tia Aya as olhava com um olhar cético, mas concordou depois de muitos pedidos das irmãs mais novas. No final, acabamos incluindo até a vovó no abraço, que estava mais resistente.
Os fogos atingiram o céu, espalhando-se em partículas coloridas e luminosas. Os habitantes locais, reunidos, vibraram e ergueram as mãos, como se pudessem alcançar o colorido do céu. Enquanto eu observava a explosão de cores, imagens daquele festival eram refletidas entre os tons de vermelho e dourado. Nossos rostos colados, os dedos cautelosos que tocavam a minha cintura para em seguida alisar o meu ombro. Os lábios que buscaram o desconhecido, colados à pele dele. As respirações compartilhadas, e o uso daquele pedido na forma do beijo no canto dos meus lábios.
Como se pudesse sentir, levei o indicador ao local beijado, enquanto a outra mão repousava em cima do coração. Fechando os olhos, desejei que aquela não fosse a última vez.
❁
O dia em que voltaria para Tokyo se aproximava, mas no momento atual, Himari, Yuina e eu nos arrumamos para ir à praia. As garotas me apressavam com ansiedade, segurando bolas e bóias que também ajudei a carregar.
Senti o cheiro do mar quando pus os pés na areia, sentindo a textura macia. Estar na praia adormeceu monstros internos que ainda não estavam totalmente curados, no entanto, parte daquele temor agora era visto com outra ótica.
Enquanto as meninas corriam na direção do mar, saltitei na areia, criando um padrão imaginário no local onde os meus pés passavam. Meu cabelo castanho acompanhou o movimento dos saltos e do próprio vento, carregado pela brisa que me guiava.
Ao longe, onde Yuina e Himari brincavam com a bola, o mar fazia o seu caminho costumeiro, deixando marcas por onde passava. A cor azulada combinava com o céu ausente de nuvens, propício para o friozinho que senti. Por um momento, me vi ao lado de Aono, mergulhando e sorrindo minutos antes de tudo acabar. Antes que entre nós, apenas lágrimas fossem compartilhadas.
Pisquei, silenciando o meu coração. Eu me sentia leve de um jeito solitário, mas ainda leve. Como se o que aconteceu, e os dias que passei na casa da vovó me fizessem ter uma nova percepção da minha estadia nesse mundo. Algo em mim estava mudando, junto com o embalo suave das águas do mar.
Eu ainda não sei o que vai acontecer daqui para frente. Não sei o que me aguarda a partir da decisão que irei tomar. Mas sei que chegou a hora de tomar uma.
(12:41) Você: Quando o período de férias acabar, precisamos conversar.
Esperei a resposta, que veio minutos depois.
(12:54) Ken ❤: Vou com o meu pai à uma viagem de negócios, volto para o colégio uma semana depois do começo das aulas. Estou louco pra te ver, meu amor. Saudades.
Visualizei a mensagem, apertando o celular contra o meu peito. Duas semanas até a minha decisão ser tomada. Duas semanas até uma nova etapa da minha vida começar.
Ainda tive tempo para olhar mais uma vez para o contato bloqueado e suspirar, e atualizar as meninas com novas fotos da viagem, antes que Himari e Yuina, em segredo, me interceptassem por trás, grudando os seus corpos molhados ao meu.
- Larga esse celular! - Himari pediu, com as bochechas infladas de ar. - Suas garotas favoritas são mais importantes!
- Concordo! - Yuina enfatizou, e sorrindo, guardei o celular, dando razão a elas.
Junto de Himari e Yuina, decidi não pensar no futuro que me alcançaria em duas semanas, em suas vantagens, prejuízos ou consequências. Enquanto corri atrás delas, entrando no mar e soltando um gritinho pela temperatura gelada, deixei as dúvidas voarem juntamente com as gaivotas que enfeitavam o céu. Rindo, brinquei de bola, pulei ondas, corri na areia, e vivi. Sem pensar no amanhã, que com certeza havia de chegar.
❁
Passado o pico do verão, as cigarras que serviam como trilha sonora do meu trajeto até o colégio, agora repousavam silenciosas e preenchiam a calçada. As praças compartilhavam o silêncio, se distanciando das lembranças dos brinquedos disputados por crianças choronas e pais que corriam para ajudá-las. As ruas voltavam à sua agitação normal com transeuntes apressados, sejam trabalhadores ou colegiais. Diante daquele cenário melancólico, aceitei que as férias haviam acabado.
Kaori e Keiko me esperavam no portão e tão logo me avistaram, as gêmeas correram na minha direção, animadas.
- Até que enfim! - Keiko me abraçou. - Achamos que você não vinha mais.
- É! Esqueceu que tem telefone?
Retribui o abraço das garotas, alcançando o celular quando tive oportunidade e vi cinco chamadas não atendidas. Juntando as mãos, apertei os lábios e me justifiquei.
- Foi mal. Não acordei muito bem.
E não era mentira. Estava disposta a esquecer que o colégio existia pois, além dos problemas cotidianos, estava mal-humorada ao extremo e o motivo fazia a minha barriga e a minha cabeça doer. Nesse mundo, o ciclo de uma mulher não é nada fácil.
- Eita, já tomou remédio? - Keiko me perguntou quando expliquei a situação. Quando balancei a cabeça em afirmação, Kaori completou.
- E a cólica ainda não passou?
- Não. Mas eu tomei há pouco tempo, não deve ter feito efeito ainda. - Suspirei, fazendo uma careta. Apesar de querer esquecer que o colégio existe, a decisão de vir para a aula foi minha. Hanako notou que havia algo errado assim que acordei e insistiu que eu voltasse para a cama, mas recusei. Precisava ocupar a cabeça com outra coisa.
Kaori e Keiko me mimaram durante todo o período de aula, e quando entramos na sala e Pokko passou a saber do meu estado, ganhei mais atenção especial. Sorri com as tentativas dos meus amigos de me fazerem bem e não recusei os doces que Pokko havia levado, agradecendo por aquela bomba de açúcar em contato com os meus nervos a flor da pele.
No intervalo, enquanto nos organizamos embaixo da sombra de uma árvore alta, o assunto que eu temia apareceu.
- E o Aono? Não deu mais notícias?
- Não. - Respondi, balançando o hashi. Conhecendo-o, não tive muita esperança de encontrá-lo na sala de aula. Mas quando realmente não o encontrei, não posso dizer que não doeu um pouco. - Ele falou alguma coisa com você, Pokko?
- Também não. Não sei nem se ele chega a visualizar as mensagens.
- Eu também tentei contato. - Revelou Kaori, com um semblante entristecido. - Mas ele não me respondeu. Bom, não que eu estivesse verdadeiramente preocupada, mas... Ah, vocês sabem. Não é a mesma coisa quando aquele idiota não está por perto.
Kaori se entregou ao silêncio, e todos nós a seguimos, suspirando profundamente. Era difícil não lembrar de quantos intervalos compartilhamos juntos, os cinco, debaixo daquela mesma árvore que agora abrigava apenas nós quatro. E se fosse para sempre assim?
Anunciando o fim das aulas, o sinal tocou para alívio dos meus dedos cansados. Guardando os cadernos, perdi a aproximação de Kobayashi, que caminhou radiante na minha direção.
- Por acaso você tem notícias do Kentin? Não consigo falar com ele.
Arqueei as sobrancelhas e a encarei. Em seguida, dei voz ao que estava pensando no momento.
- O que você quer com o meu namorado? - Indaguei. Não sabia de uma aproximação entre a garota e Kentin, e não era questão de ciúmes, soava mais como um "o que está acontecendo e o que eu perdi?"
- Tsc, sabia que não podia contar com você. Aliás, o esquisitinho que anda com o seu grupinho não vem mais?
- Olha aqui, garota... - Comecei, fechando os punhos. Tudo o que eu não queria em um dia de cólica era uma chata me enchendo a paciência.
- Ei Kobayashi, por quê você não vai perturbar outro? Deixa a nossa amiga em paz! - Kaori se colocou à frente antes que eu pudesse concluir a minha frase e eu agradeci, sentindo uma pontada de dor de cabeça.
A garota que nos olhava com ares de deboche deu de ombros e saiu fazendo barulho até sumir das nossas vistas. Suspirando, voltei a guardar o meu material sem esquecer a pergunta de Kobayashi. Por algum motivo, aquilo estava soando muito estranho.
- Não vale a pena perder tempo com gente como ela. - Keiko concluiu, alisando o meu ombro. - Já sei o que a gente pode fazer para esquecer que ela existe. Topam ir para o shopping?
Assenti, um pouco mais animada. Pokko se despediu de nós no portão, recusando o convite para ajudar na padaria. Keiko, Kaori e eu andamos de braços dados até a estação, e enquanto caminhamos, olhei para as duas agradecendo ao universo por tê-las como amigas.
Chegamos ao edifício espelhado e seguimos para a Evelyn pois nada melhor para aliviar o estresse do que uma sessão de prova de roupas. Tiramos fotos com os looks escolhidos e fizemos um mini desfile, caindo na risada depois.
Seguimos o nosso tour antiestresse visitando stands de maquiagens, provando cosméticos recém-lançados e aumentando a nossa coleção. Depois passamos na Daiso e perdemos um tempo considerável visitando as sessões de papelaria, incapazes de sair sem comprar enfeites que já tínhamos em casa.
- Próxima parada: fliperama!! -
Kaori correu na frente, animada, e Keiko e eu a seguimos, entrando no espaço praticamente vazio devido ao horário. Carregamos os nossos cartões e escolhemos o primeiro jogo, cada uma pegando um mini martelo.
Bati no lugar indicado a cada vez que a imagem aparecia no aparelho, marcando um ponto e rapidamente me viciei naquele joguinho, periodicamente voltando para ele até que os créditos acabassem.
Fazendo uma pausa no tour, paramos no Panda Coffe e eu pedi um brigadeiro latte tamanho grande com calda extra e donuts de caramelo com nozes, fazendo os olhos das minhas amigas e da atendente se arregalarem com a alta quantidade de açúcar em um único pedido. Quando os pedidos chegaram, metade deles sendo constituídos do itens que eu pedi, agradeci com um sorriso e ataquei a comida, lambendo os lábios pela calda que escorria.
- Ok, agora você vai nos dizer o que tá acontecendo e sem fugir.
- Como assim? Eu tô normal.
- Comendo por três Sophies inteiras? - Keiko estalou os lábios, me olhando de cima a baixo. - Somos suas amigas há anos e sabemos quando você não tá bem. Você pode até tentar esconder das outras pessoas, mas a gente sabe que alguma coisa tá te machucando e não é de hoje. Tá na hora de nos contar o que é.
As meninas me olhavam profundamente, esperando por palavras que não saiam. Levemente entalada, tomei um gole do latte que descia arranhando.
- Soso. - Kaori chamou a minha atenção, pousando a mão na minha. - A gente não vai insistir se não quiser contar, mas saiba que a gente percebeu que você não tá legal a muito tempo. Não queríamos interferir porque achamos que era só uma fase ruim, mas... As coisas não estão boas com o Kentin, não é? E tem todo o resto com o Aono. Desculpa se não fomos mais incisivas antes.
- Vocês não tem culpa! - A cortei, balançando a cabeça em negação. Keiko e Kaori sempre foram ótimas, se não fosse pelo apoio das duas desde o começo, tenho dúvidas quanto a capacidade de permanecer aqui. Se alguém era culpado por se enrolar na corda que ela mesma amarrou, esse alguém sou eu. - Não poderia pedir por amigas mais leais, eu juro.
- E será que nem toda essa lealdade nos permitirá saber o que está acontecendo?
- É que... Não quero que vocês se decepcionem. São assuntos que eu devo resolver.
- Nos decepcionar? Mas você é nossa amiga! A gente jamais ficaria contra você.
- Nem se eu decidisse seguir um caminho que me afastaria de Kentin? Vocês gostam tanto dele.
As gêmeas se entreolharam e no mesmo momento me arrependi de ter tocado no assunto. Estava pronta para que elas me dissessem que eu estava errada e não deveria terminar, mas o que eu ouvi, me surpreendeu.
- A gente não sabe os pormenores da situação e sim, gostamos muito do Kentin. - Keiko começou.
- Fomos praticamente as cupidas de vocês dois e por todos esses anos amamos ser amigas de vocês e segurar vela para o casal. - Kaori completou, sorrindo. - Mas somos suas amigas em primeiro lugar e sabemos que no seu relacionamento cabe à você decidir suas escolhas. O Kentin pode ser um ótimo namorado, mas pra quem tá olhando de fora. A única pessoa que sabe verdadeiramente como ele é, é você.
Apertei os olhos, olhando pra baixo. Eu sabia que Kaori e Keiko gostavam muito, muito do Kentin. E apesar daquelas palavras havia uma torcida gigantesca pelo meu relacionamento, mas elas não me odiavam e nem me odiariam caso aquela junção tivesse fim. Naquele momento, me lembrei das palavras da vovó.
"Estou lhe dizendo para que viva sem preocupações. A certeza do futuro é um companheiro perigoso. Deixe que o presente, e suas escolhas baseadas nas suas experiências de hoje a guiem."
❁
Uma semana se passou desde a conversa com as meninas, e na segunda semana de volta às aulas, Kentin apareceu. O garoto sorriu e acenou, balbuciando palavras que hoje eu tinha certeza de nunca chegarem para mim. Marcamos de nos encontrar na sexta feira, e de terça em diante, não dormi mais.
Esperei que tivesse um vislumbre da antiga Sophie nos dias que aconteceram a conversa, que algo me convencesse a não seguir em frente, mas não tive nada além da minha imagem desgastada no espelho. Alisei o vidro gelado, olhando para o meu reflexo mais uma vez, senti as paredes do meu coração congelarem. Me afastei e peguei a bolsa, suspirando. Aquele dia havia chegado.
Kentin havia escolhido um restaurante que ficava a minutos da casa dele. Em sua expectativa, iríamos para a sua residência terminar o que começamos ali. Na minha expectativa, terminaria o que nunca comecei.
O garoto me contou animado as novidades dos negócios do pai, e assentindo, deixei o olhar cair para o anel que ainda usava, disposta a entregá-lo para o dono.
- E você?
O garoto me encarou, percebendo que o meu olhar recaiu para as safiras. Antes que ele chamasse a minha atenção novamente, levantei o olhar, sorrindo fraco.
- Visitei a minha família. Foi bom vê-los.
- Ah, como eu queria ter ido. - O garoto lamentou, suspirando em descontentamento. Balancei a cabeça, observando seu olhar sugestivo. Kentin esperava um "Você pode ir na próxima." que não saiu dos meus lábios. Naquele momento, e encarando os meus olhos opacos, o garoto percebeu o que estava acontecendo.
- Kentin, eu...
- Shhh, espere. Não diga nada.
Kentin retirou o indicador dos meus lábios, em seguida se levantou e caminhou até a pequena área de karaokê. Olhei para o prato e mais uma vez para o anel de safiras, permanecendo com os olhos na jóia até os primeiros acordes tocarem.
Sawakaze, a segunda opening do anime shoujo Kimi ni Todoke era cantada pelo garoto que olhou para mim com olhos apaixonados. Sustentei o olhar, sorrindo, mas não consegui sentir as batidas do meu coração, o suor nas mãos ansiosas nem as palavras apaixonadas que deveriam sair dos meus lábios. Kentin cantava para mim, fazendo todo o restaurante procurar por sua musa inspiradora e me encontrar, a garota que não era capaz de retribuir o que ele sentia e que estava prestes a dar um fim naquele relacionamento longe de ser mútuo. Mas será que eu possuía mesmo autoridade para fazer isso?
A música continuou rolando quando a minha certeza talhada em uma tábua de areia começou a desmoronar, e se foi por completo quando o dono do restaurante, amigo do pai de Kentin, me entregou um prato especial, formando os dizeres "Me desculpe." Vendo-o voltar novamente, não tive coragem de encará-lo.
- Você gostou? - Kentin pegou a minha mão, esperando ansioso pela resposta.
- Sim. - Foi o que consegui dizer, engasgada mesmo sem ter ingerido nada.
Minutos depois, o garçom me entregou a sobremesa em formato de coração, e a cada minuto que passou, deixei de ter coragem para fazer o que o meu coração pedia. Kentin podia ter muitos defeitos, vários deles, mas amava Sophie. Aquele jantar e os atos dele me provavam isso.
"Mas você tem que pensar em seu bem-estar..."
Era o que o meu coração doído dizia. No entanto, decidi não escutar. Kentin sorriu e eu sorri de volta, disposta a dar-lhe mais uma chance dentre muitas que já havia dado. Decidi não me escolher, mais uma vez.
- Eu juro, meu amor, que tentarei ser um homem melhor dessa vez. A partir de agora seremos nós dois e tudo vai voltar a ser como antes.
- Sim. - Sorri, sufocando-me. - Vamos começar do zero.
Kentin alisou a minha mão enquanto eu pensei em me refazer para estar ao lado de Kentin. Se eu não o amava, passaria a amar. Se eu não o entendesse, passaria a tentar entender. E viveríamos bem.
Mas a quem eu estava tentando enganar...?
Ao mesmo tempo que minha mente ilusória tentava me convencer de um novo caminho com Kentin, a parte da minha mente que se recusava a aceitar aquela nova ideia me levava às lembranças do meu verdadeiro amor. Aono ainda morava em minha mente e meu coração mesmo que seu afastamento significasse nunca mais vê-lo. Eu havia feito uma escolha. E não era favorável a Kentin.
- Preciso ir ao banheiro. - Kentin me tirou das minhas turbulências e aproximou os lábios dos meus. - Quando eu voltar, iremos para casa. Sinto saudades de você.
Assenti e abri um sorriso que se transformou em calafrios no meu corpo assim que ele se afastou. Daquela vez, não teria como fugir. Kentin e eu estaríamos juntos em totalidade, e eu não podia estar mais em pânico com aquela constatação.
Até aquele momento. O primeiro toque do celular, que descobri não ser o meu segundos depois de verificar as mensagens e ver que não havia nenhuma, levou a uma série de novas mensagens. Tentei avistá-lo, temendo ser um assunto urgente, mas não o encontrei. Sem opções, me aproximei no sexto toque, e ao ler o nome e o conteúdo das mensagens, senti minhas pernas enfraquecerem e o meu mundo cair.
Kentin voltou sorridente, fazendo sinal para o garçom trazer a conta, mas naquela altura, ele já havia percebido as lágrimas e a vermelhidão presente em meu rosto. Se aproximando, o garoto me examinou, confuso.
- O que aconteceu? A comida não caiu bem? Tô ficando preocupado, Sophie!
- Começar do zero? E quando eu saberia disso? - Disparei, sentindo o estômago embrulhado e a garganta chiar em protesto.
Kentin não entendeu de início, e foi preciso que eu apontasse para o celular para que ele soubesse o que havia ocasionado a minha decepção. Com os olhos arregalados na tela, o garoto demorou alguns segundos para formular uma resposta convincente, mas eu não esperei por ela.
- Eu...
- A quanto tempo!? - Pedi. - Quanto tempo faz que você está me fazendo de idiota e se envolvendo com a garota que tentou me prejudicar diversas vezes?
- Sophie, me escuta...
- Era isso que eu merecia? Me sentir culpada pelas nossas brigas enquanto você se divertia com outra?
- Não era o que você estava fazendo com o Aono!? - Kentin disparou, sentindo tanta raiva quanto eu.
- Eu não... - Comecei, abaixando o olhar. - Não me compare à você.
- Não? - Kentin abriu um sorriso irônico. - Será que você pode jurar que nunca me traiu com ele, ou que nunca pensou em como as coisas seriam caso ele estivesse no meu lugar?
Eu não podia. Senti amargamente a verdade daquelas palavras quando as lembranças me levaram ao quase beijos e quando estivemos mais próximos disso, no festival. E em todas as outras vezes que desejei Aono.
- O silêncio já me diz tudo. - Kentin prosseguiu, fechando os punhos. - Nós dois erramos. Eu admito que fui fraco e cedi mas você tem que me entender, Sophie! Você não queria mais estar comigo e eu estava sentindo falta de... Você sabe. Sou um homem, preciso me aliviar!
- E a sua solução para se "aliviar" significava me trair enquanto jurava amor? - Indaguei. - Não diga por mim. Você não sabe quantas vezes eu me martirizei e me coloquei em segundo plano por achar que estava sendo injusta com você. Pra que? Por quê eu estava me sacrificando tanto por um relacionamento que só existia na minha cabeça?
- Eu te amo, caramba! - Kentin gritou quando fiz menção de sair, agarrando o meu braço. - Fui fraco e não tenho orgulho do que fiz, mas eu juro que a Kobayashi não representa nada pra mim. Ela foi um momento e você é o meu pra sempre.
- Mesmo que a cinco minutos atrás ela estivesse te perguntando quando seria a próxima vez? - Ri, amarga. - Você sabia que ela me perguntou sobre notícias suas semana passada? E até o momento eu não sabia o papel de idiota que eu estava fazendo.
- Você sabe que não...
- Sei, Kentin. - O cortei, encarando-o no fundo dos olhos azuis. - Sei que estava prestes a cometer uma loucura quando mais uma vez estava a ponto de te priorizar ao invés de priorizar a mim. Sei que nunca estive errada quando tive certeza que o meu caminho não estaria ligado ao seu. Sei das suas tentativas de me retalhar e tentar me colocar em uma caixinha que não pertenço. E sei que eu nunca seria feliz com você.
Me soltei, caminhando dois passos a frente antes de parar e olhar para trás. Kentin parecia um túnel aparentemente eterno e duradouro, de onde eu nunca achei que sairia. Mas ao olhar para o anel que descansava em meu dedo, e deslizar a joia para fora, vi as rochas pesadas que o sustentava se despedaçarem uma a uma, até sobrar nada mais que uma nuvem de poeira que se dissipou com o ar.
- Não posso ser a sua garota modelo. - Comecei. - Você não me ama, Kentin. Não posso dizer que nunca amou, mas hoje posso afirmar que você sempre procurou por alguém que o fizesse se sentir importante e grandioso. Ao matar por dentro e sufocar as minhas escolhas, você se enalteceu. Era a essas sensações que você se apegava.
Abri a mão, deixando que o anel escorregasse até tilintar no chão, e com aquele barulho, voltei a caminhar na brisa fria da noite, de cabeça erguida e sem olhar para trás, deixei um Kentin boquiaberto com as consequências das suas próprias escolhas.
Mas eu não estava tão forte quanto parecia estar. No fim da segunda quadra, me encolhi na calçada e chorei até os meus olhos ficarem vermelhos. Chorei pela decepção, chorei por mim e pela escolha que fiz minutos antes de saber o quanto eu estava sofrendo para manter um relacionamento que não valia a pena ser mantido. Se eu não tivesse o ímpeto de olhar a mensagem, continuaria vivendo em uma mentira que me sufocava a cada dia. Apenas para vê-lo feliz.
❁
Dez minutos depois, quando a minha garganta cansada protestou contra o choro, voltei a caminhar até encontrar uma lojinha de conveniência. Enxuguei as lágrimas e adotei uma postura minimamente apresentável, enquanto entrei e busquei por água. Estava prestes a ir para o caixa quando avistei uma caixinha de bombons.
Sai da konbini com a sacola de água em uma das mãos, e na outra a sacola com os bombons balançava contra o vento. Decidi comprar no ímpeto e na necessidade de desabafar com alguém, alguém não, com ele. Estava vulnerável e sozinha, precisando vê-lo mais do que nunca. Sem as amarras que mantinha com Kentin, senti que um ímã em meu coração me levou até o endereço onde o órgão fez morada.
Cheguei na fileira de apartamentos, cansada e ofegante. Havia decidido ir para a casa de Aono com a mesma mente agitada que havia visto as mensagens de Kobayashi, no entanto, ao ser envolvida pela brisa noturna, a nuvem que pairava em minha mente se dissipou e revelou a sandice que eu estava cometendo. Não falava com Aono a quase um mês, e não sabia como ele me receberia, quando aquela conversa que tivemos na praia já parecia ter sido um adeus. Mas eu só saberia se tentasse.
Subi as escadas pedindo aos deuses que não fosse enxotada e cheguei ao andar, sentindo as batidas frenéticas do meu coração. Inspirei profundamente, segurando a respiração ao ouvir as batidas que eu mesma havia dado contra a porta, esperando.
E esperei ao bater mais uma vez. E outra. Nada.
Engoli em seco, temendo o pior. Bati mais uma vez, esperando ao menos ouvir um miado de Nyakko, mas recebi apenas o som da minha respiração. Agitada, tive dificuldade para alcançar o celular que constantemente escorregava da minha mão suada e estava prestes a acessar o contato de Aono quando levei um susto ao escutar uma voz se dirigir a mim.
- Se você está procurando os antigos moradores do apartamento, tá perdendo a viagem, menina.
- Antigos moradores? - Perguntei, confusa.
- Antigos sim. Eles se mudaram faz pouco tempo, você não sabia?
- Eu... - Ri, nervosa e trêmula. - O senhor quer dizer que eles se mudaram para sempre? Não está havendo uma confusão? Eu estou procurando um garoto de cabelo longo, com tatuagens...
- Sei sei, o menino Sousuke. - O senhor sorriu, balançando a cabeça com dificuldade. - Se é pra sempre eu não sei não, mas deve levar um tempo. Veio até caminhão pra ajudar com a mudança.
Engoli em seco, sentindo as mãos afrouxarem e a sacola e o celular caírem no chão, criando um barulho. Paralisada, só voltei à realidade quando o senhor tentou se abaixar.
- Deixa que eu pego, obrigada. - Sorri fraco, me abaixei e notei um pequeno risco na tela do celular, que não me atingiu tanto quanto a notícia que eu havia recebido.
- A menina é amiga dele?
- Eu... É, a gente estuda juntos. Estudava... É... Ele deve ter esquecido me avisar.
- É, com mudança, a mente fica um pouco bagunçada. - O senhor afirmava, fazendo pausas para verificar o meu estado. Não sabia como estava a minha expressão, mas sabia, pela tontura que eu estava sentindo, que devia transparecer toda a tristeza do meu coração. - Olha, não sei de muitos detalhes, mas eu vi a mãe dele conversando com algum parente no telefone. Pode ser que eles tenham se mudado para a casa de algum parente, quem sabe.
- É, pode ser isso. - Balancei a cabeça em afirmação, esquecendo até mesmo de ficar abismada pela habilidade do senhor de colher informações, tamanho o embrulho no meu estômago. - Obrigada mais uma vez.
❁
É claro que no dia seguinte, os assuntos principais giravam em torno do meu término com Kentin e a mudança de Aono. Guardei os detalhes dos pormenores da conversa com o meu ex-namorado, e não por pena dele. Apenas não quis que Kentin ocupasse um espaço que não lhe cabia mais.
- Sabe, eu até acho que você tá lidando com tudo isso muito bem. - Kaori comentou enquanto tirou uma carta. Devido ao tempo livre, estávamos jogando uno. - Levo meses para superar os meus ficantes.
- Ah, não é que não esteja doendo. - Respondi, falando a verdade. Não doía como um amor interrompido, afinal eu nunca amei Kentin. Doía como uma tarefa programada a qual não consegui cumprir. - Mas acredito que sejamos melhores em caminhos diferentes.
- Ouvi dizer das garotas da sala dele que ele tá destruído. Acha que ele tenta voltar?
- Não sei e espero verdadeiramente que não. - Respondi a Keiko, que estava perto de ganhar o jogo. Como disse, não havia contado da traição para as meninas, ou o rostinho da Kobayashi estaria em sérios riscos. Não me importo com ela, mas não quero desviar o foco da minha verdadeira preocupação. - Acho que ele deve seguir o caminho dele assim como eu quero seguir o meu.
- Assim que se fala, garota! - Kaori comemorou batendo na minha mão. - E qual vai ser o seu primeiro decreto como a mais nova solteira da Hachi?
- Por enquanto, nenhum. - Brinquei. - Se tivesse me perguntado sobre futuros planos, diria que estou pensando em ir para Nagasaki.
- Pra que procurar um namorado tão longe quando os daqui já dão pro gasto? Concordo que a cota homem que presta está bem aquém do esperado, mas se for ver...
- Eu não quero arranjar namorado. - Ri, trocando de carta com Keiko, que resmungou. A troca-mão era sempre útil nessas horas. - Quero buscar um amigo.
As meninas se entreolharam, curiosas e esperaram que eu completasse a minha linha de raciocínio. Quando o fiz, as gêmeas trocaram a curiosidade pelo espanto.
- Você vai atrás do Aono? Sozinha?
- Uhum.
- Mas como, sem saber onde ele está? - Perguntou Keiko. - Nagasaki é enorme.
- Eu não sei. - Confessei. Aono estava incomunicável e não era por falta de tentativas. - Mas sinto que preciso ir. Nagasaki não deve ser tão grande assim para alguém com muita vontade de explorar.
Mesmo achando a minha ideia a mais louca possível, Keiko e Kaori me acompanharam até a estação e me desejaram sorte quando entrei no trem rumo a Nagasaki. Havia avisado a Hanako que estaria fora até o jantar, e preparada, inspirei e juntei as mãos no peito, pedindo aos deuses dos shoujos que facilitassem aquele encontro.
Realmente, Nagasaki era enorme e a vida não era um mangá shoujo. Na vida real, quando alguém não quer ser encontrado, nem toda a procura do mundo é capaz de achar. E o que eu estava pensando, procurando um garoto sem nenhuma pista de onde ele estava além da suspeita de ter voltado para a sua cidade natal?
Meus pés criavam bolhas enquanto andei pelas ruas da cidade olhando em cada canto onde achei ser um lugar o qual Aono visitaria. No último mês, Aono pareceu sumir das redes sociais, ou estava sumido das redes sociais que eu conhecia. Não havia mais fotos, storys, nem nada que pudesse me ajudar a achá-lo. Tristonha, só me restou aceitar que o que havia vivido com ele não voltaria mais.
Entrei em um shopping central para descansar os pés e comprar algo gelado e enquanto esperei, encostei-me em uma grande vidraça com vista para o lado de fora. Tentei imaginar como foi a mudança de um garoto pequeno cuja vida se concentrou naquele lugar, para mudar para outro onde tudo acontecia o tempo todo. Tokyo era gigante, barulhenta e difícil. Ainda assim, eu amava viver lá.
Deslizei os dedos pela vidraça pensando em tudo que vivi até aquele momento. Desde abrir os olhos em um mundo totalmente novo até terminar um namoro que pareceu sacramentado em minha nova vida, todos os momentos pareciam um lapso de tempo na eternidade. Todo dia, eu acordava com medo daquele ser o último dia o qual eu viveria no corpo de Sophie Marie Ichikawa Jones. E se fosse mesmo, eu precisava consertar todas as coisas que arruinei.
Enquanto eu divaguei e mal ouvi o alarme do meu pedido tocar, avistei em pontos minúsculos lá em baixo uma figura de cabelos soltos, camisa preta e mochila atrás das costas. É claro que pela descrição poderia ser qualquer garoto de ensino médio, mas como tudo o que acontecia comigo era digno de um enredo de dorama, tal destino imprevisível fez aquelas descrições formarem a silhueta de Aono Sousuke, andando na multidão. Automaticamente meus olhos se arregalaram e eu comecei uma verdadeira corrida contra o tempo, claro, sem esquecer meu baunilha latte.
Desci a escada rolante aos tropeços enquanto tentei equilibrar o canudo em meus lábios, e pedi desculpas rapidamente a todos aqueles que foram alvos dos meus empurrões. Se o destino havia me feito despencar de Tokyo até Nagasaki, justo no dia em que eu decidi refrescar a garganta ao invés de ir para casa e aceitar a derrota, era por que o meu encontro com Aono Sousuke deveria acontecer. E não seriam pés cansados ou adolescentes despreocupados com a vida que me fariam ficar para trás.
Atravessei as portas de vidro com o coração torcendo para que a multidão não tivesse tirado Aono de mim. Parei na calçada ofegante e cansada, olhando de um lado para o outro e vendo rostos que não reconheci. Não poderia escolher uma direção quando haviam tantas que ele poderia ter seguido, e assim como identifiquei que a minha vida era um enredo de dorama quando o avistei, tenho a mesma sensação quando percebo que a especificidade do meu enredo é ser uma história triste.
Comecei a aceitar a derrota quando o meu corpo parado em uma calçada movimentada começou a ser objeto de reclamação, e me retirando com inúmeros pedidos de desculpas, andei arrastando os pés até o semáforo mais próximo, para que eu pudesse atravessar e caminhar a estação. Bebi o baunilha latte como um prêmio de consolação e eu enquanto eu esperei o sinal ser favorável a mim, do outro lado, o garoto de outrora caminhou lentamente para fora de uma livraria.
Aono caminhou até o sinal alheio às batidas do meu coração. Engoli em seco, vendo materializado na minha frente o garoto que a segundos atrás jurei ter perdido. Sim, a minha vida era um enredo de dorama. E cabia a mim dar um final feliz a minha personagem.
- Aono! - Gritei, chamando a atenção do garoto que estava do outro lado da rua. E sorrindo, acenei, jogando para longe todas as nuvens sombrias que estavam atrás de mim.
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Gente que capítulo GIGANTESCO!! Peço desculpas de antemão pelo tamanho do capítulo mas foi necessário pelo tanto de coisa que aconteceu, né?
Tivemos desde a fofa reunião com a família Ichikawa até aquilo que a gente mais queria. DEPOIS DE 28 CAPÍTULOS, EU DECLARO O FIM DO NAMORO ENTRE SOPHIE E KENTIIIIINNNNNN!!!!
Meus agradecimentos a vovó Saki que abriu os olhos da minha menina e um pouco a Kobayashi também né gente? Quando a Sophie titubeou meu coração até doeu pensando que ela ia dar chance pra esse safado de novo
Quero todos os xingamentos possíveis para o Kentin que estava traindo a Sophie esse tempo todo com a garota que detesta ela, que os dois se juntem e vão pra...
Esse cap foi tiro porrada e bomba e agora eu tenho uma notícia pra vcs... Foi o último da primeira parte :'(
Há um tempo, eu decidi que MNVSE seria dividido em duas partes pra facilitar as produções dos capítulos. Como vcs já bem sabem, os caps de MNVSE são gigantes, o elenco é enorme, e planejar os caps, falas de cada um e etc me demanda dias e apesar da gente querer, tem vezes que nosso dia parece ter 4h né?
Por isso eu estou pausando MNVSE por tempo indeterminado. Olha só, é uma PAUSA, não estou encerrando os caps não ein? Até pq a vida de solteira da Soso tá só começando. Eu só não tenho prazo mesmo pra voltar pq preciso ver como posso organizar o meu tempo, mas não pretendo deixar essa obra inacabada, tenho muito carinho por ela.
Me dói muito parar de atualizar os caps :( vou sentir tantas sdds!! Mas agradeço demais quem ficou até aqui e comentou, ou só leu, surtou junto comigo a cada att. Obrigada de verdade!
E para aqueles que porventura sentirem saudades, estou com uma nova história, Desqueridas Rivais! A Delilah (uma das protagonistas) super seria amiga da Sophie e o motivo vcs entendem lendo
Enfim gente, interação gigante pra combinar com um capítulo gigante pra atualizar vcs das últimas atualizações e pra dizer que vou sentir saudades mas estarei sempre nesse mesmo canal. É isso, um xero e um abraço bem apertado. <3
Dicionário
¹Hakama - Vestimenta tradicional japonesa
²Zabuton- Almofada
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